domingo, fevereiro 10, 2008

O lado obscuro dos transplantes



O cirurgião Eduardo Barroso beneficia de uma percentagem fixa sobre os transplantes no HCC – mesmo que, durante as intervenções, esteja em casa. Nas contas finais de 2007, teve direito a 227.326 euros de prémios.

Por cada fígado transplantado num hospital, o estabelecimento de saúde recebe 54 mil euros do Estado. O sistema de incentivos financeiros à transplantação, criado pelo Ministério da Saúde em meados dos anos 80, não estabelece o que cada unidade hospitalar deve fazer com o dinheiro que aufere. E que, por isso, o distribui arbitrariamente.

Nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde se encontram as equipas campeãs dos transplantes renais e do coração, os médicos que os efectuam recebem, apenas, horas extraordinárias. Nada mais. Já no caso do Hospital Curry Cabral, em Lisboa, o ex-director do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação arrecada 1 890 euros por cada transplante hepático, a parcela de leão dos €26 336 distribuídos pelos cerca de 70 profissionais do serviço de transplantação. Foi assim que Eduardo Barroso, actualmente presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e Transplantação (cargo que aceitou com a condição de manter as regalias que tinha no Curry Cabral enquanto director de serviço), recebeu, só em Novembro de 2007, 30 mil euros líquidos. Isto apesar de, como ele declarou à VISÃO, só ter entrado no bloco operatório «uma dezena de vezes» durante todo o ano.

Em 14 de Fevereiro de 2007, Américo Martins, 54 anos, tornou-se director do Serviço de Cirurgia Geral e Transplantação do Hospital de Curry Cabral (HCC), em substituição de Eduardo Barroso, 59 anos, que fora nomeado presidente da Autoridade para os Serviços de Sangue e de Transplantação, num despacho de 30 de Novembro de 2006, assinado por José Sócrates e pelo então ministro da saúde, Correia de Campos.
Há dias, em entrevista à Visão, no gabinete que ocupa no Ministério da Saúde, Barroso chamava a Américo Martins «o meu n.º 2». Com propriedade. O cirurgião vai diariamente ao HCC e dirige todas as reuniões da equipa que, em teoria, deixou de chefiar há quase um ano.«É a cadeia hierárquica da competência, que não se perde por decreto», justifica.
Mas não só. Dos incentivos financeiros para a transplantação, Eduardo Barroso manteve a sua percentagem mensal fixa de 21% sobre a parte que cabe aos cirurgiões que efectuam os transplantes hepáticos e renais no Curry Cabral. O que, apenas em Novembro último, segundo o próprio, lhe rendeu 30 mil euros líquidos - mesmo que, durante as intervenções, estivesse em casa. «Para aceitar ser presidente da Autoridade da Transplantação, pus como condição poder continuar a exercer a actividade clínica no hospital e a usufruir dos benefícios que ela me dava», conta. «De outra maneira, tinha de declinar o convite. Abandonei praticamente a actividade privada – achei que era suficiente o que ganhava nos transplantes. Hoje, só faço o mínimo dos mínimos, no Hospital da Cruz Vermelha
».
Em Janeiro de 2003, Eduardo Barroso foi nomeado director do Servço de Cirurgia Geral e Transplantação do Curry Cabral, e diz que se limitou a herdar o sistema implantado pelo seu antecessor, Rodrigues Pena, que se reformou. No entanto, admite que, em 2007, apenas interveio «uma dezena de vezes» no bloco operatório, chamado pela equipa para «resolver problemas mais complexos» em transplantes hepáticos. E não vê como, por causa disso, se possa levantar questões éticas e morais. «Fico contente quando não me chamam – é sinal de que estão a conseguir fazer o transplante sozinhos. É essa a grande missão de um líder cirúrgico: tornar os formandos tão bons ou melhores do que o chefe.»
Quanto aos incentivos, Eduardo Barroso acaba por dar razão aos contestatários. «Já disse à administração do hospital que, a manter-se este volume de transplantes, temos que diminuir os tectos dos prémios. São, de facto, exagerados.» Por sua iniciativa, já mandou reduzir em três pontos a percentagem de que usufrui. Confrontado com estas afirmações, Manuel Delgado mostrou-se surpreendido:«Está-me a dar uma novidade».
Eduardo Barroso diz estar na Autoridade da Transplantação com «espírito de missão». Sublinha que, al, o seu ordenado é inferior ao que auferia no hospital.. O despacho conjunto de José Sócrates e Correia de Campos autorizou-o, também, a optar pelo salário do «lugar de origem», o de chefe de serviço de cirurgia geral – 2.897,61 euros ilíquidos, que não incluem o suplemento de 10% de director hospitalar. Mas tem direito a carro e motorista.
No Curry Cabral é que o ambiente não serena. É frequente cirurgiões que estão de banco serem chamados de repente para um transplante. No fim, recebem dos dois lados: as horas extraordinárias do banco, que não fizeram, e do bolo dos transplantes. Na urgência, sobrecarregados com mais trabalho, ficam colegas indignados. Sobre este assunto, o presidente do conselho de administração do hospital foi telegráfico: «Esse é um problema interno que não quero abordar publicamente».
Na unidade de transplantação, outro foco de revolta está na enfermagem. Dos 18 profissionais, só alguns poucos, como a enfermeira-chefe e a da consulta, são contemplados com incentivos. «Apenas é beneficiado quem faz trabalho fora do horário normal», alega o director do serviço, Américo Martins. «Essas enfermeiras não trabalham mais que os colegas – nem pouco mais ou menos», riposta uma profissional, que pediu o anonimato . «Tudo o que rodeia os incentivos é profundamente imoral e injusto.»
Surpreendente, mesmo, é o que se passa nos HUC. Os cirurgiões Alfredo Mota, 60 anos, e Manuel Antunes, 59 anos, garantem que eles próprios e as equipas que lideram, campeãs nacionais, respectivamente, nos transplantes renais e do coração, nunca receberam «um cêntimo» de incentivos. «Só nos pagam as horas que damos ao hospital», diz o primeiro. Aliás, Alfredo Mota está farto de esperar. «O assunto tem de ser resolvido com rapidez e centralmente pelo Ministério da Saúde e não deixado aos critérios dos conselhos de administração dos hospitais», exige o cirurgião urologista. Para quem a solução é clara, atendendo às diferentes quantias atribuídas às várias especialidades: « Por uma questão de higiene pública, todos deviam receber por igual, consoante os transplantes que fazem, sem que haja filhos e enteados.»
Já Manuel Antunes tem as contas feitas na ponta do lápis – a sua equipa é credora de 2,6 milhões de euros de incentivos, pelos mais de cem transplantes do coração que realizou desde 2003. «Um dia destes», avisa, «tenho de pôr os pés à parede.»
Visão n.º 799 fevereiro 2008