terça-feira, fevereiro 05, 2008

Pelo diálogo construtivo

Na sequência das declarações de Manuel Delgado, presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, insertas no «TM» de 26-01-08 link e que nessa edição chamámos à 1.ª página, a coordenadora da Unidade de Missão para os Cuidados Continuados Integrados entendeu escrever este artigo de opinião.

Artigo de Inês Guerreiro*

Faz agora cerca de 27 anos (foi em 1981), tive oportunidade de realizar um estágio no SNS inglês, coordenando uma equipa multidisciplinar constituída por médicos, enfermeiros e assistentes sociais. O programa incluiu visitas de estudo a hospitais centrais, hospitais concelhios, centros de saúde, lares, centros de dia e serviços de voluntariado proporcionados por pessoas idosas activas na comunidade. Repeti programas de actualização semelhantes em França, anos depois, e na Catalunha, recentemente.
Em todas estas experiências, constatei uma realidade que, para nós portugueses, apenas poderia ser retratada como uma visão futurista ou de ficção científica. A preparação da alta era, e é, um processo rotineiro em todos os serviços do hospital desde o momento do internamento, que tem como resultado a previsão e articulação do momento da alta hospitalar com a família, com o centro de saúde, com a autarquia, com os serviços sociais ou com os serviços de apoio social da comunidade, de forma a garantir a melhor resposta de continuidade de cuidados e a mais adequada solução de apoio pós-agudo para cada cidadão.
As informações diversas, desde a nota da alta, à situação social, aos recursos financeiros da família, são, nesses outros sistemas de Saúde, naturalmente preparadas durante o período de internamento e actualizadas à data da alta com toda a informação passível de, previamente, apoiar o prestador (formal ou informal) que continuar a prestar cuidados e/ou apoio social depois do episódio hospitalar. A informação gerada a partir do hospital serve, sobretudo, para apoiar o processo de acolhimento, acompanhamento, reabilitação e promoção da autonomia do doente fora do ambiente hospitalar o mais perto possível do seu ambiente familiar na comunidade. Para melhor compreendermos a diferença, basta notar os sistemas de Saúde em que se verificam 90% de altas para o domicílio depois de um AVC, amputação, ou de outro episódio que diminua capacidades sem qualquer garantia de apoio pós-hospitalar. Esses são os sistemas onde o doente rapidamente é reinternado indevidamente.
Nessas visitas técnicas internacionais, tive ocasião de assistir a discussões de casos (case conference) sobre o plano individual de cuidados para este ou aquele doente, em que, para além da clássica equipa clínica e social hospitalar, estava presente o farmacêutico e o médico e o enfermeiro dos cuidados primários, bem como o assistente social da comunidade, para, em conjunto, e com base no processo do doente, analisarem e reflectirem sobre o melhor encaminhamento do doente após o episódio agudo hospitalar.
Nesses outros sistemas de Saúde é possível vermos com os nossos olhos os cuidados de saúde primários a acompanhar os seus doentes em unidades de «convalescença» situadas em pequenos hospitais concelhios, transformados em hospitais de proximidade, com consultoria dos colegas especialistas que melhor possam acompanhar a patologia de base ou multipatologia do doente. Por outro lado, existe sempre (!) um plano de actividades de vida diária (AVD) em que todos, terapeutas, enfermeiros e auxiliares, se conjugam para que a reabilitação integral se concretize desde o levantar da cama, fazer a higiene, vestir, pentear, alimentar-se, caminhar acompanhado entre as salas e as casas de banho (sem fraldas), actividades de motivação para a vida e reorientação no tempo e no espaço, actividades recreativas como jogos colectivos, movimentação orientada, tratamento de plantas e flores (sim, com terra, e sem infecções) cabeleireiro, etc. Famílias a entrar e sair a qualquer hora, voluntários a complementar as actividades e médicos a fazer o seu trabalho em equipa e valorizando a actividade multidisciplinar de CUIDAR, onde as opções de promover, prevenir, reabilitar, manter e aliviar o sofrimento são adaptadas às necessidades de cada cidadão em situação de dependência. ISTO É UM HOSPITAL de proximidade do SNS. Assim os vemos em sistemas de Saúde como o inglês, o francês ou o catalão.

Exigir informação é «burocracia»?

Porque é que alguns responsáveis hospitalares entendem a exigência de informação completa para acompanhar o doente após a alta como «burocracia»? Trata-se, apenas, de esperarmos processos completos que respeitem a necessidade de informação dos outros níveis de cuidados sobre o doente. Algum responsável hospitalar fica surpreendido porque as famílias exigem reabilitação? Muitas mais pessoas ficam surpreendidas com a surpresa do responsável hospitalar! Admitimos que, de facto, não fazia parte da cultura hospitalar de há 30 anos, por exemplo, a preocupação de não enviar um doente com sonda, com peg, inconsciente, totalmente dependente para casa sem passar por unidades de cuidados pós-hospitalares ou de cuidados continuados, com diferentes graus de diferenciação pós-aguda. Mas essa forma de estar na gestão hospitalar já foi, há muito tempo, abandonada na maioria dos países desenvolvidos.
Curiosamente, faz muitos anos que as unidades de cuidados pós-agudos constituem centros de estágio por onde passam internos, enfermeiros, terapeutas e assistentes sociais em formação que, rotativamente, trabalham em hospitais de agudos, intermediate care units, geriatric units ou long term care units. Ambientes e cuidados verdadeiramente humanizados, amigáveis, familiares, contribuíam para garantir a todos que não estavam num hospital de agudos. Estas unidades são integradas num sistema de acordo com legislação específica de acessibilidades, regras de segurança contra incêndios obsessivamente cumpridas, cores seguindo parâmetros de identificação e humanização para os doentes, mobiliário confortável e de design diverso, salas de actividades sem televisão para «adormecer velhinhos», refeitórios sem doentes de babeiro com colheradas ritmadas pelas mãos dos funcionários, muitas vezes desajeitados, em vez de se alimentarem pelas mãos dos próprios que aos poucos se iam ajeitando mais e melhor, conforme recomendam as boas práticas de reabilitação. Nesses outros sistemas nunca vi gente de pijama, chinelas ou outros artefactos pouco dignificantes do estatuto de pessoa que aprendeu a andar há milhares de anos. Nessas unidades as pessoas reaprendem a realizar o que parecia ter-se perdido num ápice do destino. Nessas unidades faz-se um esforço para garantir o tal direito novo (?) que as famílias por cá começam a exigir e a apropriar. O tal direito de contrariar os poucos gestores hospitalares que pararam nos anos de 1970 no seu entendimento do que são os cuidados de saúde.

Manter a pessoa digna e dignificada

Nesses outros sistemas, os lares (para pessoas dependentes) não têm acamados, mas pessoas frágeis, alguns -- muitos -- com 100 anos de idade, outros menos seniores, em que cada dia que começa de manhã é dedicado ao esforço de os conservar pessoas, dignas e dignificadas no respeito pelas capacidades que lhes foram restituídas ou que ainda lhes restam. Nesses outros sistemas, também vi moribundos a ser apoiados, preparados e rodeados da família e aliviados do seu sofrimento, no respeito pelos direitos que presenciei há cerca de 30 anos. Cuidados domiciliários em complementaridade entre o hospital, os cuidados de saúde primários e os serviços sociais.
Nenhum doente da rede de apoio pós-hospitalar -- poderei assim chamar ao que vi e onde trabalhei em três locais de Inglaterra em 1981 -- se dirigia de moto proprio à Urgência, sem que fosse accionada uma das componentes desta rede. Acompanhamento e continuidade de cuidados verdadeiramente sincronizados, articulados e complementares. Formação especializada adequada e em serviço, onde todas as semanas pude assistir a reuniões com todo o pessoal dos serviços potencialmente utilizadores e dos prestadores dos cuidados.
Em 1981, voltei aturdida, angustiada, esmagada com a magnitude de humanização e mudança organizacional que os ingleses me meteram na bagagem. Eu e a equipa que comigo colaborava desabafámos nessa altura: «Mas isto em Portugal não vai ser possível. Ninguém vai compreender isto.» Curiosamente, recebi como resposta o seguinte comentário: «Dentro de 30 anos, quando os hospitais perceberem que estes são os doentes com quem têm de lidar, quando a situação for caótica, todos compreenderão que a mudança para a complementaridade e continuidade das respostas é a única forma de lidar com as necessidades do doente. Nessa altura, encontrarão o seu caminho.»
Será que já encontrámos o caminho? Penso que sim. Porém, temos de o trilhar em conjunto. Atentos uns aos outros e, de uma vez por todas, sem bodes expiatórios. Todos fazemos parte da solução dos problemas do sistema. Esta é a nossa oportunidade! As famílias também fazem parte da solução.
Quando se tem um ente querido em sofrimento, espera-se até ao desespero e então não se admite nem se compreendem os atrasos. É preciso queimar etapas, sobretudo nas mentalidades e na cultura instituída de que faço o meu trabalho e não me meto com o dos outros. A gestão e a humanização vêm sempre juntas, porque não se pode enganar a realidade. Sistemas que passam de tradicionais para complexos são sistemas de alta tensão. E todos têm razão! Vamos dialogar de forma construtiva?

Texto publicado, em exclusivo, em TEMPO MEDICINA ONLINE 04.02.08