domingo, fevereiro 03, 2008

O arranque da campanha


A fragilidade evidenciada pelo primeiro-ministro não se compadece com histórias piedosas que tentam disfarçar o óbvio .

Antes de mais, convém esclarecer um facto elementar: a chamada "mini-remodelação" teve como único propósito remover o ministro da Saúde, removendo simultaneamente do Governo uma fonte de protestos e de impopularidade que podia ter custos eleitorais. A saída da ministra da Cultura, nesta altura, é apenas um artifício que tenta disfarçar o essencial e desviar a atenção da fragilidade de um primeiro-ministro que decide sacrificar um dos seus ministros, quando este se encontra debaixo de fogo, perante os protestos locais das populações afectadas pelas suas medidas e em guerra aberta com todos os que, por diferentes razões, discordam da política do Governo, na Saúde - nomeadamente aqueles que se encontram no PS e borbulham à sombra das iniciativas de Manuel Alegre e das suas inesperadas vitórias.
É, no mínimo, insólito que, poucos dias depois do autoproclamado detentor de um milhão de votos ter exigido publicamente a demissão do dr. Correia de Campos, o "determinado"e "intransigente" eng. Sócrates se precipite a satisfazer a sua exigência, substituindo o dr. Correia de Campos por uma reconhecida apoiante do ex-candidato à Presidência da República e actual porta-voz do descontentamento socialista. Só o medo da dissidência e da perda da maioria absoluta justificam o súbito desvelo do eng. Sócrates perante as crescentes pretensões do fundador do MIC que, não por acaso, vai mantendo em aberto o futuro político desse seu Movimento que até, há pouco tempo, primava pela ociosidade e pela confusão que nele se instalara.
Como seria de esperar, a oposição, que unanimemente reclamava a demissão do ministro, apressou-se a comentar esta "mini-remodelação", considerando-a "pífia" e de âmbito muito limitado. Mas, mesmo reduzida a um único ministro, a "mini-remodelação" está longe de ser uma iniciativa "pífia" que fica aquém de expectativas demasiado optimistas.
Antes de mais, porque a saída do dr. Correia de Campos, decidida sob pressão e na pior altura possível, inaugura um novo tipo de relacionamento entre o primeiro-ministro e a sua equipa: se até agora qualquer primeiro-ministro procurou escolher o melhor momento para fazer uma remodelação, evitando demitir um ministro quando este se encontra no centro de todos os protestos, não deixa de ser significativo que esta regra acabe por ser quebrada pela arrogante determinação que supostamente caracteriza o eng. Sócrates, cujo estilo foi definido, desde o início, por oposição aos impasses em que tropeçava o diálogo do eng. Guterres. Como o dr. Mário Soares costumava dizer, o eng. Sócrates era o "anti-Guterres" que convinha à liderança do PS.

Não por acaso, foi o eng. Sócrates, o "anti-Guterres" de serviço que, esta semana, revelou o que de pior havia no guterrismo: hesitou sobre a remodelação, deixou passar o mês de Janeiro, perdeu o controlo da situação e acabou por fazê-la na pior altura, pressionado pelos protestos da rua, a reboque das exigências de Manuel Alegre e com os olhos postos nas legislativas. O resultado está à vista, apesar da informação oficiosa que tem circulado, nos últimos dias: a fragilidade evidenciada pelo primeiro-ministro não se compadece com histórias piedosas que tentam disfarçar o óbvio, remetendo para os ministros a iniciativa de se demitirem ou tentando envolver o Presidente da República numa reveladora embrulhada que desmente a imagem reformista, firme e determinada de um primeiro-ministro que, em dois tempos, sucumbiu à impopularidade da única reforma que, mal ou bem, estava em andamento. Uma remodelação conduzida desta forma não é uma remodelação "pífia". É um marco e uma confirmação. E é principalmente um sinal para o partido, para o Governo e para o país.

A partir de agora, é impossível manter, por mais tempo, a ilusão de um primeiro-ministro decidido a reformar o país, à força, contra os interesses corporativos dos muitos "privilegiados" que, de acordo com o Governo, existiam num país pobre, onde a economia estagnou, o desemprego alastra, o nível de vida desce todos os anos. Já lá vai o tempo em que o eng. Sócrates, usando de um populismo desbragado (o dr. Menezes não tem o exclusivo), cuidava da sua popularidade, governando contra os funcionários públicos, os magistrados, os professores, os militares, os sindicatos e outros grupos de interesses, em nome de reformas que, na sua esmagadora maioria, nunca se chegaram a concretizar. A demissão do dr. Correia de Campos e a forma como foi feita não só arrasam a imagem fabricada de determinação e coragem que ainda caracterizava o primeiro-ministro, como matam qualquer ilusão sobre os seus verdadeiros objectivos.

A um ano e meio das eleições, o eng. Sócrates mostrou claramente ao país, ao Governo e ao partido que nenhuma reforma compensa os custos da impopularidade e a perda da maioria absoluta. Daqui para a frente, o que importa verdadeiramente é ganhar votos, agradar ao eleitorado, nomeadamente ao eleitorado socialista, e garantir a maioria absoluta que parece cada vez mais difícil de alcançar. Resumindo: a saída do dr. Correia de Campos é um sinal de que o Governo não vai querer descontentar ninguém, a confirmação de que não há reformas populares e um marco que assinala oficialmente o arranque da campanha eleitoral.
Constança Cunha e Sá , JP 31.01.08