sexta-feira, fevereiro 08, 2008

O emprego


Sentado numa cadeira encostada à parede do grande hall, onde se encontra um «relógio do dedo», aguardo já sem reacção que chegue a minha hora da lá pôr o meu dedo médio da mão direita. Foi esse dedo que dei para amostra, quando ainda reagia contra este culminar da funcionarização dos médicos nos hospitais do Estado.

Faltam ainda 15 minutos. Vem sentar-se na cadeira ao meu lado outro colega da velha guarda. Falamos de trivialidades, depois, inevitavelmente, do estado da Medicina e da Saúde no nosso país. Olhamos o aparelho na parede... «Isto está tudo feito num oito, caramba» -- foi o desabafo dele. Quando finalmente chegou a nossa hora de saída cumprimos o ritual burocrático e fomos à nossa vida. No parque de estacionamento despedimo-nos com um conformado «até amanhã». Amanhã voltamos ao emprego.

Pego às 8, com um atraso permitido de 15 minutos. Está bem, é o quarto de hora académico muito à portuguesa, sim senhor. A hora de saída é variável de dia para dia na semana, mas perfeitamente estabelecida em cada dia - só não sei se tem alguma tolerância, lembrei-me agora. Há dias, uma intervenção complicou-se, saí duas horas e meia depois, ultrapassando todas as tolerâncias possíveis. Um mau hábito ainda, não voltará a acontecer. Hoje já não aconteceu: não comecei o que não podia acabar dentro do horário. Dizem-me que quando sair mais tarde um dia, poderei sair mais cedo noutro, mas este horário controlado rigidamente levou a que estabelecesse o início da minha vida diária depois do hospital do mesmo modo, não há por isso lugar a sair mais tarde nem mais cedo - só àquela hora.

Ao esperar para «picar» o ponto lembrei-me: «Porque não? É um emprego como tantos outros, há tanta gente a fazer o mesmo...» E desatei a pensar na minha vida profissional antes, a saída da faculdade, a entrada no hospital, depois neste mesmo hospital, o entusiasmo, as tardes passadas a fazer histórias clínicas, a deambular pelo banco, absorvendo a pouco e pouco a emoção de lidar com a vida e a morte, dando tudo para salvar uma pessoa que nunca se viu antes e se calhar nunca mais se verá. As longas horas nocturnas ajudando em intervenções cirúrgicas para que me tinha oferecido para ajudar, sem ganhar um tostão por isso. E no dia seguinte chegar antes da hora para preparar a visita médica, e ficar o tempo que fosse preciso. A assiduidade era marcada pelo trabalho feito, por estar presente quando necessário, quantas vezes tão depois da hora de saída. E a escala (sim, escala, e completamente fora de qualquer horário oficial e pago) para vir aos sábados, domingos e feriados ver os «nossos» doentes. Estavam no hospital mas eram «nossos», estavam a nosso cargo, sentíamo-los como nossa responsabilidade directa. A nossa obrigação era tratá-los, cuidar deles, mandá-los embora bem, ou o melhor possível, marcando encontro mais tarde para verificar se continuavam bem. E quando algum internado piorava e o colega de serviço entendia que precisava de reoperação, telefonava sempre para o responsável pelo doente avisando-o, discutindo o caso com ele, e quantas vezes era este que completamente fora de horas ia operá-lo.

«Ninguém vem mais ao domingo»

Há poucos dias um antigo director do serviço passou por lá e, comentando-se «o dedo», perguntou: «Mas quando vêm cá ao domingo como é que fazem para “picar” o ponto?» A resposta foi uma gargalhada a meia voz, meio encabulada: «Ninguém vem mais ao domingo, fora do seu horário.»
Do prazer, do entusiasmo, da disponibilidade mental permanente, da dedicação aos «nossos» doentes, das idas com interesse ao «nosso» hospital, a qualquer hora, ficou uma máquina de controlo biométrico de assiduidade. Um pormenor tão pequeno, uma exigência dispendiosa tão gratuita, por inútil, como ela levou a uma radicalização tão grande de uma mudança que já vinha a processar-se de há uns anos para cá! Desde que a Saúde passou a ser gerida administrativamente, e não clinicamente.
É claro que quem tem uma profissão administrativa, sentado a uma secretária, provavelmente nem compreenderá bem o que estou a dizer, mesmo que trabalhe num hospital. O que é curioso é que a nova lei de gestão hospitalar, que dizem que foi feita para agilizar a administração, o que conseguiu foi burocratizar mais a Saúde. Criando-se condições para expandir a Saúde privada, em grande parte à custa de médicos e doentes da pública, vão-se tirando condições para esta poder competir com aquela. A liberalização dos hospitais estatais foi basicamente entregue a quem tem o espírito de funcionário público, e desta incongruência não se podia esperar outra coisa.
Hospitais transformados em empresas e entregues a si próprios, ou melhor, a quem foi lá posto a dirigi-los. Que em muitos casos querem acima de tudo poupar dinheiro, e para isso dispensam pessoal médico e outro, restringem consultas e seleccionam patologias, afastando as mais dispendiosas. Como um restaurante que para poupar despede os chefes e fica só com os ajudantes de cozinha, já que não precisa de mais para servir carapaus fritos. Mas terá de mandar os clientes de pratos mais sofisticados e mais caros para outro restaurante. O problema é se todos fizerem assim... Como ficará a comida no país? Teremos de ir comer paella a Espanha? E onde os novos aprenderão a cozinhar?

Tenhamos esperança no futuro

«Isto está tudo feito num oito, caramba.» Ficou-nos o emprego, por enquanto. E a Medicina privada, felizmente em expansão. «Não há-de ser sempre assim» -- respondi eu. Será que é isto que temos para oferecer aos jovens que venceram tantas dificuldades para realizar o sonho de ser médico? Este emprego, ainda por cima tão mal pago? Aos mais velhos vá que vai ficando a recordação do que durante 30 anos não foi assim.
O sistema de Saúde mudou, a gestão hospitalar também, mas era sempre melhor o que passou. O presente é assim, tenhamos esperança no futuro.
Carlos Costa Almeida, presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Carreira Hospitalar

TEMPO MEDICINA ONLINE 07.02.08