domingo, março 23, 2008

Sócrates mudou mesmo de políticas


Para as eleições

A política de saúde mudou de facto. Passou a ser mais estatista, mais napoleónica e mais "estalinista". Em nome do preconceito contra os privados, não dos utentes, que perdem
Quando foi reconhecida a remodelação governamental, escrevi que a troca de Correia de Campos por Ana Jorge não correspondia apenas a uma
mudança de estilo: correspondia também a uma mudança de políticas. É certo que o primeiro-ministro disse o contrário, mas como tem o nariz grande, este já não cresce mais e havia esperança que não se notasse. Ontem, durante o debate parlamentar que resolveu dedicar à saúde, José Sócrates mostrou que depois de seguir, nos seus três primeiros anos de governo, uma política de saúde reformista e liberal, inverteu radicalmente o rumo e regressou à política estatista que tão más provas deu no passado.
O sinal mais evidente disso foi a viragem de 180 graus na política de partilha com o sector privado da gestão hospitalar. Com Correia de Campos havia-se estabelecido um programa de acordo com o qual a experiência do Hospital Amadora-Sintra seria alargada a mais dez unidades a construir. Sem Correia de Campos e com Ana Jorge esse número cai para quatro hospitais e apenas porque já há contratos assinados. Porquê? Porque, disse o primeiro-ministro, "as parcerias público-privado são úteis para a construção: a gestão hospitalar deve permanecer pública".
É preciso ter lata, convém dizer. Há alguns meses era exactamente o contrário que fazia doutrina no Ministério da Saúde. Sem que tenha sido conhecido um só dado novo depois da saída de Correia de Campos, a gestão hospitalar privada que este considerava vantajosa passou a ser desvantajosa. Essa alteração não se deve a uma qualquer raio de luz que, numa noite chuvosa, penetrou até ao espelho de talha dourada frente ao qual José Sócrates ajeita a gravata antes de sair de casa e lhe iluminou o espírito. Essa alteração deve-se ao que Ana Jorge pensa que deve ser o sistema de saúde em Portugal. Infelizmente, pensa mal e agiu pior, quando teve responsabilidades públicas.
Isso torna-se transparente quando verificamos que o primeiro-ministro acompanhou o seu anúncio de que só haveria, e a contragosto, quatro hospitais com gestão privada com o anúncio de que o Hospital Amadora-Sintra vai deixar de ter gestão privada e regressará à alçada dos gestores (apetece tanto acrescentar umas aspas...) públicos.
Qual foi o argumento de Sócrates? Que o Amadora-Sintra prestava um mau serviço às populações? Não. Que custava mais caro aos contribuintes no seu dia-a-dia? Também não. Que era mal gerido? Não, de novo. O argumento de Sócrates não podia ser, perdoem-me o termo, mais estalinista: "É difícil ao Estado acompanhar e assegurar o cumprimento integral dos contratos e a plena salvaguarda do interesse público em todas as situações." Ou seja: é difícil ao Estado controlar administrativamente esses hospitais, pois o escrutínio pela opinião pública, via comunicação social, nunca deixou de existir. E a comparação com os hospitais públicos não é especialmente favorável para estes, diga-se em abono da verdade.

O problema de Sócrates é, como o próprio admitiu no debate de ontem, é que "os ganhos de eficiência" não são compensados pelos "custos administrativos" inerentes ao controlo. Fantástico: o primeiro-ministro admite que há ganhos de eficiência, mas que estes não compensam, porque o Estado construiu um monstro burocrático para controlar a gestão privada. Se isto não é estalinismo na sua versão "democrática" e "moderna" do século XXI, então nada compreendemos sobre a obsessão estalinista de tudo controlar e tudo saber.
No caso concreto do Amadora-Sintra, convém recordar, para quem estiver esquecido, que Ana Jorge, a actual ministra, é há muito parte do problema. A outra parte do problema é um Ministério Público esquizofrénico.
Expliquemo-nos. Quando a actual ministra presidia à ARS de Lisboa, teve um contencioso com a José de Mello Saúde sobre o que devia o Estado pagar pelos actos médicos realizados no Amadora-Sintra. Para ultrapassar o diferendo, foi nomeada uma comissão arbitral cujo trabalho resultou na humilhação pública de Ana Jorge, pois os argumentos da gestão do Amadora-Sintra venceram em toda a linha. Mas o mais surrealista de tudo é que, depois dessa decisão, o Ministério Público decidiu processar a ARS de Lisboa (Ana Jorge incluída) por considerar que tinha pago dinheiro de mais ao Amadora-Sintra. Com isso os acusadores públicos paralisaram a administração central, pois mais nenhuma ARS se atreveu a chegar a acordo com a José de Mello Saúde. Os "custos administrativos" de que José Sócrates falou são os custos de reuniões e reuniões de negociação, ou de regateio, entre os gestores do hospital e a ARS, em que consomem recursos imensos sem nenhuma utilidade para os utentes.
O Estado desconfia dos privados, abomina o lucro, prefere a ineficiência "igualitária" à eficiência que pode fazer a diferença. E por isso não se importa de enviar um exército de fiscais administrativos para garantir que um operador privado não ganha um cêntimo a mais, mesmo quando esse operador privado está a prestar melhor serviço às populações.
É triste, mas foi esta confissão de rendição a uma política mais populista e mais centralizadora que ontem José Sócrates assumiu no Parlamento.

P.S. Dupla e breve declaração de interesses: a) sou utente do Amadora-Sintra e fiquei mais preocupado ontem, mas posso explicar porquê, pois já fui utente de outros grandes hospitais; b) tenho uma relação de estima pessoal e intelectual pelo anterior ministro Correia de Campos, se bem que me custe vê-lo engolir tantos sapos e ainda aparecer no pavilhão do Académico, no Porto, pois acho que quem não se sente não é filho de boa gente (se não tivesse com ele uma relação franca e aberta não escreveria isto, sem antes lho dizer, mas entendo que as amizades sobrevivem às divergências de ideias).
JMF, JP 20.03.08