domingo, junho 17, 2007

Pita Barros, entrevista

O sistema continua mais orientado para o profissional de Saúde do que para o doente

Lamentando não poder comentar aprofundadamente a sustentabilidade financeira do SNS, o economista Pedro Pita Barros explica à GH a necessidade do aumento dos impostos e defende o combate ao desperdício, incluindo as horas extraordinárias desnecessárias, como o primeiro passo para controlar custos no sistema. Dirigindo-se à classe médica, Pita Barros defende o papel da Medicina Interna e critica a Ordem dos Médicos por colocar entraves ao regresso ao País de quem estudou Medicina no estrangeiro.

Gestão Hospitalar
(GH)– O Serviço Nacional de Saúde (SNS) é ou não sustentável?
Pita Barros (PB)
Se está a falar da questão financeira… a sustentabilidade financeira de qualquer serviço nacional de Saúde é o que os cidadãos do país quiserem que seja.
GH – Isso significa o quê?
PB
Significa que é uma escolha da sociedade no sentido de canalizar ou não recursos para sustentar o sistema.
GH
– E a melhor maneira de canalizar recursos seria através de que medidas?
PB
(risos) Eu respondo a todas as perguntas sobre sustentabilidade financeira
quando estiver desligado da comissão para o estudo da sustentabilidade do financiamento.
GH – Não está descontente com o facto do ministro da Saúde ainda não ter revelado o vosso estudo?
PB
Descontente não estou. Quem nos pediu o trabalho foram os ministérios da Saúde e das Finanças. O que eles fazem com o trabalho é uma decisão política.
Havia uma expectativa de haver uma discussão pública sobre o tema, mas não é forçoso que assim seja. Até porque, se vir o despacho da constituição da comissão, não está dentro dos passos pedidos um período de discussão pública. Se os ministros
quiserem manter o estudo reservado e só o divulgarem daqui a um mês, dois meses, um ano, estão no seu direito.
Como investigador, o que me custa é não me desligar do processo ao fim do tempo previsto para a realização do trabalho
GH
– E poder falar sobre a matéria…
PB
Sim… Obviamente respeitando, como em todos os trabalhos que faço, a confidencialidade.
GH
– Acha que o trabalho está a ser retido porque algumas das medidas que propõe são difíceis de aplicar?
PB
Para dizer a verdade, não sei. Pode ser por muitas e variadas razões. Desde acharem que não é possível implementar nada; acharem que não querem colocar a matéria em discussão pública agora, porque desviaria a atenção de outros assuntos que querem tratar, porque a implementação precisava de alguma tempo para ser pensada e eles não têm esse tempo para pensar; ou porque simplesmente eles acham que o trabalho é uma porcaria e que não vale a pena discuti-lo.
GH
– Mas como investigador não tem a ideia de que algumas das medidas serão muito complicadas para implementar, como o aumento dos impostos?
PB
Não sou eu que tenho de fazer esse julgamento. Mas a questão do aumento dos impostos surgiu através de uma notícia e não pela divulgação da comissão.
Se nós temos um determinado montante de prestações de cuidados de Saúde que recebemos; se temos preços e custos para essas prestações que recebemos; se estamos a dizer que estamos a baixar um bocadinho os custos mas que os custos da Saúde vão subir; se dizemos que queremos continuar a dar mais às pessoas… o que se gasta tem de ser pago por alguém. E o que se paga são impostos, pagamentos directos, contribuições de seguros privados voluntários, contribuições de subsistemas, são deduções fiscais. Isto significa que, se se aumenta de um lado tem de se aumentar do outro. Se se fizer uma lista de coisas que têm de acontecer uma delas é aumentar os impostos.
Como outra possibilidade é o racionamento. Imaginemos que, no limite, dizemos que só queremos gastar este montante daqui para o futuro. O Ministério disse que o Orçamento para 2007 iria ser constante até 2010.
Se eu estou a fixar as receitas que tenho, o que vai acontecer é que eu vou deixar de prestar alguns cuidados de Saúde. Como é que nós organizamos isso? Deixamos que seja aleatoriamente, ou seja, os últimos a chegar são os que são pior tratados porque já não há recursos para os tratar?
Não é uma questão de querermos aumentar os impostos. Não podemos querer ter ao mesmo tempo mais prestação de cuidados de Saúde e não pensar onde vamos buscar o dinheiro.
De certa forma, nós vamos tendo mais impostos quando a economia cresce, a colecta aumenta e isso permite que se gaste mais dinheiro do Estado em tudo. Agora, estamos num esforço de contenção orçamental global e dentro desse esforço há opções políticas que têm de ser tomadas.
GH – Então onde é que se pode cortar para não cortar tanto na Saúde?
PB
Ao fazer esta pergunta já está a assumir uma das soluções possíveis. Se eu tiver preços – custos - a aumentarem e não pensar que tenho de aumentar o financiamento de alguma forma, vou ter racionamento, que é uma palavra que as pessoas não gostam. O racionamento significa que alguns não vão ser tão bem tratados como outros. Eu posso querer organizar este racionamento ou nem sequer me preocupar com isso. Se um hospital tiver um determinado orçamento e o gastar no início do ano, chega ao final do ano e tem menos dinheiro, dá menos àqueles que lá estão nessa fase. Mas isto é aleatório.
Em que é que ficamos? Se os preços estão a subir e não mexemos em impostos, nem em contribuições, nem em prémios, tem de se fazer face à situação através de pagamentos directos; se não queremos mexer nos pagamentos directos, tem de ser outra coisa.
A grande esperança de toda a gente é que vamos conseguir manter os custos. Nós sabemos que os impostos estão a crescer porque a economia cresce e há sempre uma folgazinha todos os anos. Por outro lado, temos a ideia que há imensa ineficiência no sistema, o que significa que há prestações que, se calhar, não precisam de ser dadas, como, se calhar também, há custos excessivos.
Diminuir a ineficiência significa, com os mesmos fundos, tentar fazer o mesmo ou melhor.
GH – Mas tem de se optar por cortar em alguma coisa.
PB
Se eu conseguir cortar o desperdício e a ineficiência pura e simples eu arranjo folga para fazer mais.
GH
– Acha que as horas extraordinárias são um exemplo desse desperdício?
PB
As horas extraordinárias podem ter um papel útil em qualquer organização.
No caso das instituições de Saúde nós temos solicitações que são feitas à unidade que não são totalmente previsíveis. Mas quando as horas extraordinárias são usadas para colmatar necessidades permanentes e que se sabe que são permanentes, então aí são puro desperdício.
Também é provável que a forma como está montado o sistema de recursos humanos favoreça a existência de horas extraordinárias quando elas não são necessárias de todo. Eu lembro-me de, há quatro, cinco anos, ter tido contacto com uma pessoa que estava a fazer um estudo sobre o que aconteceria em termos de poupança de custos se se reorganizassem os bancos de urgência por forma a tentar diminuir os suplementos. E só por reorganização, mantendo o mesmo número de profissionais, conseguia baixar o custo em 20 a 30%.
Porque é que isso não se faz? Porque, obviamente, o que alguém paga é o que alguém recebe. A resistência virá de quem recebe.
GH – A culpa do desperdício é dos profissionais de Saúde?
PB
Dos profissionais de Saúde e da gestão, porque a gestão tem por missão
vencer essas barreiras. E algumas coisas são pura e simples desorganização; pequenas rotinas que poderiam ser melhoradas.
Fala-se, há uns 10 anos, que o sistema deveria estar mais orientado para o doente e menos para o profissional de Saúde, mas se olharmos para as nossas organizações, elas continuam a ser pensadas e a ser geridas de acordo com os profissionais. Então nos nossos hospitais… quantas vezes se ouve dizer que um director de serviço está disposto a abdicar de três camas porque o outro serviço precisa mais?
GH – Quer comprar uma guerra com os directores de serviço…
PB
Não, muitas vezes as pessoas não têm estas atitudes com má intenção. É uma questão de cultura, sempre foi assim que funcionaram. Provavelmente acham que é mais importante – e se calhar é – tratar bem os doentes do que estarem preocupados com isso. No campo das suas prioridades nunca está esse tipo de situações. E, claro, como em todas as empresas, públicas ou privadas, há sempre as pequenas quintas e pequenos poderes que todos têm.
Culpada é a gestão por não conseguir mudar esse estado de coisas.
GH – Acha que de uma forma geral os médicos gastam muito?
PB
Acho que, de uma forma geral, os médicos não têm em conta que o que gastam, a mais, é algo que impede de poder ser feito noutro lado. Não têm em conta a economia/custos/oportunidade.
GH
– Os médicos vão responder que o seu papel é cuidar dos doentes.
PB
Mas isso é uma atitude pouco ética da parte deles. Porque têm de pensar que o que podem fazer a um, se calhar, não podem fazer a outro. Os médicos já fazem esse equilíbrio com o tempo que dedicam a um ou a outro doente. A única coisa que se pede eticamente é que, da mesma maneira que gerem o seu tempo como recurso escasso que é, giram os recursos que a sociedade põe à sua disposição como recursos escassos que são.
GH – É mais uma guerra…
PB
Não… Do ponto de vista ético é basicamente a mesma coisa. Será que não
é válido dizer a um médico que ele deve gerir um recurso escasso que é o seu tempo de uma forma diferente do que gere os recursos da sociedade?
O médico pode ser tentado a fazer tudo ao doente desde que haja a perspectiva de haver um pequeno benefício que seja positivo. Do ponto de vista social isso significa que os recursos usados para esse pequeno benefício poderiam ser usados melhor noutra pessoa que tivesse mais benefício. E quem é que está em melhor posição para fazer o julgamento sobre esse equilíbrio? Não somos nós economistas, não são os gestores… é o médico que tem de ter esse papel.
GH – Acha que o tecto de 4%, imposto aos hospitais para a compra dos medicamentos está a adiantar alguma coisa?
PB
Na medida em que alguns hospitais estão a conseguir cumpri-lo, sim. Mas impor tectos desta forma só tem resultado enquanto houver desperdício para ser eliminado. Ao fim de um par de anos já se chegou ao limite e não será uma medida sustentável.
GH
– Acha que não se chegou a essa fase?
PB
Não tenho dados para dizer isso. O que este primeiro ano mostrou, desde logo, é que havia almofada para conseguir fazer isso. E a minha convicção é que se havia no primeiro ano também haverá no segundo. Agora se vai existir no terceiro e no quarto terá de ser visto com cuidado.
GH – Daqui a três anos deixará de ser uma medida viável.
PB
Não é sustentável fazer isso para sempre. Não faço a mínima ideia se é essa a ideia do ministério, mas ao impor essa medida - ao mesmo tempo que introduz a avaliação económica como medida prévia para a introdução de um medicamento no ambiente hospitalar - está a criar uma base racional para o futuro, que garanta um menor crescimento.
GH – E como está o SNS em termos de sustentabilidade geral?
PB
Neste momento estão a ser dados passos importantes nos cuidados continuados e nos cuidados primários que são importantes e que fazem sentido para uma sustentabilidade que garanta que as pessoas têm acesso aos cuidados que precisam. São medidas cujos resultados não vamos ver a curto prazo mas que se impunha que fossem tomadas.
GH – Concorda com as Unidades de Saúde Familiar (USF)?
PB
Sim, acho que faz todo o sentido. Todos os nossos cuidados de Saúde primários foram crescendo anarquicamente. Agora, quando se fala em fechar alguns postos de atendimento, alguns deles foram criados pontualmente, quase sem se pensar na articulação da rede.
Estas unidades não podem ser desligadas do resto. Se a ideia é estarem próximas da população não podem criar elas próprias estruturas administrativas de apoio, senão estamos a cair no mesmo erro que é criar mega centros de Saúde, que são instituições muito pesadas, sem flexibilidade e sem essa proximidade. Têm de existir uma série de serviços que podem ser comuns a várias USF e, ao mesmo tempo, devem criar-se economias de escala para gerir isso de forma razoável.
Nesta parte da sustentabilidade das prestações que são dadas à população, em termos de os cuidados certos chegarem às pessoas certas, acho que estas medidas fazem todo o sentido.
GH – E nesta equação qual é o papel dos privados?
PB
Mais de 50% do que consumimos em cuidados de Saúde já vem do sector privado: medicamentos, meios complementares de diagnóstico, consultas, tudo o que o Estado compra de materiais clínicos e equipamentos vem do sector privado.
GH
– E os hospitais, as clínicas privadas, os seguros de Saúde? Trazem mais custos ao SNS através das convenções?
PB
O trazerem mais custos não é um mal, desde que tragam mais prestações que tenham valor, mais “value for money”. O nosso drama com os seguros privados é que se levássemos a sério a ideia de Serviço Nacional de Saúde que cobre todos os portugueses e que não impõe restrições ao acesso, a não ser aquelas que se justificariam para evitar abusos, então não haveria nenhuma razão para existirem seguros privados de Saúde… nem para existirem subsistemas.
Mas pode haver restrições que fazem com que o SNS não faça aquilo que deseja, ou seja, há uma falta de capacidade do SNS e as pessoas têm de fazer seguros. Pode haver ainda situações em que o SNS cumpre aquilo que é desejável, mas as pessoas, porque querem mais, arranjam um seguro privado.
GH – E como se enquadra a ideia do ‘opting-out’?
PB
O ‘opting-out’ é dizer que o SNS transfere para uma outra entidade, designada pela pessoa, o valor que lhe seria imputado nos cuidados de Saúde. A responsabilidade de captação de fundos caberia ao SNS, que transferiria para outra entidade, assumindo esta todos os encargos dessa despesa.
De certa forma, nós temos isso neste momento… ou tivemos com a Portugal Telecom Associação de Cuidados de Saúde, acordo que foi denunciado no final do ano passado. O SAMS também tem uma capitação e temos a ADSE.
Em Portugal, os seguros privados actuam muito na complementaridade ao SNS e não de forma substitutiva.
Quanto aos prestadores privados, estou convencido que têm como intenção serem prestadores privados mas com financiamento público. Quanto a estes novos hospitais que estão a surgir em Lisboa vai ser interessante ver o que lhes vai acontecer porque não é claro que haja população para todos.
GH – Como vê a saída de tantos médicos do sector público para o privado?
PB
Mais do que essa fuga, preocupa-me o que se tem dito sobre a evolução temporal do número de médicos disponíveis. Isto é, quando começarem as reformas de algumas gerações, o facto de não ter havido substituição adequada não irá criar restrições nacionais. Isso preocupa-me mais…
GH – Acha que a solução é abrir mais faculdades de Medicina?
PB
Isso vai levar tempo.
GH – Baixar a nota de entrada na faculdade…
PB
(risos) As notas são consequência das limitações. Já se aumentou a capacidade agora vamos ver se será suficiente. Nem que a curto prazo se tenha de recorrer a importação de médicos.
Neste momento também temos um número elevado de jovens a frequentar cursos de Medicina fora de Portugal e esses médicos poderão estar dispostos a voltar.
GH – Estarão?
PB
Não acho que as pessoas foram fazer Medicina para fora do país por um ímpeto de querer ter uma formação diferente da portuguesa ou por quererem trabalhar lá fora. A maior parte das pessoas terá saído porque não conseguiu o acesso cá. O que os pode manter fora são barreiras a que eles voltem, criadas pelos próprios médicos que já cá estão. Nomeadamente, a Ordem dos Médicos.
Tudo o que se ouve falar da Ordem dos Médicos, relativamente aos portugueses formados em Medicina fora de Portugal, não vai no sentido de os ir buscar e integrálos, por cá. Alguma vez ouviu este discurso? O que se ouve é que eles, se calhar, não têm a formação que nós cá damos e, portanto, temos de pôr uma barreira para eles não dizerem que são iguais aos que cá temos.
Em vez de vê-los como uma oportunidade e se tiverem alguma falta dar a volta à situação e trazê-los, a reacção é que, como eles não são exactamente iguais, vamos mantê-los longe. GH

Internistas permitem reduzir custos nos grandes hospitais

GH
– Apresentou recentemente um estudo em que defende que a contratação de mais médicos de Medicina Interna permite aos hospitais pouparem dinheiro.
PB
Existe a percepção de que os médicos de Medicina Interna são mais gastadores que os outros serviços do hospital e tem havido uma tendência para tentar diminuir a Medicina Interna. Foi-nos perguntado o que é que existe de verdade aqui. A Medicina Interna acaba por juntar os doentes que têm várias co-morbilidades.
Significa que os doentes são, em média, mais complicados. Tenho de fazer uma normalização e perguntar se, à partida, tivesse um conjunto de doentes e os fizesse passar por uma especialidade ou pela Medicina interna onde é que eles usariam menos recursos. E esta foi a lógica do exercício. Dentro desse grupo de controlo consigo comparar com as especialidades. O que fizemos foi comparar alguns GDH com pneumologia, cardiologia e gastrenterologia.
Comparando com pneumologia, a Medicina interna tem menos dias de internamento. A Medicina interna parece ter melhores resultados, porque para a mesma taxa de mortalidade, usa menos recursos. Comparando com cardiologia, os resultados são essencialmente semelhantes e se alguma coisa existe é uma vantagem da especialidade de cardiologia. No caso da gastro não há diferença nesse GDH. O que o estudo vem dizer é que a Medicina interna não é apenas um serviço que gasta mais que os outros apenas porque estão habituados a gastar. Quando nós controlamos para a gravidade dos casos tratados, eles não são muito diferentes dos outros e podem ter algumas poupanças.
Também tentámos ver isso a nível agregado. Se a Medicina interna aumentar os custos, então aqueles hospitais que tenham uma maior percentagem de internistas deverão ter maiores custos que os outros, se a complexidade dos casos for igual. O que encontrámos foi que não existe esse efeito, mas precisamente o contrário. Os hospitais com maior percentagem de internistas tendem a ter menores custos para igual produção e para igual complexidade de casos tratados e que esse efeito é mais forte nos hospitais maiores.
GH – Mas calculou ganhos.
PB
Fazendo um exercício simples que era ver no agregado qual é o impacto dos internistas numa maior ou menor percentagem nos custos totais do hospital, se eu aumentar em 1% o número de médicos de Medicina e reduzindo outros médicos. E deu 11%.
GH – Dá um ganho de 11% nos custos finais?
PB
Mais do que o número de 11% é a magnitude disto. Isto deve fazer pensar que a Medicina Interna não pode ser vista apenas pela folha de cálculo sobre gastos de serviço pelo número de doentes tratados, porque isso ignora a severidade dos casos e, uma vez que eu tenha em conta essa gravidade, tenho uma poupança. Quando eu pegar nos doentes de Medicina interna e os colocar noutros serviços, os custos vão ser maiores ainda.
Entrevista de Marina Caldas, GH n.º 27

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