domingo, fevereiro 12, 2006

Liberalização das Farmácias (2)

Não vale a pena especular muito sobre a desregulação do sector farmacêutico (nas suas possíveis vertentes).
Vamos assentar algumas coordenadas:
1º- A decisão é política e não técnica;
2º- Os interesses prevalecentes são de grupos (financeiros, comerciais e industriais) e não de saúde pública;
3º- O governo tem a opinião pública esmagadoramente do seu lado, facto conseguido com demagogia e anos de diabolização da ANF (que, diga-se em abono da verdade, se foi pondo sempre e cada vez mais a jeito);
4º- O movimento é transnacional (Islândia, Noruega, Reino Unido, França, Irlanda, Alemanha, por exemplo) e corresponde à prioridade dada, no processo de construção do mercado interno, às necessidades da indústria farmacêutica e à total ausência de iniciativa europeia na saúde;
5º- Na sequência do "chumbo" da directiva dos serviços, vieram as autoridades da concorrência para conseguir o que por aquela via não foi conseguido;
6º- A ERS e outros com poderes de tutela (INFARMED, por exemplo) estranhamente nada disseram sobre o assunto;
7º- Ninguém sabe exactamente o que o governo quer e/ou vai fazer: onde encaixa, por exemplo, a promessa das farmácias sociais ?
8º- Os actuais proprietários de farmácia têm um problema. Os que defendem e pugnam por um modelo profissional, estrategicamente orientado para a prestação de serviços desligado do valor comercial do "bem", têm um problema. Mas o governo tem um enorme problema: se não liberaliza o acesso à propriedade, que dizer às cadeias de distribuição alimentar interessadas no negócio? Testas de ferro outra vez ? se não liberaliza a instalação tem um problema: os farmacêuticos não proprietários que querem ter farmácias. Se liberaliza tudo, então e as farmácias sociais, bandeira que foi da guerra de 2002 PS-ANF ? Se não liberaliza os preços, quais os ganhos de mexer nas farmácias ? Se liberaliza os preços, que garantias de equidade no acesso, e que negócios irão acontecer (entre farmácias e clientes institucionais e diferenciação dos clientes de acordo com o volume de consumo e a capacidade de pagar) ? E como controla as importações/exportações paralelas ? E que formatação(s)/medidas evitará(ão) integrações (verticais, horizontais ou ambas)?
Tudo isto, em Portugal, é tratado com os pés.
O Governo, com a responsabilidade que a si próprio criou, deve olhar para as seguintes situações:
a)- resposta do governo australiano à respectiva AdC;
b)- resposta do parlamento britânico à respectiva AdC (OFT - office of fair trading);
c)- alterações legislativas na Alemanha produzidas após a recomendação da respectiva AdC;
d)- o mesmo em relação à Irlanda;
e)- alterações em França sem intervenção da AdC.
Aguardemos com serenidade.
guidobaldo

tonitosa said...
Que dirão os milhares de licenciados em Ciências Farmacêuticas (é assim que se diz, não é?) que aspiram a ser proprietários de farmácia?
Deixem-me adivinhar: são a favor da liberalização da abertura...mas contra a liberalização do acesso à propriedade!

Mário de Sá Peliteiro said...
O que está em causa, em primeiro lugar, não é o que dirão os ca. de 5.000 licenciados em Ciências Farmacêuticas que aspiram a ser proprietários de Farmácia -sabendo que o aspiram no regime actual, num cenário de liberalização o número reduzir-se-á para metade - , mas sim o que é melhor para 10 milhões de Portugueses.
Se quisermos enveredar pelos interesses pessoais, então pode-se formular outra pergunta - que poucos ainda ponderaram:
Que dirão os milhares de licenciados em Ciências Farmacêuticas proprietários de Farmácia, na sua maioria com mais de 40 anos?
Deixem-me adivinhar: são a favor da liberalização da propriedade... mas contar a liberalização da instalação!
Será assim?
Mário de Sá Peliteiro said...
Tonitosa,
Hoje vem no PÚBLICO o anúncio de venda de uma clínica hospitalar no Norte, com TAC e tudo.
Porque é que não há Administradores Hospitalares (é assim que se diz, não é?) que estejam dispostos a arriscar, a investir, a contrair dívidas, a trabalhar sem horários e não compram essa Clínica?

tonitosa said...
M S Peliteiro
Porque o negócio da Clínica obriga a outros encargos e riscos que não o das farmácias. A clínica desde logo tem concorrência (dos próprios HH e de outras clínicas) depois depende do corpo clínico e dos interesses dos "médicos" em encaminhar para ali os doentes. Apesar de tudo o negócio da clínica não tem, ao contrário das farmácias, clientela garantida.
Nem é um negócio protegido.
Eduardo Faustino said...
Que alterações houve em França, das quais não estou a par?
O modelo Francês é essencialmente semelhante ao Português; curiosamente não foi utilizado no benchmark da AdC!!!

tonitosa said...
Andamos a ser Roubados?
Se na sequência do Protocolo assinado entre o MS e a APIFARMA o preço dos medicamentos genéricos pode baixar até 70%, ocorre-me perguntar:
Temos andado a ser roubados? E até lá chegarmos (a menos 70%) vamos continuar a ser roubados?
Solicito esclarecimentos aos "experts" da matéria.
E dizem que não pode/deve haver descontos nos medicamentos!
Será que a redução do preço dos genéricos vai ser conseguida pela degradação da qualidade do serviço prestado aos clientes?

Vladimiro Jorge said...
Um pequeno esclarecimento ao tonitosa: a diferença não está no preciosismo da licenciatura ser em "Ciências Farmacêuticas" ou em "Farmácia", mas no facto do curso ser o do ensino universitário ou o do politécnico. É que quer o conteúdo do primeiro, quer a respectiva média de entrada são substancialmente diferentes dos cursos do politécnico que têm o mesmo nome. Aliás, só é farmacêutico quem frequentou o curso universitário (no estudo da AdC é feita uma - deliberada? - mistura entre os dois cursos). O curso do ensino politécnico deveria chamar-se aquilo que realmente é: "curso de técnico de farmácia".
Ainda para o tonitosa: ao contrário do que acontece nas clínicas e hospitais, nas farmácias há uma enorme proximidade entre o exercício técnico da profissão e a rentabilidade do negócio. Os farmacêuticos dignos desse nome obedecem a regras deontológicas e técnicas quando prestam os seus serviços: é por isso que os bons farmacêuticos passam a maior parte dos seus dias a negar vendas e a arranjar chatices, muitas vezes com amigos, clientes de longa data e respectivas famílias. Se o farmacêutico tiver que responder perante o construtor civil (ou eng. mecânico...) proprietário da farmácia, obviamente que deixará de ter condições para o exercício livre da sua actividade.
É óbvio que me vão dizer que tudo isto é uma utopia e encontrar 1500 exemplos práticos de situações em que as coisas não aconteceram assim. No entanto, a questão é esta: devemos definir as nossas leis com base nos maus exemplos ou praticar uma cultura de excelência e tentar melhorar as coisas?
Por outro lado, tudo indica que a liberalização vai ser total e sem limites em relação ao número de farmácias sob o mesmo proprietário: será que a limitação a uma farmácia por pessoa ou sociedade (ou sócio de sociedade...) não seria a melhor solução, de modo a evitar a invasão do país por multinacionais (na Noruega demoraram poucos anos a conquistar 97% do mercado) condicionadoras do preço no anunciado contexto em que este também será liberalizado?
Em relação à questão que o tonitosa coloca sobre o preço dos genéricos...
- Porque será que o acordo é entre o MS e a indústria?
- Porque será que Portugal é o único país da Europa em que o consumo de genéricos é maior em volume de vendas que em número de embalagens?
(a resposta à sua pergunta é óbvia!)

Mário de Sá Peliteiro said...
Tonitosa said: «Apesar de tudo o negócio da clínica não tem, ao contrário das farmácias, clientela garantida. Nem é um negócio protegido.»
A ESS acabou de comprar a Clipóvoa.
Jorge Coelho e Boquinhas investem na Fisicontrol.
Muitos querem H. Loures.
As Misericórdias, a Fundação Oriente, Mello, Medis, SAMs, CESPU, todos querem investir na Saúde privada e o amigo Tonitosa aí cheio de medo. Invista, arrisque, tem o melhor dos trunfos: tem o "nau-au"... Já sei qual é a clínica hospitalar que está à venda, os médicos até são bonzinhos...
guidobaldo said...
Caro Tonitosa:
Deve questionar-se o mecanismo de formação e de composição do PVA (preço de venda ao armazenista). O resto, até ao PVP, é margem do armazenista e da farmácia + IVA. Publicada em Lei.
Se andámos a ser roubados ? Estranho é a constatação tardia. Se atentar no efeito dos genéricos e dos preços de referência no PVP da molécula, e na sausência de transparência de informação sobre quando é que uma molécula original atinge o "break even",só podemos tirar uma conclusão óbvia.
Em complemento ninguém sabe qual a margem de lucro da indústria.
Claro que pode haver descontos nos preços dos medicamentos !
E até podem ser desnecessátios os descontos para que os medicamentos sejam todos comparticipados a 100%
Tudo depende do método de cálculo e de fixação do preço de referência na comparticipação.
Se a IF praticar PVA abaixo dos preços de referência, aí tem.
Mário de Sá Peliteiro said...
Vladimiro said:
"tudo indica que a liberalização vai ser total e sem limites em relação ao número de farmácias sob o mesmo proprietário"
Sei há meses que não vai haver liberalização da propriedade nem da instalação.
Da propriedade porque CC está cheio de medo da "cadeia" da ANF.
Da instalação porque CC se informou melhor e descobriu que aos 5.ooo boticários que atrás referi se juntam milhares de espanhóis (só na Galiza há 2000 dispostos a percorrer a A28 e a A3!), gregos, polacos, eslovacos..
Então o que vai acontecer, em breve: a capitação desce para 2.ooo (+/-500) e mantém-se os concursos - ou seja, abrirão farmácias a contra-gotas, num processo lento, burocrático, sujeito a múltiplos obstáculos, impugnações e tribunais, estrangulado por natureza dada a ineficiência e limitação de recursos do Infarmed e ARSs. Além disso meia dúzia de parvoíces, sem relevãncia nenhuma, mas que possibilitam manchetes fantásticas e satisfazem a ânsia de sangue da turba, do tipo mnsrm nos hipermercados, vendas na internet, preços que descem mas não descem, descontos que fazem mas não fazem e umas Farmácias Sociais.
Enfim, espectáculo circense.
guidobaldo said...
A comparticipação de medicamentos é um "contrato" entre os cidadãos e o Estado. Não é um "contrato" entre o Estado e a IF.
O SNS tem o dever, a obrigação e o direito de seleccionar aquilo que paga. O que não faz.
O SNS tem o dever de identificar necessidades em saúde, prioriza-las, dispor-se a pagar por essas necessidades e não embarcar nas necessidades da IF. Parece que nada aprenderam com o caso Vioxx.
O Vioxx, banal anti-inflamatório que reivindicou propriedades farmacológicas que muitos peritos desde início desafiaram a provar, custava 8.000$00 a embalagem de 28 comprimidos. Os comparadores (tal como seleccionados nos ensaios clíncios) ibuprofeno e naproxeno, custavam dez vezes menos.
O SNS pagou milhões de contos numa comparticipação à luz de um contrato cujo seguimento duvido que tenha sido avaliado.
O Vioxx foi retirado do mercado.
E o contrato ? E os milhões que pagámos ? Quem nos vai ressarcir ?
Começar por colocar a tónica da racionalidade terapêutica na farmácia é começar a casa pelo telhado.Isso, para a IF, perdoêm-me a expressão, é "manteiga em focinho de cão".
O contrato MS-IF é a melhor garantia de irracionalidade da terapêutica na perspectiva das necessidades em saúde.
Sobre o post do Vladimiro Jorge, apenas corroboro o drama que refere e para o qual há muito fui sensibilizado: o farmacêutico de ambulatório (oficina) é o único profissional que conheço que quanto melhor trabalha menos ganha.
As medidas em curso, ao ínvés de coclocar em rota de aproximação o interesse do doente com o inetresse do profissional, tendem a pô-los em rota de colisão.
O problema base dos farmacêuticos não é a farmácia: é a política do medicamento. E CC colocou os farmacêuticos do lado do problema e não do lado da solução.
E não é por acaso que, ao contrário do que normalmente acontece, de um lado está Governo e Indústria. Do outro farmacêuticos, farmácias e grossistas. E curiosamente a autoridade reguladora pulverizou-se no meio disto tudo.
guidobaldo said...
Caro Eduardo Faustino
Dar-lhe-ei em breve nota documentada das alterações às farmácias feitas em França.(possibilidade de não farmacêuticos acederem, em sociedade com farmacêuticos, à propriedade) A AdC deveria, obviamente, ter incluido França na comparação à qual dificilmente poderão chamar de "benchmarking".