sábado, setembro 03, 2011

O fundamentalismo do equilíbrio orçamental

As regras de equilíbrio orçamental partem do princípio cínico de que toda a dívida do Estado é má e que só o que os mercados fazem é bom.

Debaixo de grande pressão da Alemanha, os países-membros da zona euro sentem-se obrigados a introduzir nas suas Constituições cláusulas que limitem as suas despesas orçamentais. O Governo alemão defende que estas cláusulas de equilíbrio orçamental são necessárias para evitar futuras crises da dívida soberana.

Será a regra do equilíbrio orçamental uma boa ideia? A minha resposta é não.

Primeiro, porque se baseia num diagnóstico errado da crise da dívida na zona euro. À exceção da Grécia, a razão por que os países entraram em crise pouco tem a ver com uma gestão deficiente das finanças do Estado. A causa fulcral dos problemas das dívidas na zona euro deve ser encontrada na acumulação insustentável de dívida dos sectores privados em muitos países do euro. Entre 1999 e 2008, quando a crise financeira estalou, os proprietários de casas na zona euro aumentaram os seus níveis de dívida de cerca de 50% do PIB para 70%. A explosão da dívida dos bancos na zona euro foi ainda mais espetacular e atingia uma percentagem superior a 250% do PIB em 2008. Surpreendentemente, o único sector que não teve um aumento do nível da dívida durante esse período foi o público que viu mesmo a sua dívida cair de 72 para 68% do PIB. A Irlanda e a Espanha, dois dos países com os problemas mais graves de dívida soberana, hoje em dia, passaram pelos mais fortes declínios dos rácios do défice anteriores à crise. Pelo contrário, estes foram os países onde a acumulação de dívida do sector privado foi mais forte.

Depois do crash de 2008, a acumulação de dívida privada na zona euro espoletou as dinâmicas deflacionárias que bem conhecemos, forçando os governos dos países da moeda única a permitir que os seus défices aumentassem. Isto foi conseguido através de dois canais. O primeiro consistiu nos governos assumirem a dívida dos privados (principalmente dívida da banca). O segundo operava através dos estabilizadores automáticos postos em ação pela diminuição das receitas governamentais induzida pela recessão. Em resultado disto, as percentagens de dívida do Estado em relação ao PIB começaram a crescer muito depressa depois da erupção da crise financeira. Desta forma, pode dizer-se que este aumento do défice foi necessário para salvar largos segmentos do sector privado.

Este aumento dos níveis de dívida do Estado tem seguramente pouco a ver com o esbanjamento de dinheiro por parte do governo que a imposição de regras severas de equilíbrio orçamental deveria travar. A Espanha e a Irlanda, na verdade, fizeram mais do que equilibrar os seus orçamentos: acumularam superavits. Ainda assim, isto não evitou que os países fossem avassalados por uma crise da dívida soberana. Portanto, ainda que os países adotem regras de equilí-
Paul De Grauwe brio orçamental, continuarão a ocorrer, no futuro, crises das dívidas dos Estados.

Isto leva-nos ao segundo problema relacionado com as regras de equilíbrio orçamental. Ninguém quer introduzir uma regra que estabeleça que os orçamentos de Estado devam ser equilibrados ano após ano. Por razões evidentes: uma regra assim implica que, quando se instala uma recessão e, portanto, o défice orçamental aumenta automaticamente, o governo é obrigado a aumentar imediatamente os impostos e o corte de despesas. Isso reforçaria a recessão e criaria uma espiral económica descendente. Nenhum governo moderno, nem sequer um governo alemão, quer uma coisa destas. Eis por que a regra de equilíbrio orçamental alemã é formulada em termos de orçamento ‘estrutural’. Este é o défice ou superavit orçamental que se obtém depois de retirado o efeito do ciclo de negócios. Tal regra de orçamento estrutural permite aos governos terem défice durante uma recessão desde que ele seja compensado por superavits durante os booms económicos.

O problema com esta regra é que será muito difícil de pôr em prática. A ciência económica não é suficientemente fiável para ser capaz de determinar quais são os componentes estruturais e cíclicos do orçamento. Pergunte-se hoje aos economistas portugueses quais são as componentes estruturais ou cíclicas do défice do Estado e receber-se-á respostas muito diferentes. Passa-se o mesmo em todos os outros países. Esta falta de conhecimento seguro permitirá aos governos cozinhar os seus próprios números. E encontrarão sempre economistas respeitados para apoiar as suas conclusões.
Um problema último com as regras de equilíbrio orçamental é que elas se baseiam numa visão cínica da atividade dos governos. A regra implica que, a longo prazo, a dívida relativa ao PIB tenda para zero por cento. A razão disto é que, com regras constitucionais de controlo orçamental, o governo não pode emitir dívida a partir de um certo limite. Uma vez que o PIB aumenta, a dívida face ao PIB deverá diminuir e em última instância tender para zero.

Não há razões económicas de peso para sustentar esta regra. Os governos investem em infraestruturas, em recursos humanos, em ambiente, justiça e segurança. Todos estes investimentos aumentam a capacidade produtiva de uma nação. Não há razão para se proibir os governos de emitirem dívida para financiar estes investimentos. Tal como não há motivo para proibir as empresas que investem produtivamente de contraírem dívidas. O que deve ser evitado é a dívida insustentável, não a dívida em si.

As regras de equilíbrio orçamental partem do princípio cínico de que toda a dívida do Estado é má. É também a visão de que os governos são apenas gastadores de recursos e que não contribuem para a produtividade da nação. Se se encararem assim as coisas, então sim, uma regra de equilíbrio orçamental faz sentido. Esta visão, no entanto, é expressão de um fundamentalismo económico que diz que o que os governos fazem é mau e só o que os mercados fazem é bom.

Expresso Economia - Paul De Grauwe, Professor da Universidade Católica de Lovaina, Bélgica, 03.09.11

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