O casamento da ideologia com os interesses
O programa do PSD é menos uma base para um programa de governo do que um manifesto ideológico contra o Estado
O programa eleitoral do PSD é menos uma base para um programa de governo do que um manifesto ideológico contra o Estado. Embora a retórica neoliberal mais radical tenha sido propositadamente evitada, as suas ideias e propostas não faltam. O caso mas flagrante é a aposta na privatização do serviço público de ensino.
Todo o receituário usual da ortodoxia neoliberal contra o Estado está lá: a asfixia do seu funcionamento, com a proposta de só substituir um em cada cinco dos funcionários públicos que saem, o que não pode ser sério; a privatização ou a gestão privada de serviços públicos (e não somente de empresas públicas), como a RTP ou os centros de saúde; a "liberdade de opção" entre os serviços públicos e o setor privado, com financiamento público deste. Tal é o caso da proposta relativa ao sistema público de ensino.
São três os pressupostos ideológicos desta proposta.
O primeiro tem a ver com a vulgata neoliberal de que o Estado não deve providenciar ele mesmo a prestação de serviços públicos, mesmo quando fora do mercado, como o ensino, devendo este ser fornecido por entidades privadas mediante pagamento público, seja por financiamento direto aos estabelecimentos (como hoje sucede com as escolas "associadas"), seja mediante subsídio aos próprios utentes, mediante a técnica do "cheque-ensino" (voucher, em inglês), com o qual os estabelecimentos privados seriam depois reembolsados pelo Estado.
O segundo esteio ideológico da liberdade de opção pelo ensino privado passa pelo tradicional argumento da "liberdade de ensino", tendo o Estado obrigação de financiar a opção de cada um. Como já foi dito muitas vezes, este argumento não procede. Primeiro, entre nós ninguém está impedido de optar pelo ensino que quiser, dada a liberdade de criação de escolas privadas e a equivalência da sua frequência; segundo, havendo um serviço público aberto a todos, não há nenhuma razão para que o Estado financie também o ensino privado (salvo para suprir carências do ensino público); terceiro, a liberdade individual de ensino (liberdade de ensinar e de aprender) é mais bem assegurada na escola pública, justamente por esta não ter, nem poder ter, um programa ideológico ou doutrinário, como frequentemente sucede nas escolas privadas, constrangendo a liberdade de docentes e de alunos no altar do proselitismo religioso e ideológico.
O terceiro elemento ideológico da liberdade-de-opção-pelo-ensino-privado-pago-pelo-Estado está no preconceito contra a noção republicana da escola pública ideológica a religiosamente neutra, como instituição de integração social, interclassista e interétnica. As elites conservadoras nunca compartilharam da ideia de um escola para todos, independentemente da origem e da condição social, preferindo sempre as suas escolas privativas, vinculadas aos seus valores próprios de distinção social e de doutrinação ideológica.
A par da ideologia, há os interesses. O primeiro é o interesse dos que atualmente já frequentam o ensino privado e que reivindicam ser pagos pelo Estado pelas despesas em que incorrem, colocando todos os contribuintes a financiar os seus privilégios. O segundo interesse é o do belicoso setor do ensino privado, boa parte dele ligado à Igreja Católica, o qual ambiciona aumentar a clientela, o negócio e a influência, parasitando financeiramente o Orçamento do Estado.
Não é difícil antecipar as consequências da liberdade de opção pelo ensino privado. A primeira será a institucionalização e o fomento da segmentação e da segregação social entre o ensino público e o ensino privado. As escolas privadas de elite (que aliás o são porque selecionam os melhores alunos) continuariam em geral vedadas às famílias sem grandes rendimentos, por a tabela pública não poder pagar integralmente os seus elevados preços. Além disso, uma vez que as escolas privadas dependem da procura, a sua repartição geográfica ignoraria naturalmente as regiões menos povoadas e mais pobres do País.
Do ponto de vista financeiro, o resultado global só poderia ser o agravamento da despesa pública ou a degradação do financiamento da escola pública. Desde logo, os primeiros beneficiários da liberdade de opção seriam obviamente os que já hoje frequentam escolas privadas sem encargos financeiros para o Estado e que passariam a custar uma considerável soma. Em segundo lugar, o desvio de procura para o setor privado não se traduziria numa diminuição correspondente da despesa com a escola pública, visto que seria impossível reduzir concomitantemente os encargos com a rede escolar pública. Há despesas estruturais que são essencialmente indiferentes à procura (edifícios, equipamentos, administração e gestão, pessoal contratado sem prazo). Sem cortes brutais na escola pública para atenuar o custo do setor privado, a liberdade de opção não seria portanto um jogo financeiro de "soma zero".
Nem se diga que estas propostas de privatização de serviços públicos decorrem do programa de ajuda externa da UE e do FMI. Nada mais longe da verdade. O único plano de privatização que há refere-se às empresas públicas, não aos serviços públicos. O programa de ajuda impõe a redução da despesa pública, não o aumento das transferências para o setor privado, que só aumentaria a despesa. O programa quer investimento na qualidade do ensino público, não o desvio de fundos públicos para o ensino privado. Enfim, o programa impõe a racionalização do Estado, não a demolição do Estado.
Nenhum interesse público, muito menos a disciplina financeira, justifica esta proposta, assente somente na convergência de preconceitos ideológicos contra a escola pública com interesses privados bem identificados, apostados em instrumentalizar o Estado e o orçamento em seu proveito.
O programa eleitoral do PSD é menos uma base para um programa de governo do que um manifesto ideológico contra o Estado. Embora a retórica neoliberal mais radical tenha sido propositadamente evitada, as suas ideias e propostas não faltam. O caso mas flagrante é a aposta na privatização do serviço público de ensino.
Todo o receituário usual da ortodoxia neoliberal contra o Estado está lá: a asfixia do seu funcionamento, com a proposta de só substituir um em cada cinco dos funcionários públicos que saem, o que não pode ser sério; a privatização ou a gestão privada de serviços públicos (e não somente de empresas públicas), como a RTP ou os centros de saúde; a "liberdade de opção" entre os serviços públicos e o setor privado, com financiamento público deste. Tal é o caso da proposta relativa ao sistema público de ensino.
São três os pressupostos ideológicos desta proposta.
O primeiro tem a ver com a vulgata neoliberal de que o Estado não deve providenciar ele mesmo a prestação de serviços públicos, mesmo quando fora do mercado, como o ensino, devendo este ser fornecido por entidades privadas mediante pagamento público, seja por financiamento direto aos estabelecimentos (como hoje sucede com as escolas "associadas"), seja mediante subsídio aos próprios utentes, mediante a técnica do "cheque-ensino" (voucher, em inglês), com o qual os estabelecimentos privados seriam depois reembolsados pelo Estado.
O segundo esteio ideológico da liberdade de opção pelo ensino privado passa pelo tradicional argumento da "liberdade de ensino", tendo o Estado obrigação de financiar a opção de cada um. Como já foi dito muitas vezes, este argumento não procede. Primeiro, entre nós ninguém está impedido de optar pelo ensino que quiser, dada a liberdade de criação de escolas privadas e a equivalência da sua frequência; segundo, havendo um serviço público aberto a todos, não há nenhuma razão para que o Estado financie também o ensino privado (salvo para suprir carências do ensino público); terceiro, a liberdade individual de ensino (liberdade de ensinar e de aprender) é mais bem assegurada na escola pública, justamente por esta não ter, nem poder ter, um programa ideológico ou doutrinário, como frequentemente sucede nas escolas privadas, constrangendo a liberdade de docentes e de alunos no altar do proselitismo religioso e ideológico.
O terceiro elemento ideológico da liberdade-de-opção-pelo-ensino-privado-pago-pelo-Estado está no preconceito contra a noção republicana da escola pública ideológica a religiosamente neutra, como instituição de integração social, interclassista e interétnica. As elites conservadoras nunca compartilharam da ideia de um escola para todos, independentemente da origem e da condição social, preferindo sempre as suas escolas privativas, vinculadas aos seus valores próprios de distinção social e de doutrinação ideológica.
A par da ideologia, há os interesses. O primeiro é o interesse dos que atualmente já frequentam o ensino privado e que reivindicam ser pagos pelo Estado pelas despesas em que incorrem, colocando todos os contribuintes a financiar os seus privilégios. O segundo interesse é o do belicoso setor do ensino privado, boa parte dele ligado à Igreja Católica, o qual ambiciona aumentar a clientela, o negócio e a influência, parasitando financeiramente o Orçamento do Estado.
Não é difícil antecipar as consequências da liberdade de opção pelo ensino privado. A primeira será a institucionalização e o fomento da segmentação e da segregação social entre o ensino público e o ensino privado. As escolas privadas de elite (que aliás o são porque selecionam os melhores alunos) continuariam em geral vedadas às famílias sem grandes rendimentos, por a tabela pública não poder pagar integralmente os seus elevados preços. Além disso, uma vez que as escolas privadas dependem da procura, a sua repartição geográfica ignoraria naturalmente as regiões menos povoadas e mais pobres do País.
Do ponto de vista financeiro, o resultado global só poderia ser o agravamento da despesa pública ou a degradação do financiamento da escola pública. Desde logo, os primeiros beneficiários da liberdade de opção seriam obviamente os que já hoje frequentam escolas privadas sem encargos financeiros para o Estado e que passariam a custar uma considerável soma. Em segundo lugar, o desvio de procura para o setor privado não se traduziria numa diminuição correspondente da despesa com a escola pública, visto que seria impossível reduzir concomitantemente os encargos com a rede escolar pública. Há despesas estruturais que são essencialmente indiferentes à procura (edifícios, equipamentos, administração e gestão, pessoal contratado sem prazo). Sem cortes brutais na escola pública para atenuar o custo do setor privado, a liberdade de opção não seria portanto um jogo financeiro de "soma zero".
Nem se diga que estas propostas de privatização de serviços públicos decorrem do programa de ajuda externa da UE e do FMI. Nada mais longe da verdade. O único plano de privatização que há refere-se às empresas públicas, não aos serviços públicos. O programa de ajuda impõe a redução da despesa pública, não o aumento das transferências para o setor privado, que só aumentaria a despesa. O programa quer investimento na qualidade do ensino público, não o desvio de fundos públicos para o ensino privado. Enfim, o programa impõe a racionalização do Estado, não a demolição do Estado.
Nenhum interesse público, muito menos a disciplina financeira, justifica esta proposta, assente somente na convergência de preconceitos ideológicos contra a escola pública com interesses privados bem identificados, apostados em instrumentalizar o Estado e o orçamento em seu proveito.
vital moreira, JP 10.05.11
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