sábado, dezembro 01, 2007

Peter Piot


Cimeira UE-África
"A sida está ao nível das alterações climáticas"
O director-executivo da ONU-sida, Peter Piot, vem a Lisboa para manter o combater à doença na agenda. Diz que em Portugal ainda é um problema falar sobre sexo e drogas.

Vera Lúcia Arreigoso

África continua a ser o pior local no mundo quando se fala em sida. O que está a falhar na estratégia local?
O VIH é a primeira causa de morte em África, antes de qualquer outra coisa, e continua a piorar. Neste momento, diria que temos uma mistura de boas e más notícias. Há 3,5 milhões de pessoas em terapia anti-retrovírica e mais de um milhão são africanas. É um progresso impressionante - porque há alguns anos era, basicamente, perto de zero - e mostra que é, absolutamente, possível fazer progressos. A segunda parte das boas notícias, é que um número de países, como o Quénia ou o Uganda, têm uma redução nas novas infecções. Sobre as falhas: diria que estão ao nível da prevenção da infecção VIH. Não está a ser feito o suficiente porque temos de falar sobre sexo. O principal desafio para mim é, ao mesmo tempo, garantir que o tratamento é acessível às pessoas com VIH e fazer mais na prevenção.

Quer dizer que os países não estão a tomar as medidas certas na prevenção?
Sim. Não chegamos a todos, em parte, devido às questões controversas em torno do sexo, mas também ao nível da transmissão de mãe para filho. Isto não deveria ser uma questão polémica porque não se trata de sexo mas de salvar bebés. É o resultado de duas coisas: os sistemas de saúde mal desenvolvidos e o estigma da sida. As pessoas não querem ser testadas, em particular as mulheres. Para mim, a falha está na questão da igualdade entre homens e mulheres, que não têm controlo sobre a sexualidade.

Só 20% das pessoas infectadas com o vírus da sida têm acesso a tratamento. Os laboratórios deviam vender os medicamentos mais baratos?
Já conseguimos progressos enormes, começámos quase no zero e estamos perto dos 2,5 milhões de pessoas. Os medicamentos de primeira linha em África - onde a sida é a primeira causa de morte - custam menos de um euro por dia. Portanto, o preço dos medicamentos, só por si, já não é um grande problema, apenas para os doentes que desenvolveram resistências. Os obstáculos são as pessoas não saberem que estão infectadas porque não há acesso suficiente aos testes, o estigma e a discriminação: podem perder o emprego porque são seropositivas.

Não é muito diferente do que ainda se passa na Europa.
É o mesmo. A diferença é que em África o problema é exacerbado devido à pobreza, aos maus sistemas de saúde e ao facto de continuar a não existir dinheiro suficiente. Tem havido um enorme aumento dos fundos para a sida mas é apenas metade do necessário.

Qual a sua opinião sobre o trabalho das ONG's? São importantes para garantir acesso aos serviços de saúde, a médicos, medicamentos...
Absolutamente. Aprendemos que para combater a sida precisamos dos Governos mas também das ONG's. Basta pensar como chegar às comunidades de homossexuais ou de prostitutas. É algo que os Governos não conseguem fazer facilmente, precisamos das ONG's. Todos nós temos que contribuir de alguma maneira.

Mas os países ricos têm dinheiro, bons cuidados e medicamentos e a prevalência do VIH continua elevada.
Nos países ricos, como a Europa, o número de novas infecções está a aumentar, sobretudo na população homossexual e imigrante, porque a atenção diminuiu, especialmente após a introdução do tratamento. Na Europa, não temos as desculpas da iliteracia e da pobreza e, em muitos países, tem existido um declínio na prevenção.

Falar sobre sida já não está na moda?
Sim, não está. Os Governos também têm apostado menos em campanhas de prevenção e, agora, o resultado são mais infecções: na Europa de Leste o aumento foi de 150% em cinco anos. Temos de conseguir mais dinheiro para o desenvolvimento da cooperação internacional e garantir que a sida é parte do negócio. Quando se constrói uma auto-estrada surgem outros territórios e milhares de novos trabalhadores, logo mais risco de infecção. As ONG's fazem uma ligação muito pessoal e são muito importantes. E temos que continuar a permitir que sejam usadas versões genéricas dos anti-retrovirais.

Os doentes com sida vivem hoje mais tempo. A medicina já fez as grandes descobertas?
Temos um tratamento mas não uma cura. Neste momento não há nenhuma pista sobre como conseguir esse objectivo.

Será possível nos próximos anos?
É difícil prever o futuro. Há dez anos, pensámos que a nova combinação de tratamentos tornaria possível a cura mas agora sabe-se que não. No entanto, é espectacular o que se conseguiu na vida quotidiana: um tratamento para a vida.

Quais são as principais metas da ONU-sida?
Para o futuro próximo, manter a sida na agenda política mundial - a sida está ao nível das alterações climáticas, um dos grandes problemas do nosso tempo. A segunda prioridade é fazer o dinheiro chegar a quem precisa e, depois, assegurar que há a mesma atenção para a prevenção e para o tratamento do VIH. Por cada pessoa que inicia o tratamento existem quatro que são infectadas. Portanto, a longo prazo não é sustentável se não apostarmos na prevenção. Isto implica abordar questões controversas como o sexo e a droga. E em Portugal, como noutros países europeus, é um problema.

Disse numa entrevista recente que a "sida é aquilo sobre que falam os líderes políticos quando sobra algum dinheiro no final do dia". Então, o que espera conseguir alcançar na cimeira?
Criar uma verdadeira aliança e reafirmar os compromissos. A Europa ocidental tem contribuído para os programas de sida em África, afinal, a sida é um desafio para o nosso mundo global. Está em todo o lado.

Não receia que o tema seja esquecido quando o encontro sair dos "media"?
(Risos) Pode ser. Sou realista e sei que estes encontros são conversa. O impacto é, talvez, apenas de 20% do que poderia ser mas é muito melhor do que não estar na agenda. Aí sei o que aconteceria: as pessoas diriam que não era importante. Mas também já aprendi que, por exemplo no passado, alguns encontros fizeram a diferença: muitos políticos regressaram a casa e começaram a fazer alguma coisa. Na Assembleia-Geral da ONU, em 2001, houve uma sessão especial e o Presidente Sampaio esteve lá e fez, realmente, a diferença. Portanto, estou bastante optimista.

O que é gostaria de conseguir antes de terminar as suas funções?
(Risos) Boa pergunta. Colocámos a sida na agenda de muitos países - e é assim que se consegue o dinheiro e a acção -, temos milhões de pessoas em tratamento e menos vão ficar infectadas. Isto não existia quando a ONU-sida foi criada e esta é a nossa verdadeira vitória.
semanário expresso, 01.11.07