quinta-feira, novembro 22, 2007

A Ciência não tem Limites


Se a ciência tem ou não limites e, tendo, se estará porventura a aproximar-se deles ou a esgotar-se, foi o tema, legítimo, da conferência internacional que decorreu com enorme sucesso e participação do público na semana passada na Fundação Gulbenkian. A questão, proposta por George Steiner para debate, foi assumida com entusiasmo por uma plêiade de conhecidas personalidades, da ciência e das ciências sociais às humanidades e aos media.

Curiosamente, ou talvez não, a mensagem transmitida pelos cientistas foi a de que o progresso científico não está limitado na actualidade nem no futuro previsível. Isto é, observadas de dentro, a ciência e a investigação científica não têm limites. Em termos cognitivos não se vê como se podem esgotar as interacções e a nossa apreensão da natureza. Pois não vivemos nela? Mais, mesmo que houvesse uma hipotética barreira (constante, como gostam os filósofos, ou então uma curva em expansão no tempo) a convergência assimptótica implicaria saltos crescentes até ao infinito. Isto é o que dizem os cientistas. O PÚBLICO, na sua edição de domingo de 28 de Outubro, bem poderia, pois, ter contrastado a opinião de John Horgan sobre o fim da ciência com o conteúdo da inspirada apresentação de Gerald Edelman (Prémio Nobel da Medicina), cujo título era significativamente Da dinâmica do cérebro à consciência: nenhum limite à vista. Ou ter dado realce à bela intervenção final de Freeman Dyson (que muitos dizem dever ter partilhado o Nobel da Física em 1965, mas sabemos bem quanto revelam e escondem estes prémios) denominada A ciência perto dos seus limites: nem pensar! Mas não o fez e foi pena.

É que os limites, barreiras, fronteiras, demarcações, condicionantes e condições aparecem quando se olha de fora para a ciência. Estão ligados com o facto de a ciência ser, como todas as outras, uma actividade social que é praticada numa sociedade altamente mediatizada. É que a investigação científica não é uma actividade especial praticada por sábios encastrados nas suas torres de marfim. A ciência, hoje, é um conjunto larguíssimo que envolve a investigação, a aplicação, a gestão, a aprendizagem e a divulgação de conhecimentos, atitudes e expectativas científicas. Naturalmente, a perspectiva social da ciência (que data dos anos 1970), mais recente do que a cognitiva, que nasce no século XVII, revela condicionamentos à prática alargada da ciência, exactamente provenientes da própria existência de comunidades científicas e da sua relação com as sociedades em que estão inseridas. A percepção societal do valor da ciência e o modo como na cultura de cada nação se incorporam a atitude e o pensamento científicos são factores externos, reais, condicionantes do desenvolvimento científico nesses países. Por exemplo, através dos níveis de financiamento público e privado que lhes são afectados anualmente. E, last but not least, pela invenção de regimes mais ou menos predadores da propriedade intelectual.

Finalmente, uma perspectiva comunicacional da ciência, relacionada com a problemática da existência de inúmeras linguagens especializadas correspondentes à diversidade de disciplinas e subdisciplinas (ainda mais recente, pois data do fim dos anos 1980) mostra como as barreiras à comunicação, à interdisciplinaridade e à transdisciplinaridade podem afectar as trajectórias e a conectividade das redes científicas. Tudo isto é real e merece ser debatido, o que pressupõe uma discussão alargada que não exclua, evidentemente, os cientistas.
Uma questão central que se põe à ciência hoje é a da existência de duas modalidades de investigar, a da motivada pela curiosidade ou curiosity-driven (a ciência que vem desde Galileu e Newton e que procura compreender as leis da natureza) e a impulsionada pela necessidade de produzir tecnologia de alta intensidade ou technology-driven (mais conhecida por "tecnociência" e que nasceu por alturas da Segunda Guerra Mundial). O balanço entre ciência e tecnociência está longe de estar resolvido e é causa de interrogações pertinentes sobre a capacidade de atrair os cérebros jovens mais aptos para resolver problemas intrincados, quando o isco de sucesso garantido e de segurança financeira é lançado do lado "tecnocientífico", guiado pelo mercado.

Penso que é o peso excessivo desta tecnociência nos Estados Unidos da América que motiva a percepção errada do fim da ciência. Realmente, o que há para reportar sobre os avanços tecnocientíficos pelos media não é espectacular, e o que tem foros de espectacular não é científico. É a pressão da mediatização - com que os cientistas têm de se habituar a conviver - que interpreta a falta de escândalos ou de situações dramáticas como um fim da ciência. Só os que acreditam no mito da criatividade sem mestre (a exemplo dos nossos antepassados do paleolítico quanto à fertilidade da terra) afirmam que a imaginação dos cientistas se esgotou.
No livro que publiquei em 2001 (na Quimera) sobre o que é ciência, defendo que a ciência é um elemento essencial do diálogo interminável entre o homem e o seu mundo. Não se vê, no século XXI nem nos próximos, como se conseguirá manter este diálogo de modo razoável e sustentável sem a participação da ciência. Não, a ciência não está perto do fim: e é a continuação do estímulo ao gosto pela sua prática pelos mais jovens, como vemos ano após ano, que constitui a melhor aposta face às incertezas do futuro. Director do serviço de ciência da Gulbenkian
João Caraça, JP 21.11.07