sábado, novembro 10, 2007

Manuel Delgado



Diz que há horas extraordinárias desnecessárias

«Baixos salários» têm de deixar de ser «álibi»
«Pôr ordem» no cumprimento dos horários, nas horas extra e na introdução de novidades terapêuticas. São estas algumas das tarefas que o presidente do conselho de administração do Hospital de Curry Cabral, Manuel Delgado, tem pela frente, numa unidade que deverá passar a EPE, ter menos camas e uma nova organização no futuro próximo.

Iniciou funções como presidente do conselho de administração (CA) do Hospital de Curry Cabral (HCC) em Abril. Que avaliação faz destes primeiros meses de mandato?
Manuel Delgado
— Da nossa parte não há dúvida de que as condições que nos foram dadas e a equipa que se conseguiu formar para a gestão deste hospital nos dão total e plena satisfação. Do ponto de vista da instituição, viemos encontrar um hospital com áreas muito importantes para o futuro do País, mas receoso. Viemos encontrar pessoas, não direi com medo de perder as suas posições, mas pelo menos com receio de que alguma coisa de mau pudesse acontecer, até porque se falava no encerramento da Urgência e no encerramento do próprio hospital com a construção de novos hospitais.
A nossa primeira função, e para isso tivemos o apoio do Ministério da Saúde, foi desanuviar esse ambiente.

TMJá não existe esse receio neste momento?
MD
— Penso que não. As pessoas estão mobilizadas, confiantes e trabalham com um horizonte temporal confortável à frente, já não estão com medo de perder amanhã o que hoje estão a fazer.

TMAcredita que o sistema electrónico de controlo da assiduidade irá permitir aumentar a produtividade?
MD
— Não sei, penso que há algumas possibilidades de isso acontecer. Ao fazermos o controlo por métodos automatizados dispensamos logo o controlo manual, que é muito pesado, ocupa muitas horas de trabalho e é muito falível. Penso que só por aí vamos ter ganhos importantes em matéria burocrática e de fidelidade na contabilização das horas. Não digo que as pessoas vão trabalhar mais, porque acredito que já trabalham aquilo que devem, em termos do definido no contrato, apesar de não haver nenhuma objectividade no controlo actual.
Portanto, vamos ter grandes ganhos em matéria administrativa e, provavelmente, em termos económicos, porque o momento em que se começam a contar as horas extraordinárias é muito mais rigorosamente aferido. Com o sistema actual é muito difícil saber se aquela hora extraordinária realmente é verdadeira ou não.

Acabar com a rotina dos atrasos

TMEspera contestação dos profissionais?
MD — Acho que a expectativa das pessoas é sempre muito imprevisível. Admito que possam não gostar de um modelo tão «big brother», mas penso que quem é cumpridor não tem nada a perder. Para aqueles que são menos cumpridores ou pontuais poderá haver alguma disciplina acrescida e alguma moralização nos horários de trabalho, e neste caso só têm a ganhar os doentes. Acho que é muito desagradável que um doente tenha uma consulta marcada para as 8.30 horas, chegue à hora e as consultas ainda não estejam a funcionar. Os compromissos que assumimos com os doentes em termos de horário devem ser cumpridos, e se nos atrasamos temos de assumir a responsabilidade. Claro que pontualmente podemos atrasar-nos, por causa do trânsito ou qualquer outra razão; mas isso é explicável, o que não pode ser explicável nem aceitável é que esse comportamento seja uma rotina.

TM
Encontrou essa realidade no HCC?
MD
— Não estou a falar do HCC, estou a falar em termos gerais. E não me venham dizer que não é assim, porque é, e todos o sabemos. E este modelo de controlo da assiduidade pode contribuir para uma maior disciplina e moralização na pontualidade. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, a pontualidade é uma questão decisiva nos hospitais. Os hospitais são estruturas tão complexas que a falha de um elemento pode desencadear um conjunto de falhas a seguir, como cancelamentos, atrasos, etc., coisas que não deveriam acontecer, pois bem basta os casos em que os atrasos acontecem por razões explicáveis, como por exemplo a delonga de uma cirurgia que se revelou mais complexa do que o previsto.

TM
Disse numa entrevista que as horas extraordinárias ainda são vistas como um complemento salarial e uma compensação pelas baixas remunerações, e que é preciso mudar essa filosofia. O «ponto» irá ajudar?
MD
— Acho que o controlo de assiduidade é um instrumento, mas essa é uma questão estruturante do sistema. A questão é saber que modelo remuneratório vamos utilizar para os profissionais de saúde e quando chegaremos ao ponto em que acabamos com o álibi do «ganho pouco, trabalho pouco» ou do «ganho pouco, tenho de fazer horas extraordinárias para receber aquilo que considero suficiente». Isso são os álibis que adulteram o modelo. O médico considera-se mal pago na base (e provavelmente estaremos todos de acordo) e por isso vai trabalhar fora para ganhar mais — e aí surge o primeiro problema, que é a acumulação de funções públicas e privadas, a promiscuidade que há e a tolerância que temos todos em relação a isso, já que na Saúde é tolerável a acumulação, o que não seria, por exemplo, na actividade bancária. Por outro lado, se o médico ganha pouco de remuneração base, tenta, na própria instituição pública onde trabalha, criar condições para ganhar mais, por exemplo fazendo projectos à parte, integrando equipas de Urgência, fazendo horas extraordinárias ou prevenções.

TM
Pensa, então, que muitas das horas extraordinárias que se fazem são desnecessárias?
MD — Estou convencido de que são.

O crivo indispensável

TMNessa entrevista disse também que os médicos têm de perder autonomia em favor da racionalidade económica. Reitera esta afirmação?
MD
— Esta questão prende-se com a rapidez do acesso aos medicamentos por parte dos doentes e com a rapidez com que a inovação entra nos hospitais. E há aqui um problema, pois nem tudo o que é inovação é bom para os doentes. O facto de termos tecnologias e medicamentos muito bons e modernos não invalida que tenhamos sobre estes uma apreciação rigorosa quanto à sua utilização. E nos hospitais, tal passa por um crivo muito sério das comissões de farmácia e terapêutica. Estas comissões, com a panóplia de tecnologias que já têm ao dispor dos doentes, vão aferir da oportunidade e da eficiência dos novos produtos. Há benefícios que representam um valor acrescentado muito pequeno e têm preços astronómicos.

TM
Considera que a decisão de dar ou não esse medicamento ao doente não deve ser do médico, mas sim da comissão de farmácia e terapêutica?
MD
— Claro, tem de haver uma política de medicamento no hospital. O hospital não é uma selva, em que cada um exerce a Medicina que lhe apetece e utiliza os medicamentos que quer. Por exemplo, há estudos rigorosos e aprofundados sobre o uso de stents com fármacos ou stents sem fármacos. Nós fomos ao NICE, em Inglaterra, e perguntei ao responsável se utilizavam stents com fármaco; ele respondeu que as recomendações para o serviço nacional de Saúde inglês iam no sentido de que os stents com fármacos têm indicações muito precisas. Em Portugal, quando apareceram, estes stents começaram a ser adoptados em todos os centros que fazem intervenção cardíaca e neste momento em muitos hospitais já vamos nos 80% e 90% de utilização. Ora, isto é uma perfeita inutilidade do ponto de vista clínico, e significa que cada um faz o que quer.

TM
Em algumas áreas existem guidelines internacionais. Acha que as comissões de farmácia e terapêutica devem sobrepor-se a estas?
MD
— Sim, fazendo o seu juízo dessas orientações. Até porque, mesmo que haja guidelines internacionais, em cada hospital há uma gama de doentes específica, os doentes não são todos iguais. E portanto as administrações dos hospitais e as comissões de farmácia e terapêutica devem, com a sua bitola e os seus critérios, adequar as guidelines internacionais à sua realidade.
A afirmação que apareceu no jornal é muito bombástica porque parece que submetemos a Medicina à economia, mas não é disso que se trata. Trata-se da conciliação dos interesses gerais do País e dos cidadãos com os interesses de alguns doentes.
É evidente que isto é limitador para o médico. O clínico, individualmente considerado, vai ser limitado na sua intervenção pelas avaliações que são feitas, e essas avaliações têm sempre uma componente económica. Os recursos não são ilimitados e se queremos um serviço público com equidade temos de utilizar com parcimónia e inteligência os recursos que temos. Eu não estaria aqui a fazer nada se não fizesse opções todos os dias, se dissesse ao médico que me apresentasse uma tecnologia nova: «faça favor de usar» e quem paga logo se vê. É assim no terceiro mundo, no primeiro mundo não é.

Estatuto EPE já em 2008

TMJá tem o contrato-programa do hospital definido?
MD
— Estamos agora a preparar o business plan para 2008. Para 2007 já havia um contrato assinado e seguimos o que estava definido, em termos formais, mas na prática já fizemos algumas alterações importantes. Embora o CA anterior já tivesse a ideia de fundir serviços e criar departamentos, nós já a trabalhámos muito mais e é possível que seja implementada a partir de Janeiro.
Além disso, até ao final do ano vamos apresentar um business plan para os próximos cinco anos, que estamos a definir com a ARS de Lisboa e Vale do Tejo. É preciso ter em conta que toda a estratégia que estamos a pensar desenvolver se insere num contexto de mudança do estatuto do hospital que, se tudo correr bem, irá passar a EPE no primeiro trimestre de 2008.

Pagamento por desempenho

TM - Acha que conseguirá reduzir o número de horas extraordinárias feitas no HCC?
MD
– É um processo difícil, porque isso passa muito por conquistar os profissionais por formas remuneratórias muito mais ligadas ao que fazem e muito menos ligadas à presença física.

TM
- Está a falar do pagamento por desempenho?
MD – Exactamente. Prefiro ter um médico a ganhar por desempenho do que ter um médico a quem dou 1500 euros por mês e depois «dou» horas extraordinárias. Isto não é rendível muitas vezes, outras vezes é com certeza; não estou a dizer que todas as horas extraordinárias são correspondentes a não trabalho, mas muitas horas extra que pagamos não sabemos ao que correspondem em termos efectivos de rendimento e produção. O que está aqui em causa são os doentes, e se estamos a pagar horas extraordinárias era bom que isso se repercutisse em resultados para os doentes, nomeadamente em listas de espera diminuídas, cirurgias feitas com menor intervalo de tempo e sem cinco ou seis meses de espera. Isto é que é pagar bem e com consciência. Agora se pago para o médico estar a dormir ou de vigilância num serviço, isso não tem qualquer rendibilidade para o hospital. Podem dizer-me que isso é importante porque um doente pode acordar com um problema, mas o certo é que a rendibilidade é muito menor. Se, pelo contrário, ligar o trabalho médico ao seu desempenho provavelmente tenho benefícios para a sociedade e também ganhos financeiros para o sistema.

TM
- Mas a introdução deste novo sistema retributivo depende da tutela…
MD – Sim, penso que temos todos de estudar melhor uma arquitectura remuneratória que, por exemplo, esteja incluída numa nova carreira médica, que permita distinguir mais níveis de competências, por um lado, e seja muito mais flexível e simples na promoção das pessoas ao nível da remuneração com base no desempenho, por outro. Isso exige sistemas de informação mais potentes, o que hoje em dia não é difícil, mas temos de os introduzir, de modo a poder avaliar o desempenho de cada pessoa, pois não pode ser pela simpatia do médico. Temos de ter sistemas de informação que individualizem o trabalho das pessoas, não basta ter um sistema de informação que dá referenciais e indicadores sobre o serviço. Só com essa capacidade de avaliação podemos introduzir sistemas remuneratórios novos, que associem a remuneração ao desempenho. Não somos todos iguais e essa ideia de nos taparmos uns aos outros e recebermos todos um valor médio não pode ser.

TM
- Acredita que esse novo modelo remuneratório poderá ser introduzido a breve prazo?
MD – Penso que o Ministério da Saúde está interessado nisso e a trabalhar nele, mas não sei exactamente o que está a fazer. Nós, profissionais de gestão, há muito que defendemos um modelo deste tipo.

Médicos em mobilidade

TM - Perante a falta de recursos que referiu, como vai fazer face à exigência da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), no sentido de que os hospitais elaborem listas do pessoal a colocar em mobilidade?
MD
– Temos isso em marcha. Desde Setembro que temos uma relação de diálogo estreito com os directores de serviço, no sentido de identificarmos situações e pessoas que eventualmente possam ser dispensadas. E essa dispensa poderá ter a ver com o facto de não estarem cá.

TM
- Está a falar dos profissionais em regime de licença sem vencimento?
MD – Por exemplo. Mas também pessoas que, pelas suas vicissitudes de vida, se dedicam pouco ao hospital, não aparecem ou estão poucas vezes, ou têm um nível de actividade e produção baixo e desinteressado. Eventualmente, vamos também definir algumas regras que permitam racionalizar os recursos. Se conseguirmos fazer isso, vamos com certeza dispensar alguns profissionais até à data que nos foi pedida.

TM
- E vão dispensar médicos?
MD – Eventualmente. Na área médica teremos alguma folga em certas especialidades, é verdade, mas não me parece que seja um valor significativo.

Quota para contratos a prazo é «manifestamente insuficiente»

TM - A reestruturação em curso no HCC vai implicar uma redução do quadro de pessoal?
MD – Essa é uma boa questão. Neste momento, estamos com graves problemas de falta de recursos humanos, em particular nas áreas administrativa e de enfermagem. A quota que a ARS [de Lisboa e Vale do Tejo] atribuiu ao hospital para os contratos a prazo é manifestamente insuficiente, e estamos a tentar fazer engenharia para conseguir «meter o Rossio no Betesga», isto é, manter os diferentes postos de trabalho e adaptá-los às necessidades que temos. É preciso não esquecer que os administrativos são fundamentais num hospital. Às vezes fico perplexo com algum desconhecimento de certas pessoas que não trabalham nos hospitais e que dirigem a Saúde, porque percebo a importância estratégica que tem o cuidador directo, mas se a máquina administrativa não funcionar nada funciona num hospital. Portanto, temos de ter os recursos mínimos e indispensáveis para dar credibilidade à organização. Os processos clínicos, a sua arrumação, a classificação de doentes, o planeamento, os registos, a facturação é um trabalho rigoroso que os hospitais têm de fazer. Não podemos ter bons resultados hospitalares sem isto, e temos de ter pessoal administrativo para tal.
Além disso, este hospital, neste momento, tem um grave problema administrativo, porque as consultas funcionam em vários sítios, e isso torna o sistema mais caro e mais trabalho-intensivo. Nós estamos até a fazer um esforço, que provavelmente não vai resultar, no sentido de imaginar soluções que permitam já concentrar as consultas, ainda que sem as infra-estruturas disponíveis. Vamos tentar remediar a situação, face à absoluta carência de pessoal administrativo. Mas podemos não ter sucesso e podemos ter de colocar à tutela a questão de não termos recursos suficientes para manter o hospital a funcionar como até agora.

Sector público tem de ser compensado pela saída de médicos para o privado

TM - Outra questão que tem levantado alguma polémica é a saída de médicos para o sector privado. Isso preocupa-o?
MD - Em parte. Quando vejo sair um médico que o hospital apoiou, acarinhou, que acrescentou valor ao hospital, não posso negar que isso deixa tristeza.

TM
- E geralmente são os médicos mais diferenciados que saem…
MD - Eventualmente. Mas não me preocupa tanto o volume, porque o sector privado não tem massa crítica suficiente, são dois mundos incomparáveis. O sector público tem uma dimensão que não tem paralelo no privado, seria até um pouco infantil dizer que os médicos do público vão todos para a privada e o sector público fica sem ninguém. Agora é muito fácil ir buscar, e pagar-lhes bem, pessoas que já estão formadas, nas quais o sector público investiu -- porque é bom dizer que quando um médico aparece sénior e experiente no privado ele custou milhões de euros ao erário público e aos portugueses. Provavelmente também irá chegar o tempo em que o sector privado faz investimento na formação médica, mas até agora não é assim.

TM
- Deveria haver algum tipo de compensação para o hospital que formou o médico que sai para o privado?
MD
- Penso que sim, e acho que vai haver inevitavelmente um modelo contratual que estabelecerá regras muito mais transparentes e justas para a saída do sector público para o privado. Isso vai ter de existir, porque o investimento brutal que fazemos na formação médica tem de ser justamente compensado no momento em que o médico sai.
Agora não acho que haja uma sangria, há médicos bons que saem, o que é pena, mas o sector público também tem grande capacidade de regeneração, porque é nos hospitais públicos que todos fazem a sua formação.

«O problema não está na falta de médicos»

TM - Estas saídas não o preocupam, mesmo tendo em conta a falta de médicos que temos e vamos ter ainda de uma forma mais acentuada nos próximos anos?
MD - Não diria que há falta de médicos em absoluto, há especialidades com algumas falhas. Na Anestesiologia, por exemplo, aqui no hospital temos problemas e muitos dos hospitais portugueses, quer no Interior do País quer nas grandes cidades, têm graves faltas de anestesiologistas. Na Radiologia e na Oftalmologia também há problemas em alguns hospitais, mas não me parece que seja um problema geral, nacional. Na minha opinião, o problema não está na falta de médicos. Num horizonte temporal de médio prazo, com o envelhecimento dos médicos seniores podemos ter algum problema de rejuvenescimento. Mas as universidades passaram a admitir mais jovens estudantes em Medicina, aliás penso que o pedido que o sr. ministro fez para que as faculdades aumentassem 600 lugares para o próximo ano irá garantir que esse rejuvenescimento se processe sem grandes perdas de médicos. É preciso ter em conta que nos registos europeus comparados nós temos cerca de 3,1 médicos por mil habitantes e a média europeia andará pelos 2,8, portanto, não estamos mal no cômputo europeu.

A transplantação e os desafios do futuro

TM - Que outras prioridades definiu para o mandato?
MD
- O hospital tem uma âncora muito forte, em termos de imagem, nos transplantes. É indiscutivelmente uma mais-valia singular no contexto português. Neste hospital fazemos mais de metade dos transplantes de fígado do País; no ano passado fizemos cerca de 115 transplantes, este ano contamos chegar aos 120, 130, o que é um recorde nacional. Por outro lado, iniciámos este ano, no mês de Julho, o transplante simultâneo de rim e pâncreas, onde penso que somos únicos em Portugal. É uma área que exige grande investimento, em termos tecnológicos -- e o hospital está bem equipado --, e exige recursos humanos de grande experiência e qualidade, que também temos. É uma área que queremos preservar, pelo menos no horizonte temporal dos próximos quatro, cinco anos. Estas áreas são muito acarinhadas pelo CA, até porque dinamizam muito outros serviços. A transplantação exige, por exemplo, um suporte muito grande dos cuidados intensivos, que aqui são de elevada qualidade.

TM
- Mas não é um entusiasta da ideia de criar, no HCC, um grande centro de transplantação de âmbito nacional…
MD
- Pode acontecer, e se acontecesse ficaria todo contente, mas temos que ter em conta a realidade. O Hospital de Todos-os-Santos (HTS) vai aparecer, num horizonte temporal de cinco, seis anos, e com certeza que, com o Hospital de Santa Maria de um lado e o HTS do outro, este hospital eventualmente não vai ter espaço para ser o tal grande centro de transplantação. Não me parece, nem é essa a nossa aposta. Evidentemente que no futuro esses centros mais concentrados ficarão nos grandes hospitais novos, não tenhamos ilusões. Se houver essa possibilidade com certeza que cá estamos para o acolher, mas não me parece que, do ponto de vista competitivo, seja essa a melhor estratégia nem aquela que o Ministério da Saúde irá apoiar.

A estratégia de diminuição de camas

TM - Além dos receios dos profissionais, que outros problemas encontrou no hospital?
MD - Encontrámos um hospital desequilibrado do ponto de vista estrutural, embora isso faça parte da lógica de desenvolvimento do hospital. As administrações anteriores pensaram reestruturar o hospital fisicamente, criando áreas de intervenção e de localização de serviços novas. Isso foi conseguido em grande parte, e o mérito cabe a essas administrações. Basta dizer que quando cá chegámos, mais de 50% das camas já estavam em instalações novas. Mas ainda há a outra parte que está nas instalações velhas, e por isso é que disse que há desequilíbrio. Se os doentes são de cirurgia têm instalações modernas, arejadas, funcionais e bem localizadas; se os doentes pertencem às Medicinas têm instalações um pouco piores. Aquilo que pretendemos é criar condições para que este desequilíbrio estrutural se resolva e, portanto, dar continuidade ao projecto anterior de relocalização de serviços. Mas com uma pequena diferença: estamos a apostar numa estratégia de diminuição de camas. Pensamos que o hospital, com as características, condições e potencialidades que tem, pode tratar os mesmos doentes ou até mais numa estrutura física, em termos de camas de internamento, menor. Desde Abril, reduzimos 30 camas, o que não foi fácil, até pela pressão a que os hospitais hoje estão sujeitos pelas Urgências e pelas taxas de ocupação elevadas de alguns serviços. A perspectiva é que consigamos, em 2008, reduzir mais 30 camas. Portanto, de um universo de 446 (mais nove camas para internamento curto de Psiquiatria) pretendemos passar para 386.

TM
- A redução de 60 camas é o objectivo final ou em 2009 poderá haver nova redução?
MD - Poderá haver, mas não nos parece já tão fácil, pois também não podemos entrar num processo de redução excessiva. Este é um esforço para o qual apostamos em duas frentes. Uma delas é a do ambulatório, pois é possível desenvolver mais a actividade ambulatória em detrimento do internamento, designadamente na área cirúrgica. A nossa cirurgia ambulatória tem excelentes condições, temos um bloco específico, o que não é muito comum nos hospitais portugueses. Esta vantagem, que derivou da construção das novas instalações do hospital, permitiu termos nove salas para a cirurgia convencional e uma ala à parte com três salas para cirurgia ambulatória. Isto permite dinamizar mais a cirurgia ambulatória, apesar de já termos um nível superior a 80%. Em áreas como a Ortopedia, Urologia e alguma Cirurgia Geral podemos aumentar a cirurgia ambulatória. Além disso, em especialidades como a Dermatologia ou a Endocrinologia também podemos introduzir modelos de actuação menos de internamento e mais de ambulatório.
Ao fazermos isso vamos reduzir camas, que é o nosso objectivo, e obviamente diminuir a estrutura física do hospital. Mas temos de criar um bom departamento de consultas, que não temos. As consultas externas estão mal instaladas e temos de criar condições para que os hospitais de dia, quer na área da Oncologia quer da Infecciologia, funcionem e dêem mais rendibilidade ao hospital.

Da era dos serviços para a era dos departamentos

TM - Pretende fundir serviços no âmbito da reestruturação em curso?
MD - Já se fizeram algumas alterações transitórias que pensamos consolidar no princípio do ano. Serviços de algumas especialidades médicas, como a Dermatologia e a Endocrinologia, foram integrados em serviços de natureza mais abrangente. Aquela ideia muito portuguesa de que quando há uma especialidade tem que haver umas camas para um director de serviço, e tem de se criar uma espécie de unidade própria com recursos próprios, tem vindo a dar lugar, em todo o Mundo e em Portugal também, a uma ideia de internamento mais polivalente.

TM
- Está a falar na criação de departamentos ou áreas médicas?
MD - Departamentos ou centros de responsabilidade, em que a cama passa a ter uma utilização polivalente. Acho que este é o caminho inevitável que temos de seguir, porque o facto de termos as camas muito acopladas à noção de especialidade médica cria menor elasticidade na sua utilização e, por vezes, temos camas cheias num lado, vazias no outro e não as podemos usar porque o director de serviço é diferente. É preciso fazer das camas uma utilização muito mais indiscriminada. Não vamos «dar um salto maior que perna» e por isso, numa primeira fase, é nossa intenção criar departamentos na área médica, cirúrgica e talvez um departamento geral para a área do ambulatório.

Urgência não fecha para já, mas…

TM - A Urgência do HCC esteve no mapa das Urgências a fechar elaborado pela equipa que propôs a reestruturação da rede nacional de Urgências, mas acabou por não fechar. Neste momento, qual é a indicação que tem da tutela?
MD - Neste momento temos uma posição clara do Ministério da Saúde sobre esta matéria, no sentido da decisão do sr. ministro, de que a Urgência continuava aberta.

TM
- Mas parece-lhe que essa é uma decisão de longo prazo?
MD
- Estas coisas nunca são de longo prazo. Dentro de pouco tempo vamos ter hospitais novos na área da Grande Lisboa. Nos próximos cinco, seis anos, aparece o Hospital de Todos-os-Santos (HTS), depois o Hospital de Loures e põe-se a hipótese de antes disso surgir o de Vila Franca de Xira, além do Hospital de Cascais. E isso pode afectar o papel deste hospital. A nossa ideia é que, nos próximos cinco, seis anos, este hospital não vai alterar muito a sua carteira de serviços, podemos é fazer uma reorganização interna para tornar o hospital mais eficiente. Quero com isto dizer que o hospital pode oferecer serviços de qualidade com menos custos relativos, melhorando a relação entre profissionais e doentes e entre camas e doentes tratados, e podemos por essa via aumentar a eficiência do hospital. Podemos também, neste período, dotar o hospital de uma estrutura mais equilibrada, como disse, e por outro lado mais confortável e cómoda para os doentes, melhorando a resposta em algumas áreas em que temos listas de espera. O hospital não pode ter listas de espera inaceitáveis como ainda tem em algumas áreas.

TM
- Em quais?
MD – Em Ortopedia, por exemplo. Portanto, nos próximos cinco anos não vai haver grandes mudanças na tipologia de oferta de cuidados deste hospital e provavelmente a Urgência também não irá ter grandes mudanças. A médio/longo prazo, num horizonte temporal de 10, 12 anos, há uma ideia que está a fazer o seu caminho, que é a de este hospital poder ser um hospital de referência para a cidade, ser um hospital de cidade.

TM
- E o que é exactamente um hospital de cidade?
MD - É um hospital que está próximo das pessoas, que dá uma resposta fácil e imediata aos problemas mais simples e mais comuns que as pessoas apresentam, ao nível hospitalar, e que se vai relacionar de uma forma muito mais amigável com os cidadãos que moram nesta zona da cidade e no centro da cidade que, num futuro próximo, deixará de ter hospitais. Quando os Hospitais Civis de Lisboa -- S. José, Capuchos, Desterro, Santa Marta, Estefânia -- saírem para a zona oriental de Lisboa, levando ou não a Maternidade de Alfredo da Costa, associada ao modelo do novo hospital, e ainda por cima admitindo-se a saída do IPO da zona onde está, Lisboa ficará servida de hospitais na sua periferia urbana, mas não dentro. E dentro poderá ser este hospital, que representará uma mais-valia de conforto, de comodidade e de proximidade para as pessoas.

O HCC do futuro

TM - Este hospital seguirá a linha de aposta nos cuidados continuados que o Ministério está a seguir para outros pequenos hospitais, que exactamente apelida de hospitais de proximidade?
MD - Não, de todo. O HCC não tem vocação para ser um hospital de cuidados continuados. Os cuidados continuados são uma lógica de proximidade para pessoas com um quadro de morbilidade muito específica, tratam-se de pessoas que estão em reabilitação relativamente complexa e prolongada ou a necessitar de cuidados paliativos. Não é essa a perspectiva que temos para o hospital. A perspectiva que temos é, como disse, numa fase de médio prazo, até 2012/2013, de o hospital manter, melhorar, aperfeiçoar e rendibilizar a oferta de serviços que tem; não queremos perder nem adquirir valências. A partir de 2012/2013, com a construção do HTS -- e antes disso o hospital tem de se preparar --, eventualmente o HCC terá uma pequena inflexão na sua estrutura de serviços, mas isso dependerá daquilo que o HTS oferecer. Evidentemente que o HTS, como grande hospital da zona oriental da cidade, e que vai albergar os hospitais civis no seu conjunto, vai ter níveis de modernidade e de sofisticação superiores a este hospital. Mas isso é mesmo assim, não estamos aqui a correr para o prémio do melhor, cada um tem de se adaptar às circunstâncias, desempenhar o seu papel, e o HCC pode ser um excelente hospital fazendo uma Medicina muito mais próxima dos cidadãos, em áreas de que o cidadão necessita.

TM
- Já sabe quais serão essas áreas em que o HCC apostará a longo prazo?
MD – Sim, há áreas em que já estamos a apostar para um futuro a muito longo prazo. Por exemplo, a Ortopedia, uma vez que estamos a falar de serviços hospitalares para uma população tendencialmente mais velha, e a parte cerebrovascular -- o hospital tem uma excelente unidade de intervenção vascular. Simultaneamente, temos de ter um bom serviço de Medicina Física e Reabilitação.
Em suma, faz sentido pensar este hospital em áreas onde seja capaz de associar uma série de especialidades à volta do doente, evitando que o doente ande de um lado para o outro à procura dos serviços. Esta ideia da integração e de gestão da doença, ao invés da organização por serviços, beneficia muito a comodidade e a focalização no doente.
Depois, a Urologia, uma área comprovadamente de crescimento face ao envelhecimento dos homens, e a Nefrologia, onde não há grandes respostas a nível nacional e mesmo em Lisboa (e este hospital é talvez o que mais diferenciação tem neste campo), serão outras valências a desenvolver. Portanto, temos uma série de áreas que são cruciais para o futuro do hospital, pensando já num hospital que tem de se articular e estar integrado num projecto nacional de saúde, com novos hospitais a crescer.

As vantagens do modelo EPE

TM - O novo estatuto EPE facilitará a execução dos projectos em vista?
MD – Esperemos que sim, porque permitirá estabelecer com a tutela um modelo mais célere de construção, através do capital social ou de uma programação de investimentos adaptada para o efeito. É evidente que há procedimentos a que não podemos fugir, como o processo concursal, mas podemos ter as coisas muito mais aceleradas por essa via.
Mas antes, a mudança de estatuto implica uma revisão do património do hospital, de modo a valorizá-lo, uma análise aprofundada dos recursos humanos que precisamos para o futuro, a atribuição de um capital social ao hospital e a programação dos investimentos necessários para que o hospital se concentre na sua parte nova. Queremos acabar de construir, completamente integrado na construção recente já existente, que está preparada para construir mais pisos e para alargar. Essa estratégia de construção e investimento também vai ser apresentada por nós. Pensamos instalar alguns serviços durante o ano de 2008 e outros ao longo de 2009, e mais alguns em 2010.

«Não posso aceitar que digam que os problemas todos da MGF se devem à falta de médicos de família»

TM - Recentemente, numa entrevista ao Semanário Económico, disse que os médicos de Medicina Geral e Familiar (MGF) não estão em falta, antes trabalham pouco e estão mal distribuídos, o que suscitou um veemente comunicado da Ordem dos Médicos. Era mesmo isto que queria dizer?
MD - Não, e já enviei uma carta ao bastonário, que vai ser publicada na revista da Ordem dos Médicos. Disse exactamente que, em primeiro lugar, não se pode cair na ingenuidade de afirmar que os problemas da MGF existem porque não há médicos. Não é sério dizer isso. Há algumas carências de médicos de família que temos de reconhecer, e às vezes a sua distribuição até é pior nos grandes centros urbanos. Tradicionalmente, há esta má distribuição dos médicos, quer dos de MGF quer dos outros. Quanto à referência sobre o nível de trabalho, a minha ideia não foi dizer que trabalham pouco, que são malandros. Quis dizer que o seu enquadramento, as suas motivações e as condições que lhes eram criadas não são muito susceptíveis de tirar deles a maior rendibilidade possível. E isso é verdade, tanto o é que o Governo criou a Missão para os Cuidados de Saúde Primários (MCSP) e as unidades de saúde familiar (USF) e os resultados são melhores. Portanto, não estou a dizer que trabalham pouco, estou a dizer que, pelos vistos -- e não sou eu que o digo, mas os próprios médicos de família -, há modelos organizacionais que permitem uma rendibilidade maior e um valor acrescentado dos médicos superior ao conseguido com os modelos tradicionais.
Foi isto que eu disse, as pessoas, e a própria jornalista, interpretaram mal, mas já me penitenciei junto da Ordem dos Médicos e do dr. Luís Pisco [coordenador da MCSP e presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral], e penso que o problema está sanado. O que não posso aceitar é que me venham dizer que os problemas todos da MGF, que são crónicos, se devem à falta de médicos de família. Há outros problemas, talvez mais importantes que têm a ver com o modelo de organização, e se calhar por isso é que se fez a reforma dos cuidados de saúde primários.

TM
- Esta reforma poderá ser decisiva?
MD - Esta reforma e não só. Se calhar também por isso é que o Governo português optou pelo modelo das unidades locais de saúde, pois também já se fez essa experiência. E gostava de dizer que há uma matéria sobre a qual falamos pouco, mas que acho muito importante: não basta que os médicos de família trabalhem bem, é preciso que se integrem bem com os hospitais e os médicos especialistas, se não quem perde é sempre o doente. Muitas vezes os doentes andam como uma bola de pinguepongue de um lado para o outro porque a passagem do médico de família para uma unidade mais diferenciada não é feita com rapidez, informação, consistência e diálogo entre os médicos. E o doente vai perdendo tempo e a paciência, desespera e muitas vezes acaba por ir a um médico privado. E esta falta de resposta, não direi do médico de família mas do sistema, é talvez a questão mais importante.

«Ponto» na calha

TM - A introdução do controlo electrónico de assiduidade, por determinação da tutela, deverá ser feita até ao final do ano. Como está a correr o processo no HCC?
MD
- Ainda não temos «ponto». Quando chegámos havia um processo iniciado em 2006 que parou porque a administração anterior pediu financiamento para isso, mas não o obteve. O CA actual, até por força da disposição do Ministério, está já em campo. Temos a empresa contactada e em princípio iremos fazer um contrato com essa empresa para a colocação das tecnologias necessárias, em vários pontos do hospital.
Entrevista conduzda por Maria F. Teixeira, TM 1.º CADERNO.12.11. 07

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