sábado, novembro 03, 2007

Nuno Grande

Diz que falta diálogo à governação de Correia de Campos

O Ministro tem uma visão pouco «humanista» da Saúde
Para Nuno Grande, se o SNS cumprir o orçamento não funciona. Mas sendo esta a principal preocupação de Correia de Campos, «exemplar» no trabalho «administrativo», revela uma visão pouco «humanista» do sector. Por isso, o médico do Porto defende a reinvenção do conceito de João Semana.
Considera-se «um médico de província numa grande cidade» e diz que a sua carreira começou quando, para ajudar um doente, ficou sem dinheiro para o eléctrico e teve de ir a pé para casa. Talvez por isso ache que a humanização da Medicina está nas mãos dos novos «João Semana» e é nesta perspectiva que critica a visão «contabilística» que Correia de Campos tem da Saúde. Amigo pessoal do ministro, Nuno Grande elogia-lhe o trabalho, mas «numa perspectiva meramente administrativa, não tanto numa perspectiva humanística».
«O ministro não dialoga, toma decisões», diz, para acrescentar que a sua principal preocupação é «não esgotar o orçamento», algo que, a acontecer, e nos actuais moldes, significa apenas que o sistema não funciona. «Para ser bom [o Serviço Nacional de Saúde], tem de dar prejuízo, ou seja, tem de dar resposta. E dar resposta às necessidades pode significar um custo cada vez maior.»
O médico, que assistiu ao nascimento do Serviço Nacional de Saúde (SNS), revela que não esperava que ele evoluísse desta forma: «Confesso que fui um pouco optimista e pensei que havia processos políticos capazes de dar resposta [às necessidades financeiras do SNS]». De resto, o problema reside no desenvolvimento tecnológico da Medicina nas últimas décadas que, por si só, encareceu os cuidados de saúde, despertando também uma maior procura destes mesmos cuidados por parte da população. «Quando o SNS arrancou prestava cuidados muito primários e, à medida que se foi tornando cada vez mais moderno nas suas actuações, foi sendo cada vez mais custoso.»

Doentes sugerem os exames
Satisfeito com a capacidade de intervenção que a divulgação científica, mormente por via da internet, trouxe aos doentes, Nuno Grande identifica aqui também um factor de promoção do desperdício, introduzindo o conceito de inequação do consumo. «Se a procura fosse apenas para as verdadeiras necessidades, até poderia ser equilibrada, mas hoje, e pelo acesso que a maior parte das pessoas tem à informação sobre os progressos científicos, os desejos são muito superiores às necessidades, enquanto os recursos são muito inferiores».
«Todas as grandes empresas farmacêuticas e tecnológicas têm processos de divulgação massiva dos seus progressos e, acriticamente, as pessoas vão tomando contacto com isso e quando chegam ao consultório já são elas quem sugere os exames — “Ó senhor doutor, não posso fazer uma ressonância?”, perguntam e, muitas vezes, nem sabem o que isso é», critica.
Por outro lado, pela simples melhoria dos cuidados de saúde, é natural que a procura aumente e, como tal, aumentem também os custos. Por esta razão, aquele que é um dos fundadores do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar considera que a luta travada por Correia de Campos «é perfeitamente desigual».
Algo desconfiado em relação à «ciência rápida» bebida dos novos meios de informação, o professor de Anatomia, que durante mais de 20 anos manteve actividade clínica como médico de família, discorda dos que dizem haver aqui algum desprestígio da Medicina, e considera apenas que aquilo que de «misterioso a profissão médica possuía é hoje menos evidente», e «o médico já não fala de cátedra». Se há algum desprestígio da profissão, defende, ele é provocado pelos «médicos que requisitam», aqueles que usam meios complementares de diagnóstico e exames, mesmo «sabendo antecipadamente que não vão ter nenhum efeito concreto». Fazem-no «apenas para dar resposta à necessidade do cliente».

Humanizar para poupar
Para Nuno Grande, o segredo da Medicina moderna assenta em saber jogar com os recursos de maneira a ser útil sem ser excessivo. «Temos de ensinar aos jovens médicos quais são os recursos que temos e como devem ser utilizados. Senão, a tendência é requisitar», adverte.
E aqui a humanização assume um papel preponderante. «O médico de hoje, mesmo o médico de família, já não está tão próximo das circunstâncias familiares como estava antigamente», diz, para acrescentar que «a “guerra” com as USF é exactamente essa: integrar socialmente o centro de saúde», que, advoga, deverá inspirar-se no modelo do País de Gales, onde os centros de saúde foram transformados numa espécie de «loja do cidadão com resposta para todos os problemas — de saúde, sociais e técnicos — do utente».

A proximidade médico-doente leva a que se estabeleça uma relação de confiança que permite ao médico «decidir pelo doente» sem ter a tentação de ceder a todos os pedidos que aquele lhe faz. Dispensam-se «exames inúteis» e o doente sai «bem tratado e satisfeito». Agora, quando a relação é impessoal, é natural, defende, que ao ver negado um pedido para realização deste ou daquele exame, o doente desconfie de que a intenção do médico é apenas poupar.
E por mais avançadas que sejam as tecnologias à disposição do diagnóstico, «a relação médico-doente não é tecnológica, é humana», mesmo no que toca ao processo de diagnóstico. De resto, a sua própria experiência confirma esta ligação: «Fiz clínica durante vinte e tal anos e, quando revi os ficheiros, achei espantoso que, em cerca de 12% dos casos, cheguei ao diagnóstico [depois confirmado] sem que a história clínica me permitisse chegar aí.» Isto «apenas pela forma como o doente me transmitiu o que sentia», porque «a comunicação entre o médico e o doente está para lá do racional» e é isto que as novas tecnologias podem anular, receia.
Para o professor, que apesar de jubilado continua a dar aulas, há que «estimular a consciência profissional dos médicos», também por forma a que eles se sintam responsáveis, «quer em nome dos utentes quer em nome da profissão». O médico, diz, «só tem sentido se estiver ao serviço dos doentes, mas também tem de ter em atenção que está ao serviço dos doentes porque tem uma determinada formação e essa formação atribui-lhe a capacidade de decidir o que é justo para cada caso e de saber o custo de cada uma das acções».

Pode ser gratuito, mas alguém tem de pagar…
Apesar da crise que o SNS atravessa e da procura do «lucro pelo lucro», Nuno Grande não acredita no fim daquilo a que chama «uma grande conquista», mas sim numa grande reformulação, onde o actual sistema sirva de suporte à orientação que vier a ser tomada.
O professor diz-se mesmo disposto a integrar o recém-criado movimento de defesa do SNS, desde que este mantenha «um serviço de altíssima qualidade, voltado para os cidadãos», mas sabendo de antemão que nunca poderá ser gratuito. Ou melhor, «o SNS até poderá ser tendencialmente gratuito para o utente, mas alguém tem de o pagar», ironiza. E avança com algumas formas de financiamento, além dos impostos, como sejam as doações ou transformando a contribuição numa obrigação social das empresas. «Pensar nele [SNS] gratuito é tirar-lhe possibilidades de resposta», conclui.

Dialogar para melhor governar
A capacitação e a responsabilização dos utentes assume neste processo um papel fulcral, com o médico a defender a criação de associações de utentes «civicamente responsáveis e que funcionem», sendo-lhes atribuído «o mesmo direito de intervenção que às ordens profissionais», articulando-se directamente com o Governo. Desta forma, advoga, os utentes sentir-se-iam «responsáveis pelo que pedissem e teriam consciência de quanto custava. A grande mudança está aí».
Nas palavras de Nuno Grande, o diálogo é exactamente o que falta a Correia de Campos para imprimir à governação um pendor mais humanista. «O ministro não tem tido a perspicácia política que devia ter, porque não explica as coisas», nomeadamente quando toma medidas em que «o impacte nacional predomina sobre o impacte local, como é exemplo o encerramento de várias maternidades». Em termos técnicos, o professor diz nada ter a apontar a estas decisões, no entanto acha que só podem ser tomadas depois de discutidas com as populações as soluções alternativas, e explicadas as implicações de cada uma delas.

Contra os «teddy tachos»
Nuno Grande fez parte do grupo de jovens clínicos que se bateu pela criação das carreiras médicas. «Andámos ao gritos pelas ruas, contra a polícia. Os antigos senhores chamavam-nos os teddy boys e nós a eles os teddy tachos», descreve, para se regozijar com a vitória de um sistema que, na sua opinião, «permitiu uma grande melhoria na qualidade da Medicina portuguesa».
Perante o fim anunciado do sistema que ajudou a criar, o médico transmontano que adoptou o Porto como sua cidade, exige da Ordem que se oponha a isto, ajudando a redefinir critérios. E, embora concordando com a contestação em relação à forma como a profissão está estabelecida, adverte para uma realidade comum a outros sectores da democracia portuguesa: «Aqui, como noutras profissões, estamos mais preocupados com os direitos do que com os deveres.»
TM 1.º CADERNO de 2007.10.22 07

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