quarta-feira, novembro 07, 2007

Carlos Ribeiro

Não podemos ser árbitros quando joga o nosso clube»
Admirador confesso do ministro da Saúde, Carlos Ribeiro aponta como principais problemas do SNS o facto de não se resolverem as «minudências» e a falta de médicos.
Por isso, o antigo bastonário alerta para a necessidade de se formarem médicos em vez de «engenheiros da Medicina», e sugere o retorno das carreiras à sua forma original.
«Tempo Medicina»Como vê as mudanças que têm ocorrido nos últimos tempos na área da Saúde? Acha que o sector tem evoluído de forma positiva?
Carlos Ribeiro — Todas as respostas de sim ou não são políticas e, muitas vezes, de opção extrema e pouco cuidada. Acho que o sr. ministro é uma pessoa extremamente bem informada, que sabe muito de Saúde e da organização dos cuidados de saúde. É um grande privilégio para o País ter à frente da Saúde alguém com a capacidade, os conhecimentos e a determinação do prof. Correia de Campos. Sou um grande admirador do seu currículo e carreira e acho que é o homem certo, no lugar certo e até no momento certo. Isto porque, obviamente, teríamos de fazer grandes mudanças no nosso sistema de Saúde e, com as condições que temos, administrar melhor o que há. As estruturas existentes — que são muito boas ou suficientemente boas —, não têm por vezes o número de técnicos com a distribuição cuidada indispensável. Por isso, as modificações que o sr. ministro fez e que tanto barulho de fundo geraram, nomeadamente nas maternidades, nas Urgências e nos SAP sem o suporte técnico desejado, parece-me que nenhum técnico pode deixar de aplaudir.
«TM» Surpreende-o o crescente número de instituições privadas no sector da Saúde?
CR
— Fui sempre um homem da função pública e alguém que trabalhou para que o Serviço Nacional de Saúde [SNS] continuasse a merecer a posição que tem no ranking mundial — o 12.º lugar. O aparecimento de serviços privados competitivos só pode ter vantagens desde que essa competição seja francamente bem codificada. Como em qualquer desporto, tem de haver regras, leis e igualdade de tratamento.
«TM»Concorda com a existência da Entidade Reguladora da Saúde?
CR — Com certeza, tem de haver uma entidade reguladora e tem de haver carreiras médicas, outra coisa que acho fundamental e que me preocupa muito.

Não às carreiras da Idade Média

«TM»Acha que as carreiras médicas não estão a ser devidamente valorizadas?
CR — Penso que alguns médicos, principalmente uns americanizados que há por aí, ainda não estão suficientemente conscientes do que representaram as carreiras médicas neste país. Fomos das primeiras profissões a instituir uma carreira com princípio, meio e fim e que se auto-regularizou. As carreiras médicas representaram para o País um salto qualitativo que só 20 anos depois se notou. É mais fácil e mais bonito inaugurar um hospital e ficar com o seu nome na placa. Quando se faz educação e se diz que têm de ser criadas condições para as pessoas fazerem aprendizagem ao longo da vida, isso não se vê imediatamente. Como alguém que andou a representar o País em alguns areópagos médicos, ficava sempre muito gratificado quando verificava que noutros países não havia carreiras organizadas, havia um senhor director que ao fim de um certo tempo dizia ao médico que trabalhava consigo que ele era especialista, ou seja, era uma carreira como se fazia na Idade Média, ao lado do mestre. Aqui cada carreira, de cada especialidade, foi estruturada, discutida e havia ainda, na fase inicial, uma avaliação externa.
«TM»Que entretanto deixou de existir…
CR
— E tudo piorou quando essa avaliação passou a ser interna. No nosso serviço somos sempre os maiores do Mundo. Houve colegas meus classificados com 18 valores, o que naquele tempo era uma classificação extraordinária, que a distinção que faziam entre os seus internos era entre 19,5 e 20 valores. Ora, não acredito que, durante vários anos, todas as pessoas que passaram por um mesmo serviço merecessem entre 19,5 e 20. Este tipo de avaliação deu cabo da competição, tornou tudo isto facilitado. Portanto, é uma pena que as carreiras médicas não voltem à sua forma inicial, isto é, sejam estruturadas, suficientemente programadas, feitas em serviços idóneos e com avaliação externa. Não podemos ser árbitros quando joga o nosso clube.
Por outro lado, os serviços privados não podem, sem colaborarem com o Estado, vir buscar elementos altamente qualificados — qualificação para a qual as nossas contribuições também entraram —, sem qualquer indemnização ao Estado. Isso não acontece com os pilotos, os futebolistas e muitas outras profissões.
«TM»Acha que as novas gerações de médicos estão mais bem preparadas?
CR
— Os novos médicos são um grupo extremamente interessante do ponto de vista intelectual e da capacidade de trabalho. Dentro da população portuguesa, são dos mais bem preparados, pois, por maiores que sejam as facilitações, não é um qualquer que tira 19 ou 18,5 valores no secundário. À partida, esses jovens que vão para as faculdades de Medicina têm uma capacidade de trabalho grande, porque para se tirar essas notas não basta ser inteligente e interessado, é preciso suor. Deste ponto de vista, a população não pode ser melhor, mas aquilo que pretendemos são médicos. E aí começa o problema, porque à entrada a avaliação é feita em função das características que referi, não se diz que estas pessoas têm aptidão para exercer Medicina. E exercer Medicina de facto exige a tal capacidade de trabalho e suor, mas também determinados parâmetros de criatividade, inteligência e memória. Portanto, a Medicina tem uma série de exigências que me parece que não estão suficientemente acauteladas com esse tipo de exames.

Do «engenheiro da Medicina» às «bruxarias»

«TM»Enquanto professor universitário que foi, como julga a evolução dos cursos de Medicina?
CR
— O curso passou por várias mudanças. E acontece que aquela Medicina baseada na comunicação médico-doente, a Medicina que defendo — de tal maneira que introduzi uma cadeira de comunicação no curso de Medicina [da Faculdade Medicina de Lisboa], que praticamente se extinguiu quando eu saí — tem sido desvalorizada. A primeira atitude do médico é ter capacidade de comunicação com o seu doente, com os familiares e com o todo social, nomeadamente com a Comunicação Social. Ora, hoje privilegia-se o equipamento. Por razões várias, as pessoas começaram a apaixonar-se pelos equipamentos. E o médico achou muito mais cómodo pôr um aparelho entre ele e o doente, porque o aparelho não cheira mal, não diz disparates nem tem uma grande verborreia que rouba tempo. A partir daí ficaram todos satisfeitos — os gestores porque sabiam quanto custava o equipamento, e porque achavam que era só aquele; os médicos porque perdiam menos tempo — e tempo é dinheiro; e os doentes porque tinham um papel na mão, às vezes a cores.
E os alunos estão interessados e empolgados justamente com esses exames, até porque o professor que maneja o equipamento também. Hoje não se estão a formar médicos, estão a formar-se engenheiros da Medicina, indivíduos que manejam equipamentos e através destes fazem as conclusões mais mirabolantes. E podem até ficar a saber muito de uma determinada patologia, mas muitas vezes não sabem do problema do doente, porque se calhar nem conversaram com ele, não viveram os seus problemas nem os resolveram, fizeram relatórios. Ora, isto é uma porta aberta para as bruxarias, as medicinas paralelas e afins.
Por outro lado, esses alunos altamente classificados são inteligentes e «marrões» e querem ser académicos, professores, «engenheiros», especialistas das especialidades de grande consideração social. E depois não há médicos de família nem internistas.
«TM»O sistema de organização dos cuidados de saúde actual pode pôr em causa a qualidade da Medicina?
CR
— Se se refere à capacidade de saírem das faculdades de Medicina indivíduos capazes de fazer cirurgia cardíaca, cirurgia oncológica e neurológica e cardiologia de intervenção de alto nível, não, pois aí somos óptimos. O problema é que o doente que precisa dessa qualidade da Medicina não é o nosso doente do dia-a-dia. O português refere-se ao SNS como algo que vai mal, porque não lhe resolve a hérnia, a catarata, a obstipação ou a gripe. O problema do SNS é não resolver as minudências, é não ter o contacto com as pessoas. Mas é óbvio que o sr. ministro não pode de momento resolver este problema, porque sem ovos não pode fazer omeletas.
«TM»E o não ter «ovos» é não ter dinheiro?
CR
— Não, é não ter médicos, e cada vez vai ser pior. Mas isso já há muito estava previsto. Quando eu estava na Ordem alertei, e até com alguns dissabores, para o que ia acontecer.

«Não podemos defender o indefensável»

«TM»Há quem diga que o ministro tem feito dos médicos o «bode expiatório» do que vai mal no sistema. Não concorda?
CR
— Não concordo que ele tenha essa ideia. Às vezes, o sr. ministro não tem uma análise muito profunda das expressões que quer empregar e ultrapassa um pouco aquilo que é o politicamente correcto. Mas essas pessoas até são as ideais como nossos adversários. Os médicos, se acham que ele está a fazer afirmações menos correctas em relação à classe, então que o digam. Isso acho bem, mas não podemos é defender o indefensável.
«TM»E o que é o indefensável?
CR
— O indefensável é quando, por exemplo, no jornalismo existem jornalistas que têm comportamentos menos éticos. Reconhecemos que isso acontece no jornalismo, na advocacia, entre os juízes, os polícias, os políticos, etc., e, portanto, também acontece entre os médicos.

«Concordo com a filosofia geral» do ministro

«TM» -- Está de acordo com a política do actual ministro da Saúde?
CR
-- Parece-me óbvio que o sr. ministro, com as condições que tenha, faça uma distribuição dos locais de atendimento, em função das necessidades e da população que tem de servir, tendo em conta que essa distribuição não se faz apenas ponderando o número de habitantes, mas também a capacidade de acesso aos serviços de que cada pessoa precisa. Concordo com a filosofia geral que o sr. ministro está a implementar, embora depois em campo existam determinadas anomalias, umas previstas e outras não, umas de solução relativamente fácil e outras mais difícil. Mas a vida faz-se caminhando e não é estando parado que se constrói algo. Há que fazer, e fazer quer dizer andar e corrigir. E, pelo que conheço do sr. ministro da Saúde, estou convencido de que ele irá corrigindo os desvios que possam existir em relação a esta ou àquela população.
«TM» -- Não está, portanto, pessimista em relação ao futuro da Medicina?
CR
-- Não estou nada pessimista, desde que se façam determinadas correcções, ou seja, deixem os professores escolher os alunos, deixem cada faculdade escolher os seus objectivos, pois pode haver até faculdades que queiram fornecer apenas engenheiros da Medicina. Não podemos é esquecer que qualquer médico tem de ser investigador, tem de ter capacidade docente -- porque o transmitir ao seu companheiro aquilo que sabe é uma obrigação desde o tempo de Hipócrates --, e tem de saber tratar o doente e gostar de comunicar com ele.
«TM» -- E também não está pessimista em relação ao futuro do SNS, enquanto tal?
CR
--Desde que lhe arranjem técnicos. O problema é que não há médicos. No distrito de Setúbal 26% da população, ou seja 150 mil pessoas, não têm médico de família. Isto equivale a uma cidade inteira sem médico!

Privilegiar a Medicina Interna e a Clínica Geral

«TM» -- Critica a falta de atenção que tem sido dada aos cuidados de saúde primários?
CR
– Como é que se vai conseguir que neste país haja de facto uma assistência de saúde se tudo está centrado no hospital? Nós somos hospitalários, todo o equipamento vai para o hospital, os médicos querem estar no hospital, que é onde há investigação (e bem), ensino pré e pós-graduado e onde é possível trabalhar em equipa. Depois há os centros de saúde na periferia, com um médico isolado, sem qualquer incentivo técnico (e não me estou a referir a dinheiro). E obviamente que a população recorre ao hospital, porque é aí que resolve os problemas, uma vez que nos centros de saúde não há condições. Por consequência, as Urgências não funcionam.
Há que privilegiar a Medicina Interna, para os hospitais, e uma Clínica Geral com condições para que os médicos trabalhem em equipa. Para isso tem de haver cada vez menos centros de saúde. O que interessa é que haja centros de saúde onde as equipas discutam os casos em conjunto porque a Medicina, sendo um contacto médico-paciente, também implica que haja uma equipa de suporte, a quem o médico possa recorrer. E hoje em dia isso não existe, pelo que só se poderá fazer quando houver centros de saúde «mães», onde as equipas funcionam, e que têm extensões. O centro de saúde tem de funcionar como um centro de investigação, de ensinamento e de aprendizagem ao longo de toda a vida de todo o pessoal que ali trabalha.

O perigo espreita em 2012

«TM» -- A abertura de mais vagas, que tem sido feita nos últimos anos, é suficiente?
CR – Suficiente não é, mas está no bom caminho. Só que cada abertura que se faz apenas tem resultados 12 anos depois. E as pessoas ainda não têm consciência de que ou somos invadidos por médicos espanhóis, italianos e de Leste, ou em 2012 vamos ter um problema muito grave. Por outro lado, estas pessoas podem vir fazer especialidades técnicas. E aquilo de que falei, da dificuldade em arranjar médicos dispostos a fazer a Medicina do contacto pessoal, que é muito gratificante mas que, para alguns é perder tempo, mantém-se, pois são precisos muitos técnicos, muitas enfermeiras e um número de médicos aumentado.
Depois, o médico tem de ficar mais na profissão de médico, porque a de engenheiro é para os engenheiros e para os técnicos.

Quando a população se tornou patrão do médico…

«TM» -- Acha que os médicos têm sido mal considerados nos últimos tempos?
CR
-- Com certeza. Não são só os médicos e também não é apenas nos últimos tempos. Os médicos eram prestigiados socialmente, junto do poder público o médico sempre foi indesejável, era sempre anti-sistema.
Quando a população se tornou patrão do médico é que tudo mudou, porque o patrão nunca tem muita consideração pelo empregado. Quando a profissão era liberal havia o respeito por alguém que era livre e independente e que fazia um contrato com o doente, que podia ser pagar nada ou pagar x; e por mais dinheiro que uma pessoa tivesse o médico podia sempre dizer que ele tinha de ir a outro colega porque não o podia ver. O mais interessante é que quando a Medicina dava pouco ao doente, visto que não tinha as técnicas extraordinárias que hoje se fazem e as taxas de mortalidade eram muito mais elevadas, o doente era mais agradecido. Hoje, cada vez se põe a fasquia mais alta.
«TM» -- Mas quando o ministro da Saúde vai para os meios de Comunicação Social dizer que os médicos não trabalham isso não ajuda nada…
CR
– Até pode ser que seja verdade, ele deve ter as suas razões. Eu não vejo que o sr. ministro tenha de ser advogado dos médicos, o ministro tem de ser juiz dos seus serviços. Os médicos têm é que provar que isso não é verdade, e para isso têm a Ordem, os sindicatos e a sua voz.

O fim das carreiras e os «charlatães»

«TM» -- As carreiras médicas estão mesmo condenadas à extinção, como alguns vaticinam?
CR
– Isso seria uma tragédia. Quando nas outras profissões se estão a criar condições para a especialização acabam as carreiras médicas? Isso seria regressar à Idade Média, à situação do mestre e do aprendiz.
«TM» -- Há quem diga que os privados não têm interesse na manutenção das carreiras médicas…
CR
– Isso não faço ideia, mas há uma coisa em que o povo português não tem interesse – é que as carreiras, de todas as profissões, não tenham uma avaliação suficientemente idónea. As carreiras médicas permitem não só que os profissionais se possam preparar, e portanto percorrer todo um trajecto que foi definido como o ideal para atingir a especialização numa determinada área, mas também saber que há um grupo idóneo que avalia o seu percurso. Aí o público fica descansado quando se diz que um determinado senhor é especialista de determinada área.
Não acredito que haja alguém que se interesse pela Saúde deste país que esteja a defender o fim das carreiras médicas, programadas e realizadas em serviços idóneos, carreiras que não sejam apenas livrescas, mas em que também haja conhecimentos técnicos e informáticos da «crista da onda», e devidamente avaliadas. Se alguém está interessado nisso não está a defender a saúde do povo português, está a compactuar com a possibilidade de se criarem charlatães.

«Não podemos deixar para o privado apenas o que é fácil e rendível»

«TM» -- Os privados deveriam poder formar médicos?
CR
– Acho que deviam poder formar, desde que existam, como há, serviços idóneos e abertos à avaliação externa. Não tenho problema em admitir a existência de uma rede de privados e uma rede de público a trabalharem numa competição sadia, mas com regras muito estritas. Não podemos deixar para o privado apenas o que é fácil e rendível e ficar no público a Oncologia, a geriatria e toda a patologia que é caríssima, em termos de terapêutica médica e em termos de terapêutica cirúrgica. Não quero que haja privilégios para um ou outro, quero que todos colaborem e que as pessoas possam optar.
TM de 2007.11.05