sexta-feira, novembro 23, 2007

Carta aberta ao MS


Carta aberta ao sr. ministro da Saúde a propósito da revisão do Código Deontológico dos Médicos — a propósito de uma decisão prepotente, autoritária, juridicamente insustentável e politicamente contraditória.

1 — Como é do conhecimento geral, as normas deontológicas dos médicos estão inscritas no Código Deontológico, que tem valor regulamentar interno. Ao contrário de que acontece com outras Ordens, as normas deontológicas não fazem parte integrante do Estatuto da Ordem dos Médicos. Se tal acontecesse, e porque os estatutos das ordens têm carácter normativo, as disposições actualmente constantes do Código Deontológico dos Médicos relativas ao aborto não seriam aprovadas pelo poder legislativo.

2 — Acresce que no Estatuto Disciplinar dos Médicos e no Estatuto da Ordem dos Médicos (ambos aprovados por decreto-lei) está previsto que constitui infracção disciplinar a violação de quaisquer normas constantes do Código Deontológico.

3 — Geram-se, assim, contradições jurídicas insanáveis. Um médico actuando ao abrigo da lei poderia vir a ser sancionado pela Ordem dos Médicos, ainda que sem consequências, visto a acção disciplinar desta ser sempre recorrível para os tribunais administrativos. O argumento de que nunca a Ordem dos Médicos sancionou médicos que tivessem participado no processo de IVG de acordo com a legalidade vigente significa não só hipocrisia, mas também uma perigosa banalização dos instrumentos de intervenção da Ordem nos âmbitos deontológico e disciplinar. De futuro, sempre se poderia aduzir a interrogação: se um médico não é sancionado por violar o seu Código Deontológico em determinadas matérias porque haveria de ser sancionado em outras?

4 — As contradições acima identificadas existem desde que o Código Penal veio despenalizar a interrupção voluntária de gravidez por motivos não relacionados com a vida da mulher grávida, e o quadro legal vigente apenas as acentuou. Neste contexto, defendo a revisão do Código Deontológico ou do Estatuto Disciplinar, sem prejuízo de admitir que a Ordem dos Médicos possa adoptar recomendações éticas, ainda que não conformes com a lei, desde que seja absolutamente claro que, por serem recomendações, do seu não cumprimento não resulta qualquer consequência jurídica.

5 — Outra coisa é a intervenção do ministro da Saúde sobre esta matéria, pretendendo obrigar a Ordem dos Médicos a rever o seu Código Deontológico.
Ora, parece este Ministério descurar que, pese embora a OM ser uma associação pública, na realidade pertence à administração autónoma do Estado, administrando-se a si própria, definindo com independência a sua forma de actuação e gestão, sem que esteja subordinada às ordens ou orientações do Governo.
Quando muito, o único poder que o Ministério da Saúde se poderia arrogar sobre a OM seria um poder de tutela (e mesmo este não se presume), que se consubstanciaria num poder de fiscalização que, no entanto, não lhe permitiria dirigir esta ordem profissional.
A OM tem um poder regulamentar autónomo, nomeadamente no que às questões de natureza ética e deontológica concerne, pretendendo o Ministério da Saúde estabelecer uma relação de hierarquia que não existe.

Assim, é absolutamente desprovida de sentido a posição assumida pelo Ministério da Saúde, no sentido de obrigar a Ordem dos Médicos a alterar o seu Código Deontológico e a mesma é tomada ao arrepio do próprio partido do Governo. Na verdade, o projecto de lei n.º 384, apresentado à Assembleia da Republica pelo PS e referente ao regime das associações públicas profissionais, prevê que «ressalvado o código deontológico, as associações públicas profissionais não podem deliberar sobre o regime jurídico da profissão».

Resulta assim que a decisão do sr. ministro da Saúde é prepotente, autoritária, juridicamente insustentável e politicamente contraditória.

Finalmente, não pode esquecer-se que a intervenção do sr. ministro da Saúde ocorre no momento em que decorre o processo eleitoral para novos corpos gerentes da Ordem dos Médicos. Não sendo crível que o sr. ministro desconheça este facto, bem como as diversas posições das candidaturas em presença, é legítimo especular-se se este exercício de autoridade musculada não pretende aproveitar eventuais divergências entre médicos ou mesmo algum interesse em desencadear conflitos que promovam uma pseudo-imagem de firmeza dos actuais dirigentes da Ordem dos Médicos que, até agora, não conseguiram mostrá-la.
miguel leão , TM 1.º caderno 19.11.07