terça-feira, outubro 02, 2007

Grupo Mello ganha ao Estado


Depois de um ano de trabalho, os juízes foram unanimes em considerar que o Grupo Mello tinha razão no diferendo sobre o Amadora-Sintra
O conflito entre o Ministério da Saúde e o grupo que gere o Amadora-Sintra terminou. O Estado não conseguiu provar que tinha razão

MAIS de 38 milhões de euros (7,6 milhões de contos) é quanto o Estado terá de pagar à sociedade gestora do Hospital Amadora-Sintra, por incumprimento de contrato durante os anos de 2000 e 2001.

O tribunal arbitral independente, nomeado há cerca de um ano para dirimir o conflito entre as duas partes, terminou esta semana o seu acórdão e a decisão nele expressa é totalmente favorável ao grupo privado, dirigido pela José de Mello Saúde, que, desde 1995, assumiu a gestão daquele hospital público. O grupo Mello reivindicara do Estado o pagamento de 33 milhões de euros, mais juros, valor que agora o tribunal arbitral determina que lhe seja pago. O Estado sai derrotado de um conflito que se arrasta há três anos.

Condenada a cumprir
Das 14 questões colocadas pela Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa, que representa o Estado no contrato, o tribunal arbitral responde favoravelmente apenas a uma - a que tem a ver com a transferência de acções da sociedade - e, mesmo nessa, ressalva estar-se apenas perante uma irregularidade formal, que não põe em causa a relação contratual entre o Estado e o grupo privado.
Na mais importante das reivindicações da ARS - que defendia que o Estado era credor de 77,9 milhões de euros (15 milhões de contos) -, a resposta do tribunal arbitral é clara: «A ARS não logrou provar os factos sobre os quais alicerça o pedido formulado», pelo que «este terá forçosamente que improceder na totalidade».
São cerca de 350 páginas, assinadas e aprovadas por unanimidade pelos três juízes nomeados - João Calvão da Silva, Maria de Jesus Serra Lopes e Fausto Quadros -, que o ministro da Saúde, Luís Filipe Pereira, quer tornar públicas, conforme disse ao EXPRESSO. Nessa medida, este acórdão vai ser depositado no Tribunal Administrativo do círculo de Lisboa, podendo ser consultado por todos.
«O Estado foi condenado por ter argumentado de forma frágil, o que é lamentável. E agora vamos enfrentar custos graves, por causa de decisões tomadas de forma extemporânea», afirmou, quando confrontado com o conteúdo do acórdão. «A partir daqui, deixa de haver razão para questionar a relação contratual com a entidade gestora do Amadora-Sintra ou, sequer, para rescindir o contrato», declarou.
Como se não bastasse a recusa em aceitar as reclamações da ARS, o tribunal arbitral vai mais longe e considera procedentes as exigências da sociedade gestora. Nas conclusões do acórdão, afirma-se mesmo que «a ARS é condenada a cumprir o contrato».
Em causa, além da suspensão dos pagamentos, decididos a partir de 2000, estão acertos de contas feitos fora de prazo nos anos que se seguiram e que o tribunal entende deverem ser feitos conforme «os exercícios dos anos anteriores».
Em 2000, o Estado estava em falta com 1,286 milhões de contos (6,417 milhões de euros) - o saldo global favorável à entidade gestora é de 5,034 milhões mas, em Janeiro de 2002, o Ministério reduziu essa dívida em 3,752 milhões.
A situação descrita pelo tribunal arbitral complica-se em 2001. O valor da remuneração devida pela ARS relativamente ao exercício deste ano é de 4,297 milhões de contos (21,435 milhões de euros). Segundo os juízes, sobre estes valores incidem ainda os juros de mora «à taxa legal para créditos de que são titulares empresas comerciais» - ou seja, mais cerca de um milhão e meio de contos. Apurado ficou ainda um valor de juros em dívida pelo Estado, relativo a «atrasos no pagamento da remuneração referente a 1999», e que somam cerca de 700 mil contos (3,341 milhões de euros).
Uma das reivindicações da sociedade gestora tinha a ver, por exemplo, com o aumento dos encargos com doentes com sida, especialmente com medicamentos antiretrovíricos. E, também aqui, o tribunal arbitral considera estes pagamentos como «devidos» pelo Estado. Já a utilização de camas privadas no hospital, uma das dúvidas levantadas pela ARS, não foi considerada procedente.

Contas certas até 1999
Das conclusões do tribunal arbitral ressalta ainda o facto de que, entre 1996 e 1999 - durante o mandato da ex-ministra Maria de Belém -, as contas entre Estado e sociedade gestora estarem certas, não havendo, portanto, acertos a fazer.
O conflito entre as duas partes surgiu em finais de 1999, quando a Administração Regional de Saúde (ARS) de Lisboa, com o aval da ministra da Saúde de então, Manuela Arcanjo, decidiu suspender os pagamentos devidos pela sociedade gestora, alegando que esta não estava a cumprir o contrato e que ainda devia ao Estado cerca de 15 milhões de contos. O ministro socialista que se seguiu, Correia de Campos, demitiu a presidente da ARS que defendeu esta posição por entender que estava em causa o bom nome do Estado. Mas não repôs os pagamentos à sociedade gestora, decidindo, em contrapartida, que o assunto devia ser avaliado pelas Inspecções-Gerais de Finanças e de Saúde e pela Procuradoria-Geral da República.
Com a entrada na João Crisóstemo de Luís Filipe Pereira, o conflito mantém-se mas a solução passa pelo tribunal arbitral, cuja criação estava, aliás, prevista no contrato. Nesta altura, já a sociedade gestora tinha refeito as suas contas e exigia do Estado um pagamento de cerca de 6 milhões de contos mais juros de dívidas atrasadas.
O último episódio desta história foi protagonizado pelo Tribunal de Contas, cujo Ministério Público acusou 26 dirigentes do Ministério da Saúde de actuação negligente no acompanhamento do contrato do Amadora-Sintra, exigindo-lhes indemnizações da ordem dos 80 milhões de euros.
semanário expresso

O ESTADO tem de pagar 38,2 milhões de euros à sociedade gestora do Hospital Amadora-Sintra por incumprimento do contrato em 2000 e 2001. A decisão do tribunal arbitral, criado para dirimir o conflito entre o Ministério da Saúde e o Grupo Mello, foi tomada por unanimidade e é inteiramente favorável ao segundo. O Estado alegava ser credor de 77,9 milhões de euros. O acórdão do tribunal arbitral, a que o EXPRESSO teve acesso, contraria também a tese do Tribunal de Contas, que acusou os dirigentes do Ministério de atitude negligente no cumprimento deste contrato, exigindo-lhes 80 milhões de euros de indemnização por danos ao Estado.
O ministro da Saúde considerou «lamentável» o facto de o Estado ter apresentado «argumentos tão frágeis». E o porta-voz da «José de Mello Saúde» manifestou-se «muito satisfeito». «Este desfecho dá maior confiança aos privados» que queiram concorrer a parcerias com o Estado no sector da Saúde, disse.

semanário expresso


Amadora Sintra

A história do primeiro contrato celebrado entre o Estado e um grupo privado, no caso o Mello Saúde, que entregava a este a gestão de um hospital do Serviço Nacional de Saúde, o Amadora-Sintra, ficará como um monumento ao que não deve ser feito nas agora tão discutidas parcerias público-privado.

Trata-se de uma mixórdia jurídica com graves responsabilidades de decisores políticos que tutelaram a Saúde nestes dez anos e que começou no último Governo de Cavaco Silva, passou pelos de António Guterres e aterrou no de Durão Barroso, sempre com intervenções governamentais polémicas ou mesmo de legalidade profundamente duvidosa.

No final, os gestores e funcionários da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo - o mexilhão do costume - emergiram como o único rosto da responsabilidade estatal ante a justiça, foram deixados cair de forma indecorosa pelo Estado, ou seja, pelos governos, que nem apoio jurídico lhes deram, o erário público foi obrigado por um tribunal arbitral previsto no contrato mas de nomeação política a pagar mais uns milhões aos Mello, o Tribunal de Contas e a Inspecção-Geral da Saúde foram ridicularizados e ainda há-de haver quem ache que pôr isto tudo em causa é preconceito ideológico contra o sector privado...

Tudo começou, torto, em 1995, com a minuta do contrato a ser assinada por Cavaco Silva, em Julho, e o Tribunal de Contas a validá-la dois dias antes das eleições que o PS viria a ganhar, em Outubro. O Governo do PS não contestou e fazê-lo seria já difícil, dada a validade jurídica da minuta. Seis anos depois, foi posta em causa pela Inspecção-Geral de Finanças a transferência de dinheiros do Estado para o hospital porque se detectaram pagamentos em duplicado por erro de contas ou por atendimentos a utentes nunca realizados. O então ministro da Saúde, Correia de Campos, demoliu o relatório e a partir daí nunca mais acabou a embrulhada que culminou com o ex-ministro Luís Filipe Pereira, também alto quadro do Grupo Mello antes de ir para o Governo, a sancionar as conclusões do tribunal arbitral.

O Ministério Público (MP) arquivou agora um processo-crime relacionado com o mesmo e que basicamente visava os mais de vinte ex-gestores da ARS a quem era pedida a devolução de uma verba aproximada de 70 milhões de euros. Em síntese, o MP considerou ter havido um "completo desleixo" e negligência na fiscalização e execução do contrato, mas põe o dedo na ferida, ainda que não o refira explicitamente: os sucessivos governos não exigiram nem deram os meios técnicos e humanos necessários para o acompanhamento de um contrato inédito que requeria do Estado uma fiscalização activa e não uma completa omissão. Ou seja, em matéria
de malbaratar recursos financeiros públicos, este caso foi um festim!
Eduardo Dâmaso , JN 11.11. 2006