A Oncologia
Sob o fogo da recessão no Serviço Nacional de Saúde
Ninguém ignora que a oncologia representa uma valência chave na nossa indústria pública de prestação de cuidados de saúde. Onde se condensam as expectativas dos portugueses, de poderem contar com um serviço cientificamente evoluído, pronto e amigável. Em convergência com os resultados e a qualidade que a ciência pode oferecer. Se a saúde dos portugueses, e o seu Serviço Nacional de Saúde, alcançaram globalmente uma posição de destaque no concerto das nações, bem destacado de outros parâmetros que geralmente nos colocam abaixo das médias europeias, é ainda esse destaque mais exigido porventura na esfera da oncologia.
É talvez necessário compreender que uma política de recessão do Estado, e das suas prestações sociais, atinge duramente, os seus segmentos, científica e tecnologicamente, mais apetrechados, como é o caso da oncologia. Porque a mera perda de velocidade na incorporação de meios, na formação de mão-de-obra, torna o desvio rapidamente abismal em comparação com os países avançados. E é não só preocupante o desvio como se torna extraordinariamente difícil, à medida que a recessão se prolonga, ensaiar uma recuperação. Se imaginarmos que o ciclo de mutação radical nos métodos diagnósticos e de tratamento é da ordem dos cinco anos, e se tomarmos consciência que foram muito escassos os investimentos estruturais – e estão sobretudo muito estagnados os investimentos na formação do pessoal – nos últimos 10 anos, podemos ter uma ideia de como a astenia da oncologia se torna grave.
As pressões evolutivas da oncologia centram-se nestes anos no impetuoso desenvolvimento da prevenção, com os eficazes e poderosos rastreios de população e de grupos de risco. Incidem no crescimento dos tratamentos multi-modalidade, no aperfeiçoamento da acuidade diagnostica, na proliferação de atitudes mini-invasivas, e na construção de caminhos organizados em base crónica para doenças que dependem de medicalização e monitorização apertadas. Em conjunto, estas mutações pressionam muito o perfil profissional dos executantes e sobretudo pressionam no sentido de uma profunda reestruturação da divisão do trabalho médico e de enfermagem. Se têm sido prodigiosas as mudanças na prestação de cuidados oncológicos no mundo, é necessário reconhecer que o nosso país, perde a olhos vistos a corrida da prevenção e dos rastreios, onde as estatísticas de mortalidade dos grandes flagelos, cancro do cólon, mama e colo do útero, em concreto, nos empurram para a cauda da Europa. Neste domínio, é muito preocupante o ambiente apesar dos esforços dos profissionais e das sociedades científicas.
Mas perde também Portugal a corrida à tecnologia e no domínio organizativo. Essa perda de velocidade não se restringe às comparações com a Europa. É necessário reconhecer que a oncologia do SNS, perde velocidade para os concorrentes privados, os quais mostram muito maior capacidade na área dos equipamentos pesados, de radiologia e radioterapia. E perde também para a grande indústria privada os seus melhores profissionais, desiludidos com o envelhecimento dos equipamentos e sobretudo com o imobilismo de carreiras e de regras remuneratórias do público. A fuga de profissionais qualificados, é sobretudo explicada pela ostensiva recusa do poder em encarar reformas que contemplem incentivos à produção, que liguem a remuneração ao valor da produção e reconheçam o mérito e a dedicação. Que rompam enfim com o assalariamento obsoleto da função pública convencional. A recusa dos governos em abrir este debate é especialmente frustrante quando, em épocas eleitorais, foi expressamente prometido que a suposta reforma traria necessariamente uma mudança nas relações laborais.
E não podemos ignorar que continuamos sem adequado sistema de informação sobre a epidemiologia das doenças. O nosso sistema de registo oncológico continua inaceitavelmente incipiente. Não temos igualmente conhecimento da adequação das práticas e dos resultados desagregados por grupos nosológicos, salvo séries seleccionadas. Não sabemos assim qual é o verdadeiro desperdício, em resultado de estarmos com alta probabilidade a pagar tratamentos incompletos, gestos redundantes e fúteis. É necessário compreender para o bom cidadão contribuinte que o maior desperdício, o mais inaceitável, é pagar algo que, por ser incompleto, fruto da desorganização ou falta de meios, apenas permite resultados medíocres na cura ou na redução de mortes prematuras. É pagar sem ter a contrapartida dos resultados excelentes a que a ciência nos dá direito.
O presente responsável pela pasta da saúde não consegue mais esconder, pelo menos para os mais informados, que a sua missão se reduz a encolher o SNS. Uma orientação que entronca no dogma, hegemónico mas altamente discutível, de que a recessão pública levaria providencialmente o país ao desenvolvimento. Fruto de uma transcendente capacidade da iniciativa privada, assim libertada da omnipresença das prestações públicas. As ideias recessionistas foram sendo apresentadas como mero ordenamento técnico, um argumento que se percebe agora, apenas disfarça o down sizing. A verdade é que as poupanças porventura alcançadas em nada serviram para reorientar investimentos a favor de novas apostas. Foi fechar sem nada em troca.
O país poderá até ser obrigado a ajustamentos. Mas as vacas magras nunca podem deixar de estar ligadas a um projecto de relançamento, que restaure as energias da sociedade e a esperança dos profissionais. E não pode sobretudo ser álibi para fugir às urgentes tarefas de reorganização que combatam desperdício e promovam a racionalidade.
A oncologia pública representa um serviço essencial na construção da coesão social, na obtenção de um país melhor, competitivo em termos de procurar um patamar civilizacional mais avançado. Onde os portugueses se sintam seguros porque sabem que serão acudidos em tempo útil quando precisarem de uma cirurgia ou de tratamentos eficazes ao nível do que a ciência moderna possibilita. O país exige justamente a igualdade tendencial entre os portugueses quando um de nós sofre o drama de um diagnóstico de cancro. Só uma indústria prestadora pública requalificada e reformada, impedirá o crescimento das desigualdades neste domínio.
Paulo Fidalgo, gastrenterologista do IPO Lx, revista prémio, 16.02.2007
Ninguém ignora que a oncologia representa uma valência chave na nossa indústria pública de prestação de cuidados de saúde. Onde se condensam as expectativas dos portugueses, de poderem contar com um serviço cientificamente evoluído, pronto e amigável. Em convergência com os resultados e a qualidade que a ciência pode oferecer. Se a saúde dos portugueses, e o seu Serviço Nacional de Saúde, alcançaram globalmente uma posição de destaque no concerto das nações, bem destacado de outros parâmetros que geralmente nos colocam abaixo das médias europeias, é ainda esse destaque mais exigido porventura na esfera da oncologia.
É talvez necessário compreender que uma política de recessão do Estado, e das suas prestações sociais, atinge duramente, os seus segmentos, científica e tecnologicamente, mais apetrechados, como é o caso da oncologia. Porque a mera perda de velocidade na incorporação de meios, na formação de mão-de-obra, torna o desvio rapidamente abismal em comparação com os países avançados. E é não só preocupante o desvio como se torna extraordinariamente difícil, à medida que a recessão se prolonga, ensaiar uma recuperação. Se imaginarmos que o ciclo de mutação radical nos métodos diagnósticos e de tratamento é da ordem dos cinco anos, e se tomarmos consciência que foram muito escassos os investimentos estruturais – e estão sobretudo muito estagnados os investimentos na formação do pessoal – nos últimos 10 anos, podemos ter uma ideia de como a astenia da oncologia se torna grave.
As pressões evolutivas da oncologia centram-se nestes anos no impetuoso desenvolvimento da prevenção, com os eficazes e poderosos rastreios de população e de grupos de risco. Incidem no crescimento dos tratamentos multi-modalidade, no aperfeiçoamento da acuidade diagnostica, na proliferação de atitudes mini-invasivas, e na construção de caminhos organizados em base crónica para doenças que dependem de medicalização e monitorização apertadas. Em conjunto, estas mutações pressionam muito o perfil profissional dos executantes e sobretudo pressionam no sentido de uma profunda reestruturação da divisão do trabalho médico e de enfermagem. Se têm sido prodigiosas as mudanças na prestação de cuidados oncológicos no mundo, é necessário reconhecer que o nosso país, perde a olhos vistos a corrida da prevenção e dos rastreios, onde as estatísticas de mortalidade dos grandes flagelos, cancro do cólon, mama e colo do útero, em concreto, nos empurram para a cauda da Europa. Neste domínio, é muito preocupante o ambiente apesar dos esforços dos profissionais e das sociedades científicas.
Mas perde também Portugal a corrida à tecnologia e no domínio organizativo. Essa perda de velocidade não se restringe às comparações com a Europa. É necessário reconhecer que a oncologia do SNS, perde velocidade para os concorrentes privados, os quais mostram muito maior capacidade na área dos equipamentos pesados, de radiologia e radioterapia. E perde também para a grande indústria privada os seus melhores profissionais, desiludidos com o envelhecimento dos equipamentos e sobretudo com o imobilismo de carreiras e de regras remuneratórias do público. A fuga de profissionais qualificados, é sobretudo explicada pela ostensiva recusa do poder em encarar reformas que contemplem incentivos à produção, que liguem a remuneração ao valor da produção e reconheçam o mérito e a dedicação. Que rompam enfim com o assalariamento obsoleto da função pública convencional. A recusa dos governos em abrir este debate é especialmente frustrante quando, em épocas eleitorais, foi expressamente prometido que a suposta reforma traria necessariamente uma mudança nas relações laborais.
E não podemos ignorar que continuamos sem adequado sistema de informação sobre a epidemiologia das doenças. O nosso sistema de registo oncológico continua inaceitavelmente incipiente. Não temos igualmente conhecimento da adequação das práticas e dos resultados desagregados por grupos nosológicos, salvo séries seleccionadas. Não sabemos assim qual é o verdadeiro desperdício, em resultado de estarmos com alta probabilidade a pagar tratamentos incompletos, gestos redundantes e fúteis. É necessário compreender para o bom cidadão contribuinte que o maior desperdício, o mais inaceitável, é pagar algo que, por ser incompleto, fruto da desorganização ou falta de meios, apenas permite resultados medíocres na cura ou na redução de mortes prematuras. É pagar sem ter a contrapartida dos resultados excelentes a que a ciência nos dá direito.
O presente responsável pela pasta da saúde não consegue mais esconder, pelo menos para os mais informados, que a sua missão se reduz a encolher o SNS. Uma orientação que entronca no dogma, hegemónico mas altamente discutível, de que a recessão pública levaria providencialmente o país ao desenvolvimento. Fruto de uma transcendente capacidade da iniciativa privada, assim libertada da omnipresença das prestações públicas. As ideias recessionistas foram sendo apresentadas como mero ordenamento técnico, um argumento que se percebe agora, apenas disfarça o down sizing. A verdade é que as poupanças porventura alcançadas em nada serviram para reorientar investimentos a favor de novas apostas. Foi fechar sem nada em troca.
O país poderá até ser obrigado a ajustamentos. Mas as vacas magras nunca podem deixar de estar ligadas a um projecto de relançamento, que restaure as energias da sociedade e a esperança dos profissionais. E não pode sobretudo ser álibi para fugir às urgentes tarefas de reorganização que combatam desperdício e promovam a racionalidade.
A oncologia pública representa um serviço essencial na construção da coesão social, na obtenção de um país melhor, competitivo em termos de procurar um patamar civilizacional mais avançado. Onde os portugueses se sintam seguros porque sabem que serão acudidos em tempo útil quando precisarem de uma cirurgia ou de tratamentos eficazes ao nível do que a ciência moderna possibilita. O país exige justamente a igualdade tendencial entre os portugueses quando um de nós sofre o drama de um diagnóstico de cancro. Só uma indústria prestadora pública requalificada e reformada, impedirá o crescimento das desigualdades neste domínio.
Paulo Fidalgo, gastrenterologista do IPO Lx, revista prémio, 16.02.2007
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