A Saúde no fio da navalha
E em maré de protestos
Na vaga demolidora de mudanças na saúde, pode estar a confundir-se racionalidade e contenção nos gastos com arriscados exercícios de cegueira administrativa
Queixam-se médicos, queixam-se bastonários, queixam-se utentes. É muita queixa junta para que na Saúde tudo esteja tão bem quanto o ministro respectivo nos quer fazer crer. Para hoje estão convocadas mais de 100 acções de protesto em vários pontos do país, invocando a necessidade de defender o Serviço Nacional de Saúde (SNS), e ainda ontem uma pequena guerra de números levou o bastonário da Ordem dos Médicos a acusar o Governo de manipulação de dados. O executivo traçou um cenário virtualmente optimista, garantindo que entrou no SNS, em 2006, um total de 2901 médicos contra apenas 943 saídas (442 por aposentação, 501 por rescisão). O bastonário, por sua vez, embora não avance números concretos, garante que tal número só seria possível se fosse contada, para o efeito, a renovação de contratos de médicos já a trabalhar no SNS (o que seria "manipulação" e "falta de ética"). E garante também que, tendo em conta os pedidos de inscrição na Ordem e o número de licenciados, os novos médicos no SNS não deverão ultrapassar os 800, a que poderão acrescentar-se 200 médicos estrangeiros. Há, por isso, cerca de 2 mil a mais. Verdadeiros? Falsos? Simples cosmética, como acusa o bastonário? O ministério mantém-se silencioso perante tão veemente acusação. Mas, enquanto Correia de Campos não se digna avançar com uma resposta, fica no ar esta suspeita: os médicos estarão a abandonar um barco que se afunda, o SNS, para embarcar noutro que floresce, o SPS, ou seja, o serviço privado de saúde. Onde terão melhores condições e onde serão mais bem pagos. Mas onde os seus antigos "clientes" não poderão, na sua esmagadora maioria, chegar, por óbvia falta de recursos.
Por falar em cosmética, a palavra também se pode aplicar à recente medida de entregar telemóveis a idosos de modo a reduzir a sua solidão. Porque, ao mesmo tempo, como "contrapartida", pagam mais por medicamentos de que realmente necessitam e têm menos comparticipações em óculos, dentaduras e tratamentos exigidos pela idade. O telemóvel, neste caso, símbolo de uma modernidade que já não os acompanha e raramente os tem em conta, acaba por ser um paliativo político para falhas maiores. Falhas de que eles se queixam, sem que os ouçam ou sem que os levem muito a sério. Entretanto, a saúde "moderniza-se", sem cuidar de que, nesta vaga demolidora, se pode confundir racionalidade e contenção nos gastos com arriscados exercícios de cegueira administrativa. O caso do fecho das maternidades ou blocos de partos em vários pontos do país é um dos exemplos mais visíveis, porque mais mediáticos. Há um ano, o ministro dizia que os protestos (e foram vários) eram inúteis, porque as medidas eram irreversíveis. O que havia para fechar ia mesmo ser fechado. Entretanto, os bombeiros têm vindo a substituir as parteiras com alguma insistência, com crianças a nascer dentro das ambulâncias, muitas vezes em andamento e a caminho de hospitais distantes. "As coisas correram bem", dizia há dias o comandante dos bombeiros de Resende, após mais um parto em plena estrada, neste caso com uma mãe jovem, de apenas dezoito anos. E se algum dia correrem mal? A quem será imputada a culpa? Aos bombeiros, que estão a fazer um serviço para o qual não foram originalmente qualificados? Ao acaso? À renitência do ministro? Perante tudo isto, e mesmo com protestos, o Governo deverá refugiar-se no silêncio. Ele sabe que as pessoas se cansam.
E os doentes ainda mais.
Nuno Pacheco, JP 22.09.07
Na vaga demolidora de mudanças na saúde, pode estar a confundir-se racionalidade e contenção nos gastos com arriscados exercícios de cegueira administrativa
Queixam-se médicos, queixam-se bastonários, queixam-se utentes. É muita queixa junta para que na Saúde tudo esteja tão bem quanto o ministro respectivo nos quer fazer crer. Para hoje estão convocadas mais de 100 acções de protesto em vários pontos do país, invocando a necessidade de defender o Serviço Nacional de Saúde (SNS), e ainda ontem uma pequena guerra de números levou o bastonário da Ordem dos Médicos a acusar o Governo de manipulação de dados. O executivo traçou um cenário virtualmente optimista, garantindo que entrou no SNS, em 2006, um total de 2901 médicos contra apenas 943 saídas (442 por aposentação, 501 por rescisão). O bastonário, por sua vez, embora não avance números concretos, garante que tal número só seria possível se fosse contada, para o efeito, a renovação de contratos de médicos já a trabalhar no SNS (o que seria "manipulação" e "falta de ética"). E garante também que, tendo em conta os pedidos de inscrição na Ordem e o número de licenciados, os novos médicos no SNS não deverão ultrapassar os 800, a que poderão acrescentar-se 200 médicos estrangeiros. Há, por isso, cerca de 2 mil a mais. Verdadeiros? Falsos? Simples cosmética, como acusa o bastonário? O ministério mantém-se silencioso perante tão veemente acusação. Mas, enquanto Correia de Campos não se digna avançar com uma resposta, fica no ar esta suspeita: os médicos estarão a abandonar um barco que se afunda, o SNS, para embarcar noutro que floresce, o SPS, ou seja, o serviço privado de saúde. Onde terão melhores condições e onde serão mais bem pagos. Mas onde os seus antigos "clientes" não poderão, na sua esmagadora maioria, chegar, por óbvia falta de recursos.
Por falar em cosmética, a palavra também se pode aplicar à recente medida de entregar telemóveis a idosos de modo a reduzir a sua solidão. Porque, ao mesmo tempo, como "contrapartida", pagam mais por medicamentos de que realmente necessitam e têm menos comparticipações em óculos, dentaduras e tratamentos exigidos pela idade. O telemóvel, neste caso, símbolo de uma modernidade que já não os acompanha e raramente os tem em conta, acaba por ser um paliativo político para falhas maiores. Falhas de que eles se queixam, sem que os ouçam ou sem que os levem muito a sério. Entretanto, a saúde "moderniza-se", sem cuidar de que, nesta vaga demolidora, se pode confundir racionalidade e contenção nos gastos com arriscados exercícios de cegueira administrativa. O caso do fecho das maternidades ou blocos de partos em vários pontos do país é um dos exemplos mais visíveis, porque mais mediáticos. Há um ano, o ministro dizia que os protestos (e foram vários) eram inúteis, porque as medidas eram irreversíveis. O que havia para fechar ia mesmo ser fechado. Entretanto, os bombeiros têm vindo a substituir as parteiras com alguma insistência, com crianças a nascer dentro das ambulâncias, muitas vezes em andamento e a caminho de hospitais distantes. "As coisas correram bem", dizia há dias o comandante dos bombeiros de Resende, após mais um parto em plena estrada, neste caso com uma mãe jovem, de apenas dezoito anos. E se algum dia correrem mal? A quem será imputada a culpa? Aos bombeiros, que estão a fazer um serviço para o qual não foram originalmente qualificados? Ao acaso? À renitência do ministro? Perante tudo isto, e mesmo com protestos, o Governo deverá refugiar-se no silêncio. Ele sabe que as pessoas se cansam.
E os doentes ainda mais.
Nuno Pacheco, JP 22.09.07
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