sexta-feira, fevereiro 23, 2007

Da Patuleia

Chaves, a Valença, a … etc. , etc.

Não se pede aos cidadãos que compreendam por que é melhor ter menos urgências, mas melhores – mas exige-se dos autarcas que não incendeiem o bairrismo e procurem, ao menos, compreender os argumentos da racionalidade.

Duas histórias curtas.
Primeira: há quase 20 anos, os médicos de uma miúda que sofria de otites crónicas sugeriam aos pais que era melhor levá-la a um hospital francês.
Os pais podiam pagar, levaram a filha e o diagnóstico surgiu num ápice estava-se perante uma infecção rara mas fácil de curar. O médico francês, perante o desalento da família, sossegou-a sobre a qualidade dos médicos portugueses: “Aqui, observo destes casos várias vezes ao ano. Lá, tenho colegas que se calhar vêem um ou dois na vida. Para mim o diagnóstico é mais fácil.”
Segunda: há uma dúzia de anos, pouco tempo após a abertura de um novo grande hospital, o responsável pelo serviço de neurocirurgia pedia à respectiva administração para não lhe darem mais cirurgiões. Esta, porém, queria que houvesse sempre um neurocirurgião de turno nas urgências. O médico contra-argumentava: “Com mais cinco cirurgiões, nenhum deles vai fazer o número de operações suficiente para ser realmente um bom profissional, e com a equipa que tenho consigo colocar um especialista no bloco operatório a tempo caso exista uma verdadeira urgência. “ A administração, ao que parece, tinha medo do que poderia um dia sair na comunicação social.
Estes dois episódios mostram como para haver excelência nos cuidados médicos, os médicos têm de ter experiência, ter visto muitos casos, ter operado muitas vezes.
Isso não se consegue espalhando os profissionais por centenas de centros de atendimento, por muitas maternidades ou, por um número exagerado de urgências onde passam muitas horas inactivos. Isso implica antes uma rede racionalizada que minimize a possibilidade de os médicos ficarem noites e noites de braços cruzados para depois, perante um caso mais complexo numa urgência “descentralizada” e pouco utilizada, acabarem a reencaminhá-lo para as urgências diferenciadas.

A verdade, contudo, é que nem sempre os argumentos de racionalidade ultrapassam o que por natureza é irracional. E não há que temer as palavras: é irracional pretender ter serviços de urgência abertos 24 horas por dia ao virar da esquina pois tais serviços, mesmo que fosse possível pagá-los, prestariam pior serviço que unidades especializadas, competentes, experientes e, por isso mesmo, raras. Por isso, quando ontem se olhava para a imagem da primeira página do público, era quase impossível deixar de recordar imagens idênticas de revoltas antigas como as da Patuleia, essa quase guerra civil que se seguiu à revolta da Maria da Fonte. E que levou Maria da Fonte à revolta? Uma medida menor e de elementar higiene pública: a proibição dos enterros dentro das igrejas. Também então a irracionalidade saiu à rua.
Nos dias que correm já não se exige que se enterrem os mortos nas igrejas, mas da mesma forma que não se deseja ter lixeiras no quintal, reivindica-se um médico ou uma parteira em cada esquina. E nada disto mudará se, localmente, os eleitos não souberem passar da irracionalidade de quintal à discussão séria das alternativas. Por exemplo: há discriminação no interior ? Não: em 15 urgências que fecham, só três são no interior. Há discriminação política ? Também não: dos 15 concelhos afectados, oito são governados pelo PSD, seis pelo PS e um pela CDU. Há menos serviços com um mínimo de qualificação? Não, pois se fecham 15 urgências, abrem 26. Há ausência de critérios objectivos? Não, basta ler o relatório do grupo de trabalho.
O que há, isso sim, é muito sangue quente e um secular bairrismo. Pelo que, ou o Governo aguenta este embate, ou então nunca fará uma das reformas que prometeu e que toca ainda mais nas sensibilidades localistas: a da redefinição do mapa judiciário.
José Manuel Fernandes, editorial JP 23-02.07