É impossível um médico trabalhar assim!
Em meu nome pessoal e no dos médicos, reclamo das condições em que somos obrigados a trabalhar e declino quaisquer responsabilidades pelos erros que possam ser cometidos em situações de sobrecarga nos serviços de urgência de qualquer instituição de saúde
Excluindo os cada vez mais raros dias de relativa acalmia, amiúde a procura da Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) ultrapassa amplamente a sua capacidade de resposta com eficiência. No espaço central da Urgência, que foi dimensionado para 17 macas, é frequente estar o dobro, o triplo, ou mais, de doentes!
Excluindo os cada vez mais raros dias de relativa acalmia, amiúde a procura da Urgência dos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC) ultrapassa amplamente a sua capacidade de resposta com eficiência. No espaço central da Urgência, que foi dimensionado para 17 macas, é frequente estar o dobro, o triplo, ou mais, de doentes!
Como especialista em Medicina Interna, estive de serviço à Urgência dos HUC no passado dia 26 de Dezembro, das 9 às 21 horas. Nesse dia, das zero às 24 horas, 604 doentes recorreram à Urgência (incluindo a maternidade)! Na Urgência do Bloco Central, durante o dia, foram admitidos quase 50 doentes por hora! Um verdadeiro mar de gente, que provocou atrasos inaceitáveis, logo para a realização da primeira triagem, e muitas horas de espera para os doentes menos urgentes.
Não é possível responder com atenção, humanidade, acuidade e qualidade a tantos doentes, com as mais variadas queixas, patologias e necessidades. O espaço físico não comporta esta quantidade e os recursos humanos e técnicos, sobretudo os primeiros, são claramente insuficientes nas horas de maior sufoco.
Em dias de maior enchente não há condições para observar os doentes, nem macas suficientes para os deitar! Interrogamos um doente e estão vários a escutar a conversa! Observamos outro doente e somos acompanhados pelo olhar atento de uns quantos! Queremos auscultar um coração mas o ruído de fundo parece o de uma discoteca! Necessitamos de medir a tensão arterial e temos de ir, em verdadeira gincana entre cadeiras e macas, buscar um aparelho que, muitas vezes, existe em número insuficiente! Palpamos abdómens com doentes sentados porque não há um local apropriado para os deitar! Queremos concentrar-nos nos problemas de um doente e está outro a clamar para que o despachemos! É necessária uma glicemia capilar mas, no meio da confusão, já ninguém sabe onde está a máquina! É importante administrar um medicamento ou colher sangue para análises, mas os enfermeiros estão todos sobreocupados! É preciso transportar um doente à ecografia, mas não há auxiliares disponíveis! Chega um doente grave e está outro a gritar por um urinol! Os telefones tocam por informações (por vezes, sobre o mesmo doente, são inúmeros telefonemas!) ao mesmo tempo que os doentes (os que falam) solicitam assistência! Tão depressa um doente está em risco de aspirar um vómito quanto é necessário acorrer a um doente desorientado à beira de se atirar da maca abaixo! Os frascos de soro de 100 cc esgotaram, pelo que é necessário desperdiçar mais tempo a preparar diluições
com frascos de 500 cc! Etc., etc., etc...
Em Agosto de 2006 escrevi ao director clínico dos HUC uma carta, da qual transcrevo o seguinte excerto: "O dia 22 de Agosto foi um dia de enorme afluência de doentes à Urgência dos HUC, o que implicou um trabalho profundamente absorvente e desgastante. O mal desenhado espaço da Urgência (para o tipo de urgência hospitalar que ocorre em Portugal) mais parecia uma feira, com ruído, confusão, gritos, ordens, maus cheiros, falta de privacidade, calor, chamamentos, lamentos, doentes em terceira fila, stress, pessoal subdimensionado, etc. Os exageros da triagem de Manchester e os conselhos do ministro da Saúde para que os doentes recorram às urgências hospitalares vieram piorar o frágil desequilíbrio anterior. Como dizia um colega
ortopedista, quando sentia a agitação no seu sector da Urgência como demasiada vinha apreciar a babilónia da sala de Medicina, o que lhe permitia regressar mais animado e reconfortado à Ortopedia".
Em dias de maior enchente não há condições para observar os doentes, nem macas suficientes para os deitar! Interrogamos um doente e estão vários a escutar a conversa! Observamos outro doente e somos acompanhados pelo olhar atento de uns quantos! Queremos auscultar um coração mas o ruído de fundo parece o de uma discoteca! Necessitamos de medir a tensão arterial e temos de ir, em verdadeira gincana entre cadeiras e macas, buscar um aparelho que, muitas vezes, existe em número insuficiente! Palpamos abdómens com doentes sentados porque não há um local apropriado para os deitar! Queremos concentrar-nos nos problemas de um doente e está outro a clamar para que o despachemos! É necessária uma glicemia capilar mas, no meio da confusão, já ninguém sabe onde está a máquina! É importante administrar um medicamento ou colher sangue para análises, mas os enfermeiros estão todos sobreocupados! É preciso transportar um doente à ecografia, mas não há auxiliares disponíveis! Chega um doente grave e está outro a gritar por um urinol! Os telefones tocam por informações (por vezes, sobre o mesmo doente, são inúmeros telefonemas!) ao mesmo tempo que os doentes (os que falam) solicitam assistência! Tão depressa um doente está em risco de aspirar um vómito quanto é necessário acorrer a um doente desorientado à beira de se atirar da maca abaixo! Os frascos de soro de 100 cc esgotaram, pelo que é necessário desperdiçar mais tempo a preparar diluições
com frascos de 500 cc! Etc., etc., etc...
Em Agosto de 2006 escrevi ao director clínico dos HUC uma carta, da qual transcrevo o seguinte excerto: "O dia 22 de Agosto foi um dia de enorme afluência de doentes à Urgência dos HUC, o que implicou um trabalho profundamente absorvente e desgastante. O mal desenhado espaço da Urgência (para o tipo de urgência hospitalar que ocorre em Portugal) mais parecia uma feira, com ruído, confusão, gritos, ordens, maus cheiros, falta de privacidade, calor, chamamentos, lamentos, doentes em terceira fila, stress, pessoal subdimensionado, etc. Os exageros da triagem de Manchester e os conselhos do ministro da Saúde para que os doentes recorram às urgências hospitalares vieram piorar o frágil desequilíbrio anterior. Como dizia um colega
ortopedista, quando sentia a agitação no seu sector da Urgência como demasiada vinha apreciar a babilónia da sala de Medicina, o que lhe permitia regressar mais animado e reconfortado à Ortopedia".
É completamente impossível trabalhar com qualidade desta maneira. Para bem dos doentes, como profissionais de saúde tentamos cumprir a nossa obrigação o melhor que podemos e sabemos, mas, como um dos porta-vozes dos médicos, não posso deixar de denunciar que, ao sermos compelidos a trabalhar nestas condições, seguramente que não podemos evitar alguns erros que, de forma alguma, podem vir a ser imputados à responsabilidade médica.
É no cumprimento do parecer do Conselho Nacional do Exercício Técnico de Medicina, da Ordem dos Médicos, sobre Recursos Humanos no Serviço de Urgência, que escrevo estas linhas. Efectivamente, segundo esse parecer, «os médicos devem denunciar, nas instâncias apropriadas, a falta de recursos técnicos e/ou humanos para o exercício da sua actividade com dignidade e segurança para os seus doentes, não poderão, no entanto, declinar responsabilidades do que ocorrer durante este exercício de actividade, em nome das ditas insuficiências. Porém, na Constituição da República, no ponto 2 do art.º 271.º, afirma-se: "É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito"».
Infelizmente, os problemas que aponto à urgência dos HUC, apenas porque os vivo intensamente cada vez que estou de serviço, são extensíveis a muitos outros hospitais, senão a todos eles. Durante o mesmo período, 540 doentes recorreram ao Serviço de Urgência do Hospital de Aveiro, um hospital com muito menos recursos e que está a rebentar de problemas de gestão! No dia 1 de Janeiro a Urgência do Santa Maria foi um caos total, conforme vem referenciado na comunicação social. Não é possível continuar assim!
Por tudo isto, em meu nome pessoal e em nome dos médicos, ao abrigo do art.º 271.º da Constituição, venho reclamar das condições em que somos obrigados a trabalhar e declinar quaisquer responsabilidades pelos erros que possam ser cometidos em situações de sobrecarga de doentes nos serviços de Urgência de qualquer instituição de saúde.
Quem fecha serviços de atendimento permanente nos centros de saúde sem alternativas efectivas, quem pretende encerrar serviços de Urgência sem uma reforma profunda do sistema de Saúde, quem desorganiza serviços de Urgência com a contratação de empresas de mão-de-obra médica desligada da respectiva instituição, quem não cuida de criar mecanismos de assistência aos idosos que dispensem o recurso sistemático à Urgência hospitalar, quem não investe a sério em verdadeiros cuidados paliativos, quem se preocupa mais com o orçamento do que com os doentes, quem não tem conhecimento suficiente para introduzir reformais racionais e não racionamento cego, quem não dimensiona os recursos técnicos e humanos de forma dinâmica em função das necessidades, quem não resolve os constrangimentos ao fluxo de doentes, quem concede populares tolerâncias de ponto sem cuidar de mecanismos de compensação e rotatividade (só para as greves é necessário assegurar serviços
mínimos?), etc., etc., etc., quem governa deficientemente que assuma integralmente as suas responsabilidades!
Basta! Não é justo nem aceitável que os médicos possam ser responsabilizados pelas inevitáveis consequências negativas e desnecessários riscos e prejuízos para os doentes que decorrem dos cortes irracionais e dos erros e insuficiências de gestão e organização dos responsáveis governamentais e seus representantes, e da falta de condições adequadas para a prática de uma Medicina humanizada e eficiente. É profundamente lamentável estar a perder-se mais uma oportunidade para uma verdadeira, global e coerente reforma do Serviço Nacional de Saúde.
José Manuel Silva, Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos .
É no cumprimento do parecer do Conselho Nacional do Exercício Técnico de Medicina, da Ordem dos Médicos, sobre Recursos Humanos no Serviço de Urgência, que escrevo estas linhas. Efectivamente, segundo esse parecer, «os médicos devem denunciar, nas instâncias apropriadas, a falta de recursos técnicos e/ou humanos para o exercício da sua actividade com dignidade e segurança para os seus doentes, não poderão, no entanto, declinar responsabilidades do que ocorrer durante este exercício de actividade, em nome das ditas insuficiências. Porém, na Constituição da República, no ponto 2 do art.º 271.º, afirma-se: "É excluída a responsabilidade do funcionário ou agente que actue no cumprimento de ordens ou instruções emanadas de legítimo superior hierárquico e em matéria de serviço, se previamente delas tiver reclamado ou tiver exigido a sua transmissão ou confirmação por escrito"».
Infelizmente, os problemas que aponto à urgência dos HUC, apenas porque os vivo intensamente cada vez que estou de serviço, são extensíveis a muitos outros hospitais, senão a todos eles. Durante o mesmo período, 540 doentes recorreram ao Serviço de Urgência do Hospital de Aveiro, um hospital com muito menos recursos e que está a rebentar de problemas de gestão! No dia 1 de Janeiro a Urgência do Santa Maria foi um caos total, conforme vem referenciado na comunicação social. Não é possível continuar assim!
Por tudo isto, em meu nome pessoal e em nome dos médicos, ao abrigo do art.º 271.º da Constituição, venho reclamar das condições em que somos obrigados a trabalhar e declinar quaisquer responsabilidades pelos erros que possam ser cometidos em situações de sobrecarga de doentes nos serviços de Urgência de qualquer instituição de saúde.
Quem fecha serviços de atendimento permanente nos centros de saúde sem alternativas efectivas, quem pretende encerrar serviços de Urgência sem uma reforma profunda do sistema de Saúde, quem desorganiza serviços de Urgência com a contratação de empresas de mão-de-obra médica desligada da respectiva instituição, quem não cuida de criar mecanismos de assistência aos idosos que dispensem o recurso sistemático à Urgência hospitalar, quem não investe a sério em verdadeiros cuidados paliativos, quem se preocupa mais com o orçamento do que com os doentes, quem não tem conhecimento suficiente para introduzir reformais racionais e não racionamento cego, quem não dimensiona os recursos técnicos e humanos de forma dinâmica em função das necessidades, quem não resolve os constrangimentos ao fluxo de doentes, quem concede populares tolerâncias de ponto sem cuidar de mecanismos de compensação e rotatividade (só para as greves é necessário assegurar serviços
mínimos?), etc., etc., etc., quem governa deficientemente que assuma integralmente as suas responsabilidades!
Basta! Não é justo nem aceitável que os médicos possam ser responsabilizados pelas inevitáveis consequências negativas e desnecessários riscos e prejuízos para os doentes que decorrem dos cortes irracionais e dos erros e insuficiências de gestão e organização dos responsáveis governamentais e seus representantes, e da falta de condições adequadas para a prática de uma Medicina humanizada e eficiente. É profundamente lamentável estar a perder-se mais uma oportunidade para uma verdadeira, global e coerente reforma do Serviço Nacional de Saúde.
José Manuel Silva, Presidente do Conselho Regional do Centro da Ordem dos Médicos .
Jornal Público, segunda-feira 08 Janeiro 2007
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