Entrevista Manuel Delgado
Medicina Interna (MI): Num momento em que há cada vez mais especialização e subespecialização na saúde, que papel atribui à Medicina Interna dentro de um hospital?
Manuel Delgado (MD): Os hospitais vivem muito em função das especialidades, e o que se passa é que isto torna muito rígida a capacidade de respondermos aos doentes. Muitas vezes, os doentes aparecem-nos com patologias muiti-sistémicas, que influenciam vários sistemas, respiratório, locomotor, neurológico, o que, com o envelhecimento da população e com o aparecimento de doentes mais idosos, se agrava. É evidente que, neste conjunto de cenários, se mantivermos a actual divisão em especialidades com alguma rigidez em termos de resposta, isto é prejudicial para os doentes. Essa divisão pressupõe muito mais tempos de consulta ao passar de um especialista para outro e, portanto, leva muito mais tempo até ao diagnóstico e até se conseguir concertar uma terapêutica, o que é prejudicial, também, do ponto de vista económico e de organização, porque são precisas mais consultas e mais tempo perdido.
Portanto, o que se defende hoje em termos estratégicos é que os hospitais devem ter uma gestão mais integrada dos seus doentes, e muitos hospitais avançaram para a ideia de que o médico de Medicina Interna é aquele que, por opção da sua carreira, de currículo e de especialidade, tem a capacidade de concertar em termos globais o conjunto de afecções, de doenças ou de queixas que o doente apresenta. É ele o médico que consegue gerir melhor o doente no espaço hospitalar, permitindo, também, solicitar a comparência da prestação de cuidados de outros especialistas. Ou seja, funciona um pouco como o pivot, o gestor de uma orquestra clínica.
MI: O especialista em Medicina Interna é um “titular” ou “advogado” do doente dentro do hospital ?
MD: Age um pouco na qualidade de advogado, não no sentido de defender os direitos dos doentes, mas na perspectiva de velar pelo bem-estar geral e pela saúde do doente.
MI: O papel desse médico é, também, o de fazer a ponte dentro do hospital entre os vários graus de especialização e de super-especialização?
MD: É preciso ter em conta que, muitas vezes, a super-especialização provoca alguma rigidez na capacidade de oferta de serviços. Isto é, se eu tenho um médico ultra-especializado, ou super-especializado numa área, e se, por acaso, para essa área tenho poucos doentes, a consequência é que a produtividade desse médico vai ser baixa, porque ele se especializou em fazer uma coisa, e eu não o posso utilizar em tarefas de carácter mais geral.
Isso também acontece quando temos que fazer uma equipa de banco para uma urgência. Às vezes ficamos espantados quando um hospital com mil e tal médicos não consegue constituir equipas para as urgências e tem que ir contratar médicos ao exterior, e não consegue porque no seio dos hospitais o conceito de médico generalista desapareceu. Consequentemente, cada médico tem a sua especialidade, ou, nalguns casos, uma super-especialização, e evidentemente, não faz sentido recrutar dermatologistas para estarem no banco às 2 horas da manhã, ou outras especialidades.
Há especialidades que, por força da sua especialização, não nos são úteis quando queremos dar flexibilidade à prestação e não têm flexibilidade suficiente para nos ajudarem numa prestação mais generalista. Por isso é que a Medicina Interna tem uma importância transcendente nos hospitais, porque não só dá mais flexibilidade às equipas, como também nos permite enveredar por um esquema em que este médico funciona como “pivot” da prestação de cuidados.
MI: A Medicina Interna é também decisiva na melhor utilização dos meios de diagnóstico e terapêutica?
MD: Exactamente. Se o neurologista ou o cirurgião pedem um exame, muitas vezes esses exames podem ser sobrepostos, e , se houver um médico gestor do doente, este vai poder pedir apenas um determinado exame que inclua todas as necessidades clínicas.
MI: Sente que os médicos hospitalares estão preparados para aceitar esse papel?
MD: Tenho alguma dificuldade em ver o futuro próximo, em saber se os médicos estão preparados, mas julgo que a formação de base e a sua preparação vai ao encontro disto, à capacidade de ver o doente na sua plenitude.
É evidente que, em muitas circunstâncias, os médicos de Medicina Interna não têm a capacidade de saber tratar, mas têm grande capacidade para perceber as inter-recorrências e as inter relações que há entre todas as patologias que o doente tem. Eles podem ser os gestores e os dinamizadores da procura de cuidados de forma muito mais pertinente, e podem chamar o cirurgião, o dermatologista, o gastrenterologista, numa perspectiva integrada dos cuidados.
MI: Dentro do hospital por parte dos outros especialistas, existe a compreensão desta importância da Medicina Interna ?
MD: Os hospitais portugueses não estão ainda muito virados para isso. Temo um paradigma ainda muito virado para as especialidades, em que cada uma tem a sua total autonomia. Não há, ainda, uma superintendência geral sobre as especialidades nos hospitais. Cada especialidade trata daquilo que sabe e manda para a porta ao lado, o que não se sabe ou muitas vezes, nem isso.
Raramente há aquilo a que se chama uma consulta de grupo, em que vários profissionais concorrem para esclarecer uma situação clínica. Uma das formas mais robustas de mudar isto seria criar nos hospitais um núcleo de gestão dos doentes, à volta da Medicina Interna, que teria a responsabilidade de os internar, dar alta e fazer o acompanhamento dos doentes em todo o seu percurso no hospital.
MI: E por parte dos gestores?
MD: Os gestores têm de perceber estes modelos de organização, caso contrário, não passam do modelo tradicional, das 20 camas por serviço. Se perceberem esta mudança de paradigma, com certeza que eles próprios vão desenvolver formas organizativas novas.
MI: É importante que sejam gestores de saúde, esta é uma questão mais clara, hoje em dia ?
MD: Se não forem gestores de saúde não têm sensibilidade para estes problemas. A vantagem do gestor de saúde é que ele vê um pouco mais à frente, entra num sistema, mas consegue ter capacidade crítica sobre a organização da prestação. O gestor que não é da saúde olha apenas para as questões financeiras, para as compras, alimentação, e não consegue entrar no core business da actividade, falta-lhe capacidade crítica.
Há quem ainda admita que possa haver gestores de outras áreas de negócio. Acho que, de forma sensata e mitigada, não faz mal nenhum, porque muitas vezes temos nos hospitais situações em que a gestão é corrente , comum, e nessas áreas faz sentido importar o conhecimento.
Mas o core business da gestão hospitalar é mesmo a prestação de cuidados, não é a alimentação, nem a roupa, nem a gestão financeira, é na prestação de cuidados que se determinam os custos, as despesas.
MI: Como vê o trabalho da comissão que está a estudar a reestruturação das urgências hospitalares?
MD: É uma boa iniciativa ter-se criado esta comissão para estudar as urgências, até porque tudo o que tenha na base um estudo e uma visão minimamente objectiva e assente em critérios técnicos é sempre bom, para termos uma decisão política em função das circunstâncias e dos pequenos interesses, lobbies ou conveniência político-partidária.
Não concordo que se atribua à urgência a importância que se lhe dá no sistema, mas em Portugal temos um vício de forma, atribuindo importância às urgências porque as temos cheias, não de casos urgentes, mas de casos que deviam ter outra sede. E daí temos problemas.
As urgências não são o ponto essencial de um sistema de saúde. Pelo contrário. Nos sistemas mais organizados a urgência é uma questão marginal. Só lá vai quem tem um problema grave ou súbito.
MI: O que é que explica tanta procura das urgências?
MD: A Medicina Geral e Familiar muito fraca, que não dá apoio às pessoas, as portas de entrada nas consultas hospitalares muito deficientes, com marcações tardias, as listas de espera enormes, os tempos de espera por consultas, com as pessoas a interiorizarem que na urgência vão sempre ser observadas, que dali saem com qualquer coisa.
MI: Que reflexões faz do trabalho já apresentado pela comissão?
MD: O grupo de trabalho apresentou o seu relatório e, no essencial, reconheço-lhe algumas virtudes, no essencial ao arrunmar a casa em termos de níveis de urgência, básica, polivalente e intermédia.
O relatório tem algumas falhas em termos de análise, por um lado no saber o que acontece às populações que vão perder a urgência, para onde é que elas vão, e, por outro lado, não estuda em profundidade, porque, se calhar, não era essa a sua missão, o problema do socorro no momento do acontecimento, e o transporte, que são duas questões essenciais em urgências.
No essencial o trabalho tem aspectos muito positivos, define pontos de abertura e de fecho, aumentou até o número de urgências, fechou algumas em locais complicados, como na zona centro litoral do País, o que pode provocar um afluxo concentrado a alguns sítios, o que não foi estudado.
MI: E em relação à contestação que tem sido feita, que comentários faz?
MD: A contestação é natural, mas há uma regra que todos temos de assumir. Os recursos não podem estar à porta de cada um e de todos. Não é possível, nem é desejável, porque não há dinheiro e porque em profissões tão melindrosas como a Medicina ou a enfermagem exige-se muita experiência e conhecimento, e se nós dispersamos tudo por pequenas experiências, depois o pessoal técnico não tem competência.
Por estas razões, é óbvio que temos que concentrar recursos, devemos ter cartas hospitalares que definam com rigor onde fica o quê. Infelizmente, em Portugal somos permissivos nisto, e é chocante ver um país aflito sem dinheiro para a Saúde, dispersá-lo.
Se uma população concreta está mais distante dos recursos, se isso acontece devemos compensar essa população em termos de transporte. Para além disso, as populações mais afastadas dos centros tecnológicos, devem ter um reforço de competências ao nível da medicina básica, de proximidade, em serviços comunitários.
Hoje é mais fácil e mais legítimo concentrar meios e recursos do que era há 50 anos e colocar junto das populações a medicina familiar.
O médico de família não pode viver a 100 quilómetros da população, e isso tem que ser corrigido. Temos de criar condições que obriguem os profissionais a viver junto das populações. Há países onde a medicina familiar obriga a viver junto das populações.
MI: Há pouco tempo, uma iniciativa comunitária de Medicina Familiar, em Mértola, foi distinguida internacionalmente. Fazem falta iniciativas destas, das comunidades, das autarquias?
MD: O País, em termos culturais, não está muito virado para a iniciativa própria, mas mais para a dependência do Estado. Temos de reconhecer que muitas dessas experiências, voluntárias e espontâneas da comunidade, são muito importantes e devem ser acarinhadas, até para o próprio Estado as poder aplicar noutros sítios.
MI: Concorda com a profissionalização das Urgências?
MD: Tenho alguma dificuldade, porque eu concordo com equipas de emergencistas, mas é quando estamos a falar em urgências mesmo. Se temos as urgências polvilhadas de falsas urgências, de doenças comuns, não faz sentido pensar em emergencistas.
Faz sentido pensar em emergencistas numa situação de adequação à procura. Se me dizem que a procura é uma mistura de situações graves e mais simples, então, estar a criar equipas de emergencistas não terá grande utilidade. Acho que é pôr o carro à frente dos bois.
MI: Tem-se falado na ”desnatação” dos hospitais públicos, com a mudança de alguns médicos destes hospitais para as novas unidades privadas. Com é que vê essa situação?
MD: Não dramaticamente . Iniciou-se, há já alguns anos, este processo com o aparecimento de grupos privados com investimentos de dimensão empresarial. A formação é feita no sector público, e é natural que os médicos que são recrutados o sejam no sector público, também Vamos assistir de forma crescente a este recrutamento de profissionais seniores formados.
É claro que há logo uma questão importante a esclarecer: então foi o Estado a formá-los e quem vai tirar o máximo proveito deles vai ser o sector privado? Outra nota: os hospitais públicos podem ficar prejudicados por isto, deram formação, deram campo para eles terem treino, formação e conhecimento, se calhar até deram clientela, o chamado doente fidelizado, e, se calhar, alguns desses clientes podem ser cativados para outro lado, o que não deixa de ser um risco em termos de financiamento para os hospitais públicos.
Penso que ainda não estamos numa fase em que isso seja problemático, embora haja aqui aspectos importantes a resolver no futuro: as pessoas não devem ter um pé em cada lado. Se entramos num modelo competitivo entre hospitais públicos e privados, tem que haver uma clara separação das organizações e dos seus profissionais, e isso não existe. Temos ainda muita duplicação de emprego.
MI: Vê alguma forma de alterar esse movimento?
MD: Penso que isto é injusto, e devia haver um mecanismo de compensação. Um mínimo de anos de trabalho talvez fosse a solução mais adequada. A formação é feita, em grande parte, à custa do trabalho público. Um médico não pode ir fazer uma formação para Paris, Nova Iorque e, depois, voltar e ir trabalhar para um grupo privado.
MI: E se os privados começarem eles próprios a fazer a formação ?
MD: À medida que vai havendo massa critica privada a sério nesta área hospitalar, e houver condições de idoneidade dos serviços para funcionarem, não só no ensino pré-graduado, mas também, sobretudo, pós-graduado, faz sentido que as carreiras se possam desenvolver no sector privado, com grandes hospitais integrados numa rede de formação.
MI: Não receia que, assim, surjam uma Medicina de primeira e outra de segunda?
MD: Penso que, para já, não haverá esse risco. Felizmente, não temos uma rede privada que faça a absorção, mais ou menos completa, das competências do público, e não é fácil que isso ocorra. Agora, se em dez anos houver um forte mercado privado, aí os riscos começam a ser maiores. Mas não tenho isso no meu horizonte. Claro que vão saindo alguns, enquanto outros se vão formando cá, e vamos mantendo um sector público forte.
MI: Há pouco tempo, afirmou que as Parcerias Público-privado (PPP) deviam limitar-se à construção dos hospitais, sem se alargarem à gestão clínica. Continua a defender essa posição ?
MD: É muito difícil fazer uma parceria que englobe os dois veículos, o da construção e o da exploração, porque há muita dificuldade em exercer o controlo e manter critérios ajustados de exploração, ainda por cima quando esta é a dez ou 15 anos. A Medicina evolui muito. Uma prática clínica que hoje é boa, daqui a uns anos já não o é, e quando faço um contrato com uma entidade, como é que eu vou prever tudo isso?
Por outro lado, há sempre um risco complicado que estamos a transferir, que é o dos resultados. Isto é, se houver prejuízo, financeiro, económico, é um problema. Agora, o risco do resultado em Saúde é mais difícil de delegar num privado, quando é o Estado que assume a responsabilidade pela Saúde dos portugueses.
Não sou categórico sobre isto, mas precisávamos de ter mais e melhor acompanhamento, e melhores sistemas de informação. Aliás, no episódio triste do hospital da Amadora, e aí não foi um problema de construção, foi só de exploração, o que ficou em cima da mesa foi perceber o acompanhamento económico-financeiro, não era a qualidade do serviço, nem o impacto na comunidade, que nunca foi feito.
MI: Não há ainda um modelo…
MD: O modelo ainda não existe. Cascais vai ser o primeiro, depois Braga, mas penso que ficaremos por aí. Creio que, eventualmente, no Hospital de Todos os Santos haverá apenas parceria para construção.
MI: Como vê a cobrança de taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias?
MD: Não acho que seja dramático para as populações haver taxas moderadoras. Mas o problema não se põe apenas aí. O ministro e o Governo conseguiram obviar esse obstáculo isentando muita gente.
As opções clínicas nunca devem ficar subjugadas às questões materiais, têm que estar sempre acima disso, e nunca devemos invocar razões materiais e financeiras para condicionar a performance clínica.
O que está em causa é o princípio. E este é o de que a taxa moderadora existe para moderar o consumo, para que o consumo desnecessário seja afastado do circuito. E, se pomos taxas moderadoras em serviços cuja opção de uso não é do doente, mas do profissional, aí perde sentido a sua existência. E é isso que está em causa.
Nisto tudo, há aqui uma situação misteriosa: não se sabe muito bem qual é a finalidade da taxa. É evidente que, no fundo, é para receber algum dinheiro, mesmo que pouco . Portanto, presume-se que vai apanhar entre 12 a 16 milhões de euros mais, o que não é nenhuma mais valia de especial mas sempre ajuda.
MI: Estas decisões geram insegurança nos cidadãos?
MD: Do ponto de vista político é fácil explorar demagogicamente a situação. Mas está aqui violado o princípio e o conceito da taxa moderadora, porque aqui não vamos »a procura de uma moderação, mas de um co-pagamento e a questão política ésaber quem é que deve ajudar o sistema a ser financiado: são os doentes? Ou são todos os cidadãos? É que, enquanto a taxa é moderadora, ela faz sentido, agora, quando a transformo numa taxa como forma de pedir aos doentes que contribuam um pouco mais, então a questão é outra.
MI: Que comentário faz ao trabalho da comissão que analisou, a pedido do ministro da saúde, a sustentabilidade financeira do SNS?
MD: A comissão é asséptica, não tem opinião. Esperemos que a tenha na parte final do seu trabalho.
O que agora há, é um elenco asséptico de soluções, a primeira das quais é mesmo não fazer nada. Até essa aparece.
Entrevista de Manuel Delgado, presidente da APAH, revista Medicina Interna Hoje, n.º 3, Janeiro 2007
Manuel Delgado (MD): Os hospitais vivem muito em função das especialidades, e o que se passa é que isto torna muito rígida a capacidade de respondermos aos doentes. Muitas vezes, os doentes aparecem-nos com patologias muiti-sistémicas, que influenciam vários sistemas, respiratório, locomotor, neurológico, o que, com o envelhecimento da população e com o aparecimento de doentes mais idosos, se agrava. É evidente que, neste conjunto de cenários, se mantivermos a actual divisão em especialidades com alguma rigidez em termos de resposta, isto é prejudicial para os doentes. Essa divisão pressupõe muito mais tempos de consulta ao passar de um especialista para outro e, portanto, leva muito mais tempo até ao diagnóstico e até se conseguir concertar uma terapêutica, o que é prejudicial, também, do ponto de vista económico e de organização, porque são precisas mais consultas e mais tempo perdido.
Portanto, o que se defende hoje em termos estratégicos é que os hospitais devem ter uma gestão mais integrada dos seus doentes, e muitos hospitais avançaram para a ideia de que o médico de Medicina Interna é aquele que, por opção da sua carreira, de currículo e de especialidade, tem a capacidade de concertar em termos globais o conjunto de afecções, de doenças ou de queixas que o doente apresenta. É ele o médico que consegue gerir melhor o doente no espaço hospitalar, permitindo, também, solicitar a comparência da prestação de cuidados de outros especialistas. Ou seja, funciona um pouco como o pivot, o gestor de uma orquestra clínica.
MI: O especialista em Medicina Interna é um “titular” ou “advogado” do doente dentro do hospital ?
MD: Age um pouco na qualidade de advogado, não no sentido de defender os direitos dos doentes, mas na perspectiva de velar pelo bem-estar geral e pela saúde do doente.
MI: O papel desse médico é, também, o de fazer a ponte dentro do hospital entre os vários graus de especialização e de super-especialização?
MD: É preciso ter em conta que, muitas vezes, a super-especialização provoca alguma rigidez na capacidade de oferta de serviços. Isto é, se eu tenho um médico ultra-especializado, ou super-especializado numa área, e se, por acaso, para essa área tenho poucos doentes, a consequência é que a produtividade desse médico vai ser baixa, porque ele se especializou em fazer uma coisa, e eu não o posso utilizar em tarefas de carácter mais geral.
Isso também acontece quando temos que fazer uma equipa de banco para uma urgência. Às vezes ficamos espantados quando um hospital com mil e tal médicos não consegue constituir equipas para as urgências e tem que ir contratar médicos ao exterior, e não consegue porque no seio dos hospitais o conceito de médico generalista desapareceu. Consequentemente, cada médico tem a sua especialidade, ou, nalguns casos, uma super-especialização, e evidentemente, não faz sentido recrutar dermatologistas para estarem no banco às 2 horas da manhã, ou outras especialidades.
Há especialidades que, por força da sua especialização, não nos são úteis quando queremos dar flexibilidade à prestação e não têm flexibilidade suficiente para nos ajudarem numa prestação mais generalista. Por isso é que a Medicina Interna tem uma importância transcendente nos hospitais, porque não só dá mais flexibilidade às equipas, como também nos permite enveredar por um esquema em que este médico funciona como “pivot” da prestação de cuidados.
MI: A Medicina Interna é também decisiva na melhor utilização dos meios de diagnóstico e terapêutica?
MD: Exactamente. Se o neurologista ou o cirurgião pedem um exame, muitas vezes esses exames podem ser sobrepostos, e , se houver um médico gestor do doente, este vai poder pedir apenas um determinado exame que inclua todas as necessidades clínicas.
MI: Sente que os médicos hospitalares estão preparados para aceitar esse papel?
MD: Tenho alguma dificuldade em ver o futuro próximo, em saber se os médicos estão preparados, mas julgo que a formação de base e a sua preparação vai ao encontro disto, à capacidade de ver o doente na sua plenitude.
É evidente que, em muitas circunstâncias, os médicos de Medicina Interna não têm a capacidade de saber tratar, mas têm grande capacidade para perceber as inter-recorrências e as inter relações que há entre todas as patologias que o doente tem. Eles podem ser os gestores e os dinamizadores da procura de cuidados de forma muito mais pertinente, e podem chamar o cirurgião, o dermatologista, o gastrenterologista, numa perspectiva integrada dos cuidados.
MI: Dentro do hospital por parte dos outros especialistas, existe a compreensão desta importância da Medicina Interna ?
MD: Os hospitais portugueses não estão ainda muito virados para isso. Temo um paradigma ainda muito virado para as especialidades, em que cada uma tem a sua total autonomia. Não há, ainda, uma superintendência geral sobre as especialidades nos hospitais. Cada especialidade trata daquilo que sabe e manda para a porta ao lado, o que não se sabe ou muitas vezes, nem isso.
Raramente há aquilo a que se chama uma consulta de grupo, em que vários profissionais concorrem para esclarecer uma situação clínica. Uma das formas mais robustas de mudar isto seria criar nos hospitais um núcleo de gestão dos doentes, à volta da Medicina Interna, que teria a responsabilidade de os internar, dar alta e fazer o acompanhamento dos doentes em todo o seu percurso no hospital.
MI: E por parte dos gestores?
MD: Os gestores têm de perceber estes modelos de organização, caso contrário, não passam do modelo tradicional, das 20 camas por serviço. Se perceberem esta mudança de paradigma, com certeza que eles próprios vão desenvolver formas organizativas novas.
MI: É importante que sejam gestores de saúde, esta é uma questão mais clara, hoje em dia ?
MD: Se não forem gestores de saúde não têm sensibilidade para estes problemas. A vantagem do gestor de saúde é que ele vê um pouco mais à frente, entra num sistema, mas consegue ter capacidade crítica sobre a organização da prestação. O gestor que não é da saúde olha apenas para as questões financeiras, para as compras, alimentação, e não consegue entrar no core business da actividade, falta-lhe capacidade crítica.
Há quem ainda admita que possa haver gestores de outras áreas de negócio. Acho que, de forma sensata e mitigada, não faz mal nenhum, porque muitas vezes temos nos hospitais situações em que a gestão é corrente , comum, e nessas áreas faz sentido importar o conhecimento.
Mas o core business da gestão hospitalar é mesmo a prestação de cuidados, não é a alimentação, nem a roupa, nem a gestão financeira, é na prestação de cuidados que se determinam os custos, as despesas.
MI: Como vê o trabalho da comissão que está a estudar a reestruturação das urgências hospitalares?
MD: É uma boa iniciativa ter-se criado esta comissão para estudar as urgências, até porque tudo o que tenha na base um estudo e uma visão minimamente objectiva e assente em critérios técnicos é sempre bom, para termos uma decisão política em função das circunstâncias e dos pequenos interesses, lobbies ou conveniência político-partidária.
Não concordo que se atribua à urgência a importância que se lhe dá no sistema, mas em Portugal temos um vício de forma, atribuindo importância às urgências porque as temos cheias, não de casos urgentes, mas de casos que deviam ter outra sede. E daí temos problemas.
As urgências não são o ponto essencial de um sistema de saúde. Pelo contrário. Nos sistemas mais organizados a urgência é uma questão marginal. Só lá vai quem tem um problema grave ou súbito.
MI: O que é que explica tanta procura das urgências?
MD: A Medicina Geral e Familiar muito fraca, que não dá apoio às pessoas, as portas de entrada nas consultas hospitalares muito deficientes, com marcações tardias, as listas de espera enormes, os tempos de espera por consultas, com as pessoas a interiorizarem que na urgência vão sempre ser observadas, que dali saem com qualquer coisa.
MI: Que reflexões faz do trabalho já apresentado pela comissão?
MD: O grupo de trabalho apresentou o seu relatório e, no essencial, reconheço-lhe algumas virtudes, no essencial ao arrunmar a casa em termos de níveis de urgência, básica, polivalente e intermédia.
O relatório tem algumas falhas em termos de análise, por um lado no saber o que acontece às populações que vão perder a urgência, para onde é que elas vão, e, por outro lado, não estuda em profundidade, porque, se calhar, não era essa a sua missão, o problema do socorro no momento do acontecimento, e o transporte, que são duas questões essenciais em urgências.
No essencial o trabalho tem aspectos muito positivos, define pontos de abertura e de fecho, aumentou até o número de urgências, fechou algumas em locais complicados, como na zona centro litoral do País, o que pode provocar um afluxo concentrado a alguns sítios, o que não foi estudado.
MI: E em relação à contestação que tem sido feita, que comentários faz?
MD: A contestação é natural, mas há uma regra que todos temos de assumir. Os recursos não podem estar à porta de cada um e de todos. Não é possível, nem é desejável, porque não há dinheiro e porque em profissões tão melindrosas como a Medicina ou a enfermagem exige-se muita experiência e conhecimento, e se nós dispersamos tudo por pequenas experiências, depois o pessoal técnico não tem competência.
Por estas razões, é óbvio que temos que concentrar recursos, devemos ter cartas hospitalares que definam com rigor onde fica o quê. Infelizmente, em Portugal somos permissivos nisto, e é chocante ver um país aflito sem dinheiro para a Saúde, dispersá-lo.
Se uma população concreta está mais distante dos recursos, se isso acontece devemos compensar essa população em termos de transporte. Para além disso, as populações mais afastadas dos centros tecnológicos, devem ter um reforço de competências ao nível da medicina básica, de proximidade, em serviços comunitários.
Hoje é mais fácil e mais legítimo concentrar meios e recursos do que era há 50 anos e colocar junto das populações a medicina familiar.
O médico de família não pode viver a 100 quilómetros da população, e isso tem que ser corrigido. Temos de criar condições que obriguem os profissionais a viver junto das populações. Há países onde a medicina familiar obriga a viver junto das populações.
MI: Há pouco tempo, uma iniciativa comunitária de Medicina Familiar, em Mértola, foi distinguida internacionalmente. Fazem falta iniciativas destas, das comunidades, das autarquias?
MD: O País, em termos culturais, não está muito virado para a iniciativa própria, mas mais para a dependência do Estado. Temos de reconhecer que muitas dessas experiências, voluntárias e espontâneas da comunidade, são muito importantes e devem ser acarinhadas, até para o próprio Estado as poder aplicar noutros sítios.
MI: Concorda com a profissionalização das Urgências?
MD: Tenho alguma dificuldade, porque eu concordo com equipas de emergencistas, mas é quando estamos a falar em urgências mesmo. Se temos as urgências polvilhadas de falsas urgências, de doenças comuns, não faz sentido pensar em emergencistas.
Faz sentido pensar em emergencistas numa situação de adequação à procura. Se me dizem que a procura é uma mistura de situações graves e mais simples, então, estar a criar equipas de emergencistas não terá grande utilidade. Acho que é pôr o carro à frente dos bois.
MI: Tem-se falado na ”desnatação” dos hospitais públicos, com a mudança de alguns médicos destes hospitais para as novas unidades privadas. Com é que vê essa situação?
MD: Não dramaticamente . Iniciou-se, há já alguns anos, este processo com o aparecimento de grupos privados com investimentos de dimensão empresarial. A formação é feita no sector público, e é natural que os médicos que são recrutados o sejam no sector público, também Vamos assistir de forma crescente a este recrutamento de profissionais seniores formados.
É claro que há logo uma questão importante a esclarecer: então foi o Estado a formá-los e quem vai tirar o máximo proveito deles vai ser o sector privado? Outra nota: os hospitais públicos podem ficar prejudicados por isto, deram formação, deram campo para eles terem treino, formação e conhecimento, se calhar até deram clientela, o chamado doente fidelizado, e, se calhar, alguns desses clientes podem ser cativados para outro lado, o que não deixa de ser um risco em termos de financiamento para os hospitais públicos.
Penso que ainda não estamos numa fase em que isso seja problemático, embora haja aqui aspectos importantes a resolver no futuro: as pessoas não devem ter um pé em cada lado. Se entramos num modelo competitivo entre hospitais públicos e privados, tem que haver uma clara separação das organizações e dos seus profissionais, e isso não existe. Temos ainda muita duplicação de emprego.
MI: Vê alguma forma de alterar esse movimento?
MD: Penso que isto é injusto, e devia haver um mecanismo de compensação. Um mínimo de anos de trabalho talvez fosse a solução mais adequada. A formação é feita, em grande parte, à custa do trabalho público. Um médico não pode ir fazer uma formação para Paris, Nova Iorque e, depois, voltar e ir trabalhar para um grupo privado.
MI: E se os privados começarem eles próprios a fazer a formação ?
MD: À medida que vai havendo massa critica privada a sério nesta área hospitalar, e houver condições de idoneidade dos serviços para funcionarem, não só no ensino pré-graduado, mas também, sobretudo, pós-graduado, faz sentido que as carreiras se possam desenvolver no sector privado, com grandes hospitais integrados numa rede de formação.
MI: Não receia que, assim, surjam uma Medicina de primeira e outra de segunda?
MD: Penso que, para já, não haverá esse risco. Felizmente, não temos uma rede privada que faça a absorção, mais ou menos completa, das competências do público, e não é fácil que isso ocorra. Agora, se em dez anos houver um forte mercado privado, aí os riscos começam a ser maiores. Mas não tenho isso no meu horizonte. Claro que vão saindo alguns, enquanto outros se vão formando cá, e vamos mantendo um sector público forte.
MI: Há pouco tempo, afirmou que as Parcerias Público-privado (PPP) deviam limitar-se à construção dos hospitais, sem se alargarem à gestão clínica. Continua a defender essa posição ?
MD: É muito difícil fazer uma parceria que englobe os dois veículos, o da construção e o da exploração, porque há muita dificuldade em exercer o controlo e manter critérios ajustados de exploração, ainda por cima quando esta é a dez ou 15 anos. A Medicina evolui muito. Uma prática clínica que hoje é boa, daqui a uns anos já não o é, e quando faço um contrato com uma entidade, como é que eu vou prever tudo isso?
Por outro lado, há sempre um risco complicado que estamos a transferir, que é o dos resultados. Isto é, se houver prejuízo, financeiro, económico, é um problema. Agora, o risco do resultado em Saúde é mais difícil de delegar num privado, quando é o Estado que assume a responsabilidade pela Saúde dos portugueses.
Não sou categórico sobre isto, mas precisávamos de ter mais e melhor acompanhamento, e melhores sistemas de informação. Aliás, no episódio triste do hospital da Amadora, e aí não foi um problema de construção, foi só de exploração, o que ficou em cima da mesa foi perceber o acompanhamento económico-financeiro, não era a qualidade do serviço, nem o impacto na comunidade, que nunca foi feito.
MI: Não há ainda um modelo…
MD: O modelo ainda não existe. Cascais vai ser o primeiro, depois Braga, mas penso que ficaremos por aí. Creio que, eventualmente, no Hospital de Todos os Santos haverá apenas parceria para construção.
MI: Como vê a cobrança de taxas moderadoras nos internamentos e cirurgias?
MD: Não acho que seja dramático para as populações haver taxas moderadoras. Mas o problema não se põe apenas aí. O ministro e o Governo conseguiram obviar esse obstáculo isentando muita gente.
As opções clínicas nunca devem ficar subjugadas às questões materiais, têm que estar sempre acima disso, e nunca devemos invocar razões materiais e financeiras para condicionar a performance clínica.
O que está em causa é o princípio. E este é o de que a taxa moderadora existe para moderar o consumo, para que o consumo desnecessário seja afastado do circuito. E, se pomos taxas moderadoras em serviços cuja opção de uso não é do doente, mas do profissional, aí perde sentido a sua existência. E é isso que está em causa.
Nisto tudo, há aqui uma situação misteriosa: não se sabe muito bem qual é a finalidade da taxa. É evidente que, no fundo, é para receber algum dinheiro, mesmo que pouco . Portanto, presume-se que vai apanhar entre 12 a 16 milhões de euros mais, o que não é nenhuma mais valia de especial mas sempre ajuda.
MI: Estas decisões geram insegurança nos cidadãos?
MD: Do ponto de vista político é fácil explorar demagogicamente a situação. Mas está aqui violado o princípio e o conceito da taxa moderadora, porque aqui não vamos »a procura de uma moderação, mas de um co-pagamento e a questão política ésaber quem é que deve ajudar o sistema a ser financiado: são os doentes? Ou são todos os cidadãos? É que, enquanto a taxa é moderadora, ela faz sentido, agora, quando a transformo numa taxa como forma de pedir aos doentes que contribuam um pouco mais, então a questão é outra.
MI: Que comentário faz ao trabalho da comissão que analisou, a pedido do ministro da saúde, a sustentabilidade financeira do SNS?
MD: A comissão é asséptica, não tem opinião. Esperemos que a tenha na parte final do seu trabalho.
O que agora há, é um elenco asséptico de soluções, a primeira das quais é mesmo não fazer nada. Até essa aparece.
Entrevista de Manuel Delgado, presidente da APAH, revista Medicina Interna Hoje, n.º 3, Janeiro 2007
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