Médicos avaliam House
O Dr. Gregory House é um clínico intratável e o (anti) herói de uma já famosa série televisiva.
Texto: Maria Miranda
Fotos: Hugo Amaral
Interpretado pelo actor britânico Hugh Laurie, que já recebeu por isso nomeações para os Globos de Ouro e os SAG Awards, o Dr. Gregory House é o contrário de tudo aquilo que os manuais dizem que deve ser um médico na sua relação com os doentes e os colegas. Um infectologista e nefrologista brilhante com uma excelente capacidade de elaborar diagnósticos diferenciais, destaca-se - pela negativa - pelo seu mau-humor, sarcasmo e cinismo que dirige (sem distinções) a chefes, colegas e doentes. Pacientes, aliás, com os quais prefere não contactar, fazendo-o através dos seus internos. Possui uma deficiência física que lhe dá a desculpa perfeita para usar e abusar dos comprimidos para as dores. É, no entanto, um caso de sucesso e a série televisiva, que chegou recentemente a Portugal, já vai na terceira temporada.
Os médicos portugueses não são excepção e, embora não sejam assíduos telespectadores, lá vão assistindo a um ou outro episódio, confessando embora que, no género, duas outras séries são imbatíveis na maneira como retratam a realidade – trata-se de “Serviço de Urgência” (“E.R.”), que celebrizou George Clooney e “Hospital Central”, que vem de Espanha. Sublinham veementemente o carácter ficcional da figura médica de House – a sua “caricatura” – mas não deixam de lhe apontar algumas qualidades, nomeadamente, o facto de, apesar de quase recusar o contacto directo com os doentes, nunca os tratar como mais um número para as estatísticas.
“Está enfatizado”, “é uma caricatura”, “um mau exemplo”, “um génio isolado” são alguns dos epítetos que os clínicos portugueses lhe dirigem. Miguel Leão, membro da secçao regional do Norte da Ordem dos Médicos e candidato a bastonário afirma que não é possível que um só homem saiba tanto sobre tanta coisa, embora “toda a gente gostasse de ter aquele sucesso” e explica: “quem nos dera a nós decidir um transplante cardíaco num quarto de hora ou pedir e ter uma ressonância magnética em meia hora”.
Apesar das críticas, Miguel Leão viu no último episódio a que assistiu – um caso de um transplante cardíaco decidido em pouco tempo – uma “excelente lição de ética face às administrações hospitalares”. Para o líder nortenho dos médicos, a série só peca mesmo por um defeito: “Um aspecto negativo da série é que falta lá o relógio de ponto e a impressão digital”, o sistema que o ministro da Saúde, Correia de Campos, quer implementar nas unidades hospitalares para controlar a assiduidade e que causou vivas reacções de repúdio por parte das chefias do Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, que ponderam apresentar a demissão em bloco. Se o Dr. House fizesse parte dos quadros a contestação ainda poderia ser maior…
António Vaz Carneiro, que lidera o Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina de Lisboa, no Hospital de Santa Maria, é internista e (tal como a personagem) nefrologista, tendo estudado na Universidade da Califórnia, em São Francisco, no Hospital Monte Sinai e na Escola Médica de Nova York, nos Estados Unidos. Conhece bem a realidade que a série pretende retratar e afirma categoricamente que tal “personagem não existe na América”, nem nunca poderia existir.
Hoje em dia, sublinha Vaz Carneiro, pratica-se “uma medicina complexa, de grupo, em que o diálogo é constante entre os vários médicos e especialistas”, por isso é essencial que não existam “disfuncionalidades” como a que a personagem encarna. “É um génio isolado” que, porém, não se enquadra na forma como a Medicina é praticada actualmente em qualquer parte do mundo. Ou como a retrata a série “E.R.” que mostra o funcionamento das urgências tal como o viveu nos Estados Unidos, “onde há espírito de grupo, hierarquias rígidas e protocolos”.
Na óptica de Vaz Carneiro, um dos aspectos positivos da série é o facto de mostrar o lado mais detectivesco da medicina, de demonstrar às pessoas as dificuldades que os médicos sentem algumas vezes para diagnosticar correctamente uma doença, para que as “as pessoas não esperem demais”.
Mau exemplo
Posição contrária tem o reumatologista e presidente da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas, Jaime Branco, para quem o dr. House não é bom exemplo para os telespectadores que se podem convencer que os médicos são capazes de, quase sempre, bater a morte. Como foi o caso do último episódio a que assistiu e em que House providenciava um transplante de coração em três tempos: “A forma como arranjou o coração seria impossível em qualquer hospital”, frisa. Além disso, de uma forma geral, os “diagnósticos são altamente rebuscados e com evoluções que não são verdadeiras”.
Jaime Branco destaca ainda o “mau exemplo para os profissionais de saúde”. Gregory House “é uma figura impossível, primeiro porque é impossível de aturar”, não sendo concebível como tenha chegado a chefe de um serviço – “seria despedido logo ao segundo dia” de trabalho – e porque é “a negação absoluta da equipa”. Pois, pois, diria o próprio House, respondendo como respondeu a um assistente que diagnosticava um tumor num exame, “e a grande coisa verde no meio daquela coisa azul maior é uma ilha”.
Como corolário, House “tem uma prática médica anormal” em que “as atitudes médicas e terapêuticas estão fora de todos os cânones médicos”, assevera Jaime Branco. Que compreende, porém, que, “para o público, a prática normal da medicina não é interessante”.
O mau exemplo para profissionais de saúde e público em geral estende-se ainda ao facto da personagem ser, afirma Jaime Branco, um “toxicodependente”, devido aos tantos analgésicos que toma. Algo do qual nem os próprios argumentistas da série parecem estar convencidos. A personagem justifica-se: “Se tenho dores às toneladas, tomo toneladas de comprimidos!”.
A “Fox Broadcasting Company” organiza, na página oficial da série, uma sondagem para saber se os telespectadores acham que ele é mesmo toxicodependente. Na outra série, a “E.R.”, recorde-se, um médico teve um problema semelhante, mas os autores puseram os seus colegas de equipa a enviá-lo para uma clínica de desintoxicação especializada em médicos em menos de três episódios.
Todavia, Jaime Branco reconhece-lhe algumas qualidades apetecíveis num médico, embora aqui levadas ao exagero – o nunca desistir de um doente e a grande capacidade de diagnóstico diferencial.
Talvez tenham sido estas qualidades que levaram a presidente de um conselho de administração de um hospital, que Jaime Branco visitava no estrangeiro, a elogiar o Dr. House durante toda a visita e a desejá-lo como membro da sua própria equipa. Num primeiro momento ainda julgou que ela estava a brincar mas, depois, o presidente da Liga Portuguesa Contra as Doenças Reumáticas alertou-a para o aumento da mortalidade que se verificaria no seu hospital. A única desculpa, revela Jaime Branco, é que a referida senhora não era formada em Medicina.
Sedução
O presidente do conselho de administração do Hospital de Santa Maria, Adalberto Campos Fernandes, entende a “sedução” da série, que possui um formato muito apelativo para os telespectadores. Embora sublinhando o carácter totalmente ficcionado da personagem, avança com uma explicação: “Há a percepção de que, quando as pessoas são mais dedicadas, com elevadíssima capacidade profissional reconhecida pelos seus pares e doentes, têm o proverbial mau feitio”.
Também para Jorge Fonseca, gastrenterologista no Hospital Garcia da Horta, em Almada, o formato da série é importante, mas simplesmente porque, na sua opinião, esta não é sobre médicos ou hospitais mas sim um policial. “O Dr. House resolve os problemas como Hercule Poirot e volta-se para os colegas e diz, elementar, meu caro Watson”.
O gastrenterologista, que no seu hospital e em alguns meios ligados ao sector não se safa de ser considerado como o House português afirma: “sou um médico de meia idade, coxo e com mau feitio” admite, defende a tese segundo a qual o sucesso da série, pelo menos em Portugal, se deve também à necessidade que os doentes sentem de terem perto de si um médico como o da série. “As pessoas têm saudades dos médicos, que não fazem clínica burocrática, que não vêem os doentes como mais um número para as estatísticas”. Actualmente, no País que temos, “isto faz muita diferença, as pessoas querem alguém que se preocupe com elas”.
Uma avaliação que o próprio Dr. House descarta: ““É para tratar as doenças que nos tornamos médicos. É tratar os doentes que torna miserável a maioria dos médicos”.
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