A Sofística do ministro da Saúde
O ministro Correia de Campos lançou uma nova tempestade mediática, ao surpreender a opinião pública com a morte anunciada do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Esta declaração do ministro veio confirmar uma prática de comunicação original, que vai desde recomendações aos médicos para "lavarem as mãos" até ao anúncio de encerramento de diversos hospitais públicos. Após atear o fogo, Correia de Campos enverga prontamente a farda de bombeiro, com vista a controlar os danos produzidos, explicando que, afinal, os hospitais só encerrarão quando novas unidades hospitalares forem construídas ou que o SNS terá ainda a sua última oportunidade antes de lhe ministrarem a extrema-unção.
É um estilo muito próprio. Não é lícito, a partir dele, passar ao ministro, reputado especialista em saúde pública, atestados de incompetência profissional, mas, para ser membro do Governo exige-se também alguma sabedoria política que, entre outros os requisitos, pressupõe a visão estratégica da comunicação. Ora, ainda está por esclarecer se estas sucessivas crises mediáticas desencadeadas por Correia de Campos correspondem a estratégias friamente calculadas com vista a produzir determinados efeitos ou se, pelo contrário, estaremos apenas em face do temperamento arrebatado ou do "ego" mal controlado da pessoa em questão.
O espectáculo do SNS, convenhamos, não foi brilhante, se observado do ponto de vista do cidadão comum, suficientemente causticado com medidas restritivas que, na linguagem neo-liberal em voga, se designam por "reformas". A operação desenrolou-se, como vai sendo hábito, em duas fases. Num primeiro tempo, o ministro disse, num seminário sobre gestão hospitalar, que, se os actuais esforços para controlar a despesa pública no sector não resultarem, terá de optar pela ruptura com o modelo do SNS. O utente passará a pagar mais, "com graus de participação (na despesa) de 100, 75 e 50 por cento", consoante o grupo de rendimentops em que se situar. Num segundo tempo, após os protestos surgidos de diversos quadrantes, sustentou que está apenas em causa "apenas uma hipótese" e que as declarações foram "descontextualizadas".
O modelo de comunicação
Este modo de comunicação política, em dois tempos, corresponde provavelmente a uma forma original de praticar o tradicional "balão de ensaio", sem necessidade de recorrer às "fugas de informação". Ao enunciar as suas intenções "sob condição" ("se não for possível conter a despesa..."), ficando por determinar quem é o "sujeito" responsável por tal contenção, o ministro produz em simultâneo dois efeitos: mede a temperatura da opinião pública e prepara-o para soluções drásticas, remetidas para futuro incerto.
Em entrevista a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO (18 de Fevereiro), Correia de Campos afirma ter pretendido dirigir-se, com uma mensagem forte, aos gestores da saúde. Com recurso à metáfora castrense (acaso será apreciada no meio médico e hospitalar?), esclareceu, com meridiana clareza: "(...) O meu papel é chamar as tropas a capítulo. Tenho de dizer àqueles generais e coronéis que está na mão deles garantir que o actual sistema se pode manter ou permitir que tenha de ser radicalmente limitado".
Julgará o ministro que é possível dirigir-se à hierarquia das "tropas", numa sessão pública, sem que o resto do país oiça e comente? Ignorará que, na actual democracia de opinião, não é viável dirigir-se a um segmento do público sem que o resto da população também oiça? Tamanha ingenuidade está fora de causa. Aliás, os protestos não tardaram a surgir, desde logo pela voz de António Arnault que, com a apoio técnico do médico Mário Mendes, apadrinhou, no final dos anos 70, a criação do SNS. À esquerda e á direita, a oposição manifestou-se. O primeiro-ministro ficou preocupado. O ministro Vitalino Canas interveio, numa ingrata missão de "re-contextualização". Correia de Campos recuou para uma trincheira mais protegida.
Desconstruir a retórica
O discurso ministerial (entrevista ao PÚBLICO) merece análise ponderada. Primeiro enunciado: "Eu não desisti: o meu papel tem sido o de tentar mostrar que, com boa gestão, o actual modelo financeiro é viável através do corte da gordura, do corte do desperdício." Segundo enunciado: "Quando o país se convencer de que isso não basta, então será necessário encontrar outro mecanismo de financiamento". O enunciado número dois é, obviamente, contraditório com o enunciado número um. Qualquer cidadão de mediana capacidade interpretativa deduz que o ministro já sabe, mas ainda não quer ou não pode assumi-lo por inteiro, que a gestão rigorosa não bastará para viabilizar o sistema. Limita-se a preparar a opinião para os passos seguintes. Por isso o sujeito da segunda frase "é o país". Se Correia de Campos diz "quando o país se convencer", é porque ele próprio já está convencido. Os esforços de contenção em curso destinam-se apenas a tirar a "prova real": Por isso são apresentados como "a última oportunidade" do SNS.
Esta forma de anunciar, sob a forma de hipótese, medidas futuras que, por sinal, não constam do programa de Governo, não me parece um bom método de comunicação política. Em tempo de restrições e apelo aos sacrifícios, a curto prazo, não parece avisado adensar as nuvens negras inscritas no horizonte. Mas talvez o ministro queira apenas prevenir o futuro. Para já, suscitou protestos de todos os horizontes políticos, mesmo se, à direita, sob o manto diáfano das críticas aparentes, se esconda a satisfação de ver assumidas pelo governo de centro-esquerda o ónus de decisões económicas de pendor "liberal" (António Arnault dixit) que a direita teria dificuldade em assumir em nome próprio. Até o CDS, embora afirmando alguma simpatia pelas propostas, fez questão de considerá-las inconstitucionais. O antigo ministro Luís Filipe Pereira, do PSD, deve sentir-se reconfortado, ao lembrar-se do coro de protestos surgido, quando integrava o Governo de Santana Lopes, por ter anunciado a criação de "taxas moderadoras" diferenciadas consoante o rendimento.
O SNS é uma questão essencial da sociedade portuguesa. Se o modelo de Estado defendido pelos partidos do "centrão" - em especial, neste caso, pelo PS -envolve o financiamento pelos utentes dos serviços de saúde, com a participação do Estado, graduada consoante os rendimentos de cada cidadão, será bom que a questão seja debatida com clareza e submetida ao sufrágio dos cidadãos. A democrata-cristã Angela Merkel ganhou eleições na Alemanha, apesar de ter enunciado claramente que tencionava aumentar impostos e restringir regalias sociais. Não obteve a maioria absoluta, mas criou uma situação que lhe permite governar, em coligação, com plena legitimidade. "Vender gato por lebre" aos eleitores, através de elaborada sofística, é que não é legítimo, por muito pouco que valha a força dos cidadãos, quando comparada com o poder das grandes seguradoras e de outros interesses privados que, por detrás da cortina, espreitam com gula este festival de equívocos sobre o Serviço Nacional de Saúde.
É um estilo muito próprio. Não é lícito, a partir dele, passar ao ministro, reputado especialista em saúde pública, atestados de incompetência profissional, mas, para ser membro do Governo exige-se também alguma sabedoria política que, entre outros os requisitos, pressupõe a visão estratégica da comunicação. Ora, ainda está por esclarecer se estas sucessivas crises mediáticas desencadeadas por Correia de Campos correspondem a estratégias friamente calculadas com vista a produzir determinados efeitos ou se, pelo contrário, estaremos apenas em face do temperamento arrebatado ou do "ego" mal controlado da pessoa em questão.
O espectáculo do SNS, convenhamos, não foi brilhante, se observado do ponto de vista do cidadão comum, suficientemente causticado com medidas restritivas que, na linguagem neo-liberal em voga, se designam por "reformas". A operação desenrolou-se, como vai sendo hábito, em duas fases. Num primeiro tempo, o ministro disse, num seminário sobre gestão hospitalar, que, se os actuais esforços para controlar a despesa pública no sector não resultarem, terá de optar pela ruptura com o modelo do SNS. O utente passará a pagar mais, "com graus de participação (na despesa) de 100, 75 e 50 por cento", consoante o grupo de rendimentops em que se situar. Num segundo tempo, após os protestos surgidos de diversos quadrantes, sustentou que está apenas em causa "apenas uma hipótese" e que as declarações foram "descontextualizadas".
O modelo de comunicação
Este modo de comunicação política, em dois tempos, corresponde provavelmente a uma forma original de praticar o tradicional "balão de ensaio", sem necessidade de recorrer às "fugas de informação". Ao enunciar as suas intenções "sob condição" ("se não for possível conter a despesa..."), ficando por determinar quem é o "sujeito" responsável por tal contenção, o ministro produz em simultâneo dois efeitos: mede a temperatura da opinião pública e prepara-o para soluções drásticas, remetidas para futuro incerto.
Em entrevista a José Manuel Fernandes, director do PÚBLICO (18 de Fevereiro), Correia de Campos afirma ter pretendido dirigir-se, com uma mensagem forte, aos gestores da saúde. Com recurso à metáfora castrense (acaso será apreciada no meio médico e hospitalar?), esclareceu, com meridiana clareza: "(...) O meu papel é chamar as tropas a capítulo. Tenho de dizer àqueles generais e coronéis que está na mão deles garantir que o actual sistema se pode manter ou permitir que tenha de ser radicalmente limitado".
Julgará o ministro que é possível dirigir-se à hierarquia das "tropas", numa sessão pública, sem que o resto do país oiça e comente? Ignorará que, na actual democracia de opinião, não é viável dirigir-se a um segmento do público sem que o resto da população também oiça? Tamanha ingenuidade está fora de causa. Aliás, os protestos não tardaram a surgir, desde logo pela voz de António Arnault que, com a apoio técnico do médico Mário Mendes, apadrinhou, no final dos anos 70, a criação do SNS. À esquerda e á direita, a oposição manifestou-se. O primeiro-ministro ficou preocupado. O ministro Vitalino Canas interveio, numa ingrata missão de "re-contextualização". Correia de Campos recuou para uma trincheira mais protegida.
Desconstruir a retórica
O discurso ministerial (entrevista ao PÚBLICO) merece análise ponderada. Primeiro enunciado: "Eu não desisti: o meu papel tem sido o de tentar mostrar que, com boa gestão, o actual modelo financeiro é viável através do corte da gordura, do corte do desperdício." Segundo enunciado: "Quando o país se convencer de que isso não basta, então será necessário encontrar outro mecanismo de financiamento". O enunciado número dois é, obviamente, contraditório com o enunciado número um. Qualquer cidadão de mediana capacidade interpretativa deduz que o ministro já sabe, mas ainda não quer ou não pode assumi-lo por inteiro, que a gestão rigorosa não bastará para viabilizar o sistema. Limita-se a preparar a opinião para os passos seguintes. Por isso o sujeito da segunda frase "é o país". Se Correia de Campos diz "quando o país se convencer", é porque ele próprio já está convencido. Os esforços de contenção em curso destinam-se apenas a tirar a "prova real": Por isso são apresentados como "a última oportunidade" do SNS.
Esta forma de anunciar, sob a forma de hipótese, medidas futuras que, por sinal, não constam do programa de Governo, não me parece um bom método de comunicação política. Em tempo de restrições e apelo aos sacrifícios, a curto prazo, não parece avisado adensar as nuvens negras inscritas no horizonte. Mas talvez o ministro queira apenas prevenir o futuro. Para já, suscitou protestos de todos os horizontes políticos, mesmo se, à direita, sob o manto diáfano das críticas aparentes, se esconda a satisfação de ver assumidas pelo governo de centro-esquerda o ónus de decisões económicas de pendor "liberal" (António Arnault dixit) que a direita teria dificuldade em assumir em nome próprio. Até o CDS, embora afirmando alguma simpatia pelas propostas, fez questão de considerá-las inconstitucionais. O antigo ministro Luís Filipe Pereira, do PSD, deve sentir-se reconfortado, ao lembrar-se do coro de protestos surgido, quando integrava o Governo de Santana Lopes, por ter anunciado a criação de "taxas moderadoras" diferenciadas consoante o rendimento.
O SNS é uma questão essencial da sociedade portuguesa. Se o modelo de Estado defendido pelos partidos do "centrão" - em especial, neste caso, pelo PS -envolve o financiamento pelos utentes dos serviços de saúde, com a participação do Estado, graduada consoante os rendimentos de cada cidadão, será bom que a questão seja debatida com clareza e submetida ao sufrágio dos cidadãos. A democrata-cristã Angela Merkel ganhou eleições na Alemanha, apesar de ter enunciado claramente que tencionava aumentar impostos e restringir regalias sociais. Não obteve a maioria absoluta, mas criou uma situação que lhe permite governar, em coligação, com plena legitimidade. "Vender gato por lebre" aos eleitores, através de elaborada sofística, é que não é legítimo, por muito pouco que valha a força dos cidadãos, quando comparada com o poder das grandes seguradoras e de outros interesses privados que, por detrás da cortina, espreitam com gula este festival de equívocos sobre o Serviço Nacional de Saúde.
Mário Mesquita. JP 19.02.06
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