sábado, fevereiro 18, 2006

Entrevista de CC ao JP (18.02.06)


"O essencial é perceber que o ritmo de crescimento das despesas não é sustentável com o actual modelo de financiamento"
O ministro da Saúde quis enviar uma mensagem forte aos gestores do sector, mas garantiu ao PÚBLICO que a sua prioridade é melhorar a gestão e cortar nos desperdícios, de forma a garantir a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde.
"O meu papel como ministro da Saúde é preparar-me para todas as eventualidades", disse ontem ao fim da tarde ao PÚBLICO o ministro da Saúde, Correia de Campos. Depois de recordar que no segundo semestre de 2005 se conseguiram conter, pela primeira vez, os gastos públicos com a saúde, quis deixar um alerta aos responsáveis do sector dizendo-lhes o que poderá suceder se não se cortar "nas gorduras". Mesmo assim recordou que as famílias já suportam 30 por cento das despesas totais com a saúde e defendeu que os cenários hipotéticos que avançou cumprem os limites da Constituição.
Jornal Público (JP) - Qual o quadro hipotético em que as condições de financiamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) teriam de ser alteradas?
Correia de Campos (CC)
- O quadro da incapacidade de sustentação financeira do actual sistema. Não é porém essa a situação actual, pois estamos a ter sucesso nas medidas de contenção da despesa, mas temos a noção de que é esta a luta que temos de travar para viabilizar o SNS.
JP: Um relatório recente da OCDE sobre os gastos com a saúde nos países desenvolvidos previa que estes crescessem até 12, 15 por cento do PIB nos países desenvolvidos. Se isso suceder, há milagre económico que possa salvar o actual sistema de financiamento?
CC: Essas projecções foram feitas com base numa projecção linear do crescimento das despesas nos últimos anos e nada nos garante que tenha de ser assim. Se conseguirmos prosseguir com sucesso a política seguida em 2005, em que no segundo semestre revimos em baixa a projecção da despesa na saúde e ainda conseguimos gastar menos um por cento, isso pode não ser necessário. Claro que implicou um enorme trabalho, tremendos sacrifícios, redução unilateral do preço dos medicamentos, controle na despesa de pessoal, reuniões de horas com os 19 grandes hospitais mais gastadores, e isso é o que tem de se fazer. E, no primeiro mês deste ano, na factura dos medicamentos pagos às farmácias, já conseguimos poupar 2,4 por cento relativamente a Janeiro do ano passado. Isto são sinais de que estamos a ter resultados consistentes com a estratégia que definimos.
JP: Mesmo tendo sucesso no combate ao desperdício, e uma melhor gestão dos recursos, a verdade é que isso não faz desaparecer a outra componente que faz aumentar os gastos com a saúde, em especial a existência de cuidados cada vez mais sofisticados e caros e de uma população mais envelhecida que os utiliza também mais. Com a nossa demografia, como é que consegue evitar o aumento dos gastos provocado por estes factores que não derivam apenas da boa gestão dos hospitais e dos centros de saúde?
CC: Vamos por partes. Aquilo que temos de perceber é que, em 2005, graças ao reforço orçamental que permitiu colocar a casa em ordem, foi possível também moralizar o sector e a forma como nele se gastavam recursos e a recuperar a energia dos seus profissionais. E para 2006 fizemos um orçamento exactamente igual ao de 2005, o que é a primeira vez que sucede desde que trabalho na saúde, e trabalho neste sector há 40 anos.
JP: Mas a sua intervenção não focava o curto prazo, falava sobre o que podia acontecer no médio, longo prazo.
O nosso ritmo de crescimento das despesas com a saúde fui muito acentuado nos últimos anos, mas estamos a chegar a um momento em que temos de perceber que isso não é sustentável. Temos de atenuar o ritmo de crescimento das despesas através da racionalização dos serviços, de ganhos de eficiência, etc., etc. Eu não desisti: o meu papel tem sido o de tentar mostrar que, com boa gestão, o actual modelo financeiro é viável através do corte da gordura, do corte do desperdício. Quando o país se convencer de que isso não basta, então será necessário encontrar outro mecanismo de financiamento. O que disse foi que há outros modelos de financiamento dentro dos limites constitucionais e que, caso não consigamos evitar chegar a essa situação, terão de ser estudadas. Temos de estar prevenidos. O meu papel como ministro da Saúde é preparar-me para essas eventualidades, mesmo fazendo o possível para que elas não ocorram.
JP: Uma comparticipação de 25, 50 por cento nas despesas de saúde não se está a ver como pode caber nos limites constitucionais...
CC: Isso foi apenas um exemplo, um modelo possível.
JP: A Constituição fala de um modelo tendencialmente gratuito.
CC: Tendencialmente gratuito não quer dizer cem por cento gratuito. Nos medicamentos, a comparticipação actual do utente já é elevada. Os cuidados dentários também não têm comparticipação. É bom não esquecer que em Portugal os utilizadores, as famílias, já suportam cerca de 30 por cento dos custos totais com a saúde. O sistema já tem hoje uma enorme margem de co-pagamento pelos utentes.
JP: Podemos interpretar as suas palavras naquela assembleia como uma forma de colocar pressão sobre os gestores do sector?
CC
: Absolutamente, foi esse o objectivo. A plateia era muito diferenciada, de gente responsável, e o meu papel é o de chamar as tropas a capítulo. Tenho de dizer àqueles generais e coronéis que está nas mãos deles garantir que o actual sistema se pode manter ou permitir que tenha de ser radicalmente modificado.
JP: Vai modificar o regime das taxas moderadoras?
CC: Este ano vamos apenas actualizá-las. A portaria está para sair.
JP: Mas vai introduzir modificações na sua filosofia, designadamente indexando-as aos rendimentos?
Não vou fazer isso este ano porque há muitas outras coisas para fazer antes, como requalificar urgências, maternidades. Sabe, por exemplo, que temos 68 serviços de atendimento permanente dispersos pelo país que atendem em média menos de três doentes por noite? Ter cada um deles aberto da meia-noite às oito da manhã custa por dia 1250 euros, o que dá mais de 400 mil euros por ano por posto, o que representa 39 milhões de euros. Desses 68, há muitos que não chegam a atender uma pessoa por noite. Temos de encontrar soluções, até porque ter o centro aberto custa caro e dá uma falsa segurança, pois os casos mesmo urgentes acabam por ter de ser enviados para as urgências, porque um médico e um enfermeiro sozinhos não resolvem os problemas mais complicados. Se reestruturarmos este sistema, pensando basicamente em melhorar a qualidade, até conseguimos mais racionalidade financeira. O que não faz sentido é que o contribuinte pague coisas que nem qualidade têm.
Entrevista conduzida p/ José Manuel Fernandes JP n.º 5806, 18.02.06