segunda-feira, setembro 06, 2004

Procriação Medicamente Assistida

CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA
PARECER Nº 44 DO CONSELHO NACIONAL DE ÉTICA PARA AS CIÊNCIAS DA VIDA Procriação Medicamente Assistida(Julho de 2004)

Introdução :
A presente reflexão do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre Procriação Medicamente Assistida (doravante designada por PMA) foi suscitada pela apresentação na Assembleia da República de dois projectos de lei sobre esta matéria - 90/IX (PS), “Regula as técnicas de procriação mediamente assistida”, e 317/IX (BE), “Procriação medicamente assistida” -, sobre os quais o CNECV foi solicitado a pronunciar-se. O Conselho entendeu que, dada a relevância e impacto na sociedade portuguesa da matéria em consideração, não se deveria restringir à apreciação dos documentos propostos, competindo-lhe uma reflexão alargada sobre a problematização ética da PMA.
Neste amplo domínio, a reflexão ética sobre a PMA intersecta outras áreas de desenvolvimento biomédico com relevantes implicações éticas e impacto social que, como tal, não podem ser ignoradas pelo CNECV, mas também não devem ser tratadas de uma forma subalterna, merecendo tornar-se alvo de parecer autónomo. Referimo-nos primeiramente ao Diagnóstico Pré-Implantação (DPI), apenas tornado possível a partir do desenvolvimento das tecnologias reprodutivas (FIV, ICSI), que o Conselho tenciona analisar proximamente. Referimo-nos também à investigação em células estaminais, especificamente em células estaminais embrionárias (ES) que depende parcialmente da produção de embriões in vitro, a qual poderá incidir sobre todo o tipo de células estaminais conhecidas (embrionárias, germinais e somáticas), na consideração do seu distinto potencial de diferenciação e da sua diferente proveniência, com as respectivas exigências técnico-científicas e implicações éticas. Um Parecer sobre a matéria será brevemente apresentado.
Atenda-se a que já em mandatos anteriores o CNECV havia testemunhado a importância que reconhece à reflexão ética sobre a PMA através da elaboração de dois Pareceres sobre o tema (vd. Pareceres 3/CNE/93 e 23/CNECV/97). As principais razões que determinaram os Pareceres anteriores reforçam-se hoje:
- na evolução das técnicas, no aumento da taxa de infertilidade/esterilidade conjugal, na multiplicação das instituições em que a PMA se pratica, no avolumar e complexificar das questões éticas implicadas;
- na prolongada ausência da necessária e urgente legislação específica relativa à PMA, não obstante esforços legislativos passados, nomeadamente a proposta de lei n.º 135/VII de 1997 e o decreto 415/VII de 1999, para além de outros trabalhos, relatórios e pareceres;
- na consolidação de interesses que se constituíram em torno da PMA; pelo que com maior ordem de razão se justifica o Parecer que se segue.

Considerações prévias

O CNECV, atento ao exposto e no reconhecimento:
- do profundo sofrimento que a infertilidade/esterilidade pode causar;
- das possibilidades inauguradas pelas técnicas de PMA na superação da infertilidade/esterilidade;
- do eventual desregramento da prática das técnicas de PMA e a possibilidade de abusos da sua utilização;
- do imperativo ético de salvaguardar a integridade dos candidatos a pais e dos profissionais envolvidos, bem como de zelar pela dignidade do ser humano em projecto;
- do direito de protecção ético-jurídica do embrião, independentemente do seu estatuto ontológico;
- da moral entendida como consenso social alargado na partilha de convicções acerca do bem e do mal, do correcto e do incorrecto;
- da existência de uma pluralidade axiológica na sociedade portuguesa frequentemente representativa de diferentes sectores sociais (religiosos, políticos, étnicos, etc);
- da diversidade de concepções morais que a variada legislação internacional sobre a matéria reflecte através das distintas normativas preconizadas;

- é de parecer que:

1. Os progressos técnico-científicos, em geral, e especificamente as técnicas de PMA, devem não só manter-se ao serviço da humanidade, mas também privilegiar o respeito pelo ser humano face aos interesses da ciência, no corroborar do princípio ético do primado do ser humano.

2. Na fidelidade ao desígnio original das técnicas de PMA, e ao abrigo do princípio da beneficência, estas devem ser utilizadas por razões médicas, em situações de infertilidade e/ou esterilidade, percepcionadas como doença pelo casal, sendo sua finalidade a de tentar obter a concepção de um ser humano quando alterações aos mecanismos fisiológicos da reprodução o não permitem pelos meios naturais.

3. As técnicas de PMA não constituem, assim, procedimentos alternativos à reprodução natural, mas antes, de acordo com o princípio da subsidiariedade, métodos terapêuticos subsidiários.

4. Excepcionalmente e por ponderadas razões estritamente médicas decorrentes da prevenção da transmissão de doenças graves de origem genética ou outra, poderão ser consideradas derrogações ao enunciado princípio da subsidiariedade. Estas derrogações deverão ser autorizadas por uma entidade independente proposta no ponto 28 do presente Parecer.

5. Neste contexto, estas técnicas deverão ser utilizadas como auxiliares da concretização de um projecto parental, o que implica a consideração não só do desejo dos candidatos a pais, mas sobretudo dos interesses do futuro ser humano que vier a ser concebido através da PMA, na assunção do princípio da vulnerabilidade que obriga ao cuidado e protecção do outro, frágil e perecível.

6. São beneficiários das técnicas de PMA os casais heterossexuais, com uma relação estável, quer hajam contraído matrimónio, quer vivam em regime de união de facto.

7. As técnicas de PMA deverão utilizar exclusivamente os gâmetas do casal, respeitando-se assim a regra da não instrumentalização da vida humana, decorrente do princípio da dignidade humana.

8. Excepcionalmente e por ponderadas razões estritamente médicas, quando esteja em causa a saúde reprodutiva do casal, poderá ser considerado o recurso a doação singular de gâmetas. Esta derrogação deverá ser autorizada por uma entidade independente proposta no ponto 28 do presente Parecer.

9. A doação, quando autorizada, não permite qualquer tipo de retribuição, devendo permanecer absolutamente gratuita, no respeito pela regra da não comercialização do corpo humano ou das suas partes que decorre do princípio da dignidade humana.

10. No caso de PMA com recurso a dador de gâmetas, deverá ser salvaguardada a possibilidade de identificação do dador, a pedido do seu filho biológico e a partir da maioridade legal deste, no reconhecimento ao direito do próprio à identidade pessoal e biológica. A informação genética relevante para a saúde do filho biológico e não identificável do dador deverá manter-se permanentemente disponível, podendo ser solicitada, antes da maioridade do filho biológico, pelos representantes legais deste.

11. O conhecimento da identidade do dador de gâmetas não poderá implicar, por parte do filho biológico, a reivindicação de quaisquer direitos em relação àquele ou de deveres daquele para com o próprio.

12. Os beneficiários das técnicas de PMA devem ser claramente informados acerca da natureza técnico-científica do processo, incluindo a descrição das intervenções a que serão sujeitos e seus potenciais benefícios e riscos, designadamente os que podem afectar os interesses da criança a nascer.

13. A informação prestada deverá igualmente incidir sobre os seguintes aspectos: psicológicos – tais como o agravamento do sofrimento psicológico na intensificação de sentimentos de frustração ou de comportamentos obsessivos, sociais – como seja a apresentação de alternativas, nomeadamente a adopção, legais – particularmente no caso de recurso a dador de gâmetas -, económicos –na incerteza do investimento financeiro alcançar o bem desejado e, mesmo em caso de sucesso, na dificuldade de previsão de custos totais; e éticos – quer relativos ao casal, na perda da privacidade da sua intimidade, quer relativos à futura criança, na artificialização da sua geração, quer em relação ao dador.

14. O consentimento deverá ser expresso por escrito e poderá ser revogado a todo o tempo até ao momento da transferência, de acordo com o enunciado geral da regra do consentimento informado, decorrente do princípio da autonomia.

15. Também o dador de gâmetas deverá ser claramente informado acerca da natureza e implicações do acto a que se propõe, no cumprimento da regra do consentimento informado, implicada no princípio da autonomia.

16. De todos os actos que impliquem a utilização das técnicas de PMA deve ser garantida confidencialidade, no respeito pelo direito à privacidade individual, com excepção do previsto no n.º 10.

17. Deverá ser garantido aos profissionais de saúde o direito à objecção de consciência relativamente à execução das técnicas de PMA, consignado pelo princípio da autonomia.

18. A implementação das técnicas de PMA deve impedir a produção de um número de embriões superior ao destinado à transferência - embriões excedentários -, atendendo ao princípio do respeito pela vida humana, bem como reduzir a incidência de gravidezes múltiplas, na assunção do princípio da responsabilidade enquanto obrigatoriedade de prevenir as consequências negativas dos actos praticados.

19. Todo o embrião humano tem direito à vida e ao desenvolvimento, no corroborar do princípio universal de que todo o existente requer existir, pelo que o embrião originado in vitro deverá fazer sempre parte de um projecto parental.

20. A promoção da adopção embrionária é o procedimento ético mais adequado no que se refere ao devir dos embriões excedentários actualmente existentes, bem como àqueles que, por circunstâncias ou razões imponderáveis, venham futuramente a ser excluídos do seu projecto parental originário, pois é o único procedimento que permite reintegrar o embrião num projecto parental, cumprindo o seu destino originário de transferência para o útero e garantindo o seu direito à vida e ao desenvolvimento.

21. Sempre que a adopção embrionária não se verifique num prazo de tempo útil, comprometendo assim a possibilidade de vida e de desenvolvimento do embrião, impõe-se ponderar as possíveis alternativas do destino a dar aos embriões excedentários, a saber, a sua disponibilização para investigação científica ou a

22. A investigação científica em embriões humanos apenas é eticamente legítima quando procede em benefício do próprio embrião. Poderão ser consideradas derrogações a este enunciado geral quando o único destino alternativo for o da destruição do embrião. Nesta situação, os embriões poderão ser utilizados para investigação científica que, não actuando em benefício dos próprios, resulte em benefício da humanidade.

23. Qualquer projecto de investigação científica em embriões humanos deve ser rigorosamente escrutinado, pelos órgãos competentes já instituídos para o efeito, quanto à qualidade científica do projecto e dos investigadores responsáveis e quanto ao grau de previsibilidade de benefícios para a humanidade, devendo ser igualmente objecto de acompanhamento fiscalizador nas suas diversas fases de desenvolvimento, na observância das directrizes ético-jurídicas comuns a toda a experimentação em seres humanos.

24. Nenhum dos investigadores envolvidos em investigação científica em embriões poderá pertencer a qualquer centro de PMA e/ou instituição onde se mantenham embriões criopreservados, a fim de evitar um conflito de interesses potencialmente penalizador da vida e desenvolvimento do embrião.

25. A criação de embriões apenas para fins de investigação científica não é eticamente aceitável.

26. Quando após a fertilização ovocitária ocorrer a formação espontânea de embriões biologicamente inviáveis, estes estão, por este facto, excluídos de qualquer projecto parental e poderão ser disponibilizados para investigação.

27. As instituições, públicas ou privadas, em que actualmente se pratica PMA deverão ser sujeitas a um processo de certificação, devendo as novas instituições da mesma natureza, públicas ou privadas, a serem criadas, estar sujeitas a um processo de licenciamento. Apenas estes requisitos permitirão o controlo público da actividade e a transparência do seu exercício.

28. É recomendada a criação de uma entidade independente, de natureza pluridisciplinar, destinada ao acompanhamento técnico, ético e social da utilização das técnicas de procriação medicamente assistida decorrentes da lei, a apresentar propostas para acreditação e licenciamento dos centros públicos e privados de procriação medicamente assistida assim como ao acompanhamento das pessoas a serem submetidas às técnicas de procriação medicamente assistida e das nascidas com a intervenção dessas técnicas.

Lisboa, 26 de Julho de 2004
Paula Martinho da Silva
Presidente
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida