Correia de Campos, entrevista
Foi duas vezes ministro da Saúde e, da segunda vez, deixou o cargo por causa da contestação à reestruturação das urgências.
Numa altura em que a reforma da rede hospitalar de Paulo Macedo é contestada, o eurodeputado socialista avalia a política de saúde do Governo e fala sobre o PS e da Europa. Correia de Campos falou com o PÚBLICO na sexta-feira, horas depois da sua derradeira aula na Escola Nacional de Saúde Pública, em que o tempo de maturação das reformas foi um dos temas abordados.
Na sua última lição, falou sobre a lentidão na aplicação das reformas públicas. Por que escolheu este tema?
Para se fazerem reformas a sério, elas têm que ser bem preparadas, mesmo que sejam muito rebatidas. Muitas vezes, o problema é a aceitação política da ideia.
E também a coragem política. A reforma da rede hospitalar está outra vez na ordem do dia. No seu tempo, estava sustentada tecnicamente, mas depois houve a reacção que sabemos e que levou à sua saída.
Hoje há muito maior aceitação. Há uma aculturação em relação a essas medidas de racionalização. Isto não significa que os temas não sejam emotivos. E os ligados às maternidades são mais emotivos do que qualquer outro.
Defende que a Maternidade Alfredo da Costa (MAC) não deve ser encerrada.
A MAC tem de ser integrada num hospital central. Mas, neste momento, sem estar construído o hospital de Todos-os-santos [Oriental de Lisboa], não tem sentido nenhum encerrar a nossa melhor maternidade. Se precisamos de poupar e reconverter, então reconvertamos a Magalhães Coutinho e o São Francisco Xavier, que têm um desempenho muito abaixo do mínimo exigido.
Mas São Francisco Xavier fez grandes investimentos recentes.
Errados. Foram investimentos afectivos, porque foram desencadeados por um mecanismo de afecto. Houve pessoas que tocaram algumas cordas sensíveis de decisores e que construíram uma maternidade sem ser necessário. O mesmo aconteceu com a maternidade Magalhães Coutinho. A MAC deve ser transportada para o hospital de Todos-os-santos.
Mas ainda não se sabe se o hospital vai para a frente?
Os decisores económicos são racionais. Temos seis ou sete estabelecimentos em Lisboa que podem encerrar com a abertura do Todos-os-santos. A despesa de funcionamento adicionada é de certeza inferior à despesa de funcionamento do novo hospital. E não me venham dizer que não é possível encontrar fundos. Estamos a falar de um hospital de 300 milhões de euros. Se estivéssemos a falar uma central nuclear de 5 ou 6 mil milhões ou de um TGV que pode custar 2 mil milhões, ainda admito que a troika pudesse dizer alguma coisa.
Os decisores económicos são racionais. Temos seis ou sete estabelecimentos em Lisboa que podem encerrar com a abertura do Todos-os-santos. A despesa de funcionamento adicionada é de certeza inferior à despesa de funcionamento do novo hospital. E não me venham dizer que não é possível encontrar fundos. Estamos a falar de um hospital de 300 milhões de euros. Se estivéssemos a falar uma central nuclear de 5 ou 6 mil milhões ou de um TGV que pode custar 2 mil milhões, ainda admito que a troika pudesse dizer alguma coisa.
No debate que houve esta semana no Parlamento, o PS não deu grande importância à MAC.
É evidente que o Bloco de Esquerda e o PCP acham que o que é público não pode desaparecer, mesmo que seja mau ou ineficiente. Eu não penso assim e acho que o PS não deve pensar assim. O PS é um partido responsável.
A MAC está a ser um teste à política de Paulo Macedo?
O Governo cometeu um erro de gestão de informação. Tornou aquilo muito emocional. Não foi capaz de gerir bem o envolvimento do presidente da câmara e acabou por culpabilizar o antigo director. Isso nunca se faz. O assunto não é fácil, mas também não é uma marca de água da política do Governo.
O “pai” do SNS, António Arnaut, já pediu a demissão do ministro.
O pai do SNS costuma pedir a demissão dos ministros todos ao fim de um tempo. Paulo Macedo está a destruir ou a defender o SNS? Eu estava perfeitamente convencido, até há bem pouco tempo, que o dr. Paulo Macedo não estava interessado em destruir o SNS. Acho que ele é, genuinamente, uma pessoa com pendor humanista e sensível aos argumentos da universalidade e da igualdade no acesso.
Disse que estava. Já não está?
Há declarações dele esta semana a dizer que o SNS não é sustentável...
O que ele disse foi que, apesar de todas as medidas adoptadas, a sustentabilidade financeira do SNS ainda não está minimamente assegurada.
Essa afirmação é que acho... Pode querer dizer várias coisas: que não tem dinheiro para pagar o SNS este ano ou no próximo, ou que o modelo actual é insustentável. Aquilo que conheço dele não é esta segunda versão. Ele acredita que é possível sustentar o SNS com racionalidade. Fez cortes extremamente corajosos nos medicamentos. Talvez devesse ter falado com a indústria antes. Mas o que é isso comparado com a brutalidade da decisão de suspender as reformas antecipadas de forma unilateral? Um Governo que acredita no mercado não faz isto.
Mesmo para evitar uma corrida às reformas?
Desculpe, isso é uma tanga enorme. Então não era possível fazer um despacho a dizer que até ao dia tal não se aceitam reformas antecipadas e entretanto negociava-se com os sindicatos. Vivemos num sistema tripartido. Vivemos na Europa. Não vivemos numa república sul-americana. É um reflexo de direita, um instinto direitista autoritário: tenho medo desta discussão e por isso vamos fazer a política do facto consumado. E com o argumento de que isto é como a desvalorização da moeda. Pelo amor de Deus! Não são minimamente comparáveis.
Há mais sinais na política do Governo onde veja esse instinto autoritário?
Este é um sinal extremamente visível. Infelizmente, há outros sinais que eu não sou capaz de interpretar.
O ministro Paulo Macedo tem defendido que é possível fazer cortes sem pôr em causa a qualidade da prestação dos cuidados de saúde. É possível ?
É, sim senhor.
Há gestores que dizem que, com a Lei dos Compromissos, não é possível gerir hospitais.
A Lei dos Compromissos foi feita para ser violada. Não tem sentido nenhum na saúde fixar essas regras.
A questão do aumento das dívidas e da derrapagem dos prazos de pagamento é cíclica. Porquê?
Porque tivemos eleições e afrouxou o rigor orçamental. É preciso andar sempre em cima das administrações.
São as pressões autárquicas e partidárias que explicam os défices com que vivemos
Explicam uma parte. Lembrome sempre do Centro Hospitalar do Médio Tejo, onde há três hospitais e um deles está a mais. Na minha primeira passagem pelo Governo, em 2002, soube que esse hospital, onde não estava prevista uma urgência traumatológica, tinha resolvido comprar uma ressonância magnética. A partir da ressonância, vinha a urgência polivalente. Fiz uma reunião com as câmaras e com toda aquela gente e perguntei quem tinha mandado comprar isto e com que dinheiro tinham pago? Passei seis horas a explicar-lhes o que eles deviam saber, que comprar equipamentos desnecessários só para aumentar a glória da sua terra é um crime. Consegui evitar, mas, quando eu saí, consumou-se…
É a ideia de que alguém há-de pagar…
Um dia, um administrador de um pequeno hospital do Norte veio ter comigo absolutamente aterrorizado a dizer que estava farto de avisar o director para ter cuidado com as compras e ele respondeu-lhe: “Você está preocupado com isso? Alguém há-de pagar, há-de haver um orçamento rectificativo. Ou então vem a Merkel e paga isso…” Este homem devia ter sido demitido imediatamente.
Não foi?
Não, porque eu só soube disto muito mais tarde.
Ao longo destes anos, nenhum gestor hospitalar foi despedido. Ninguém é penalizado?
Há muita pressão política sobre os cargos de direcção dos hospitais. Eu próprio, em alguns casos, não consegui resistir à pressão política.
É com a troika que as pessoas começam a sentir, pela primeira vez, que agora não há mesmo volta a dar?
Criou um ambiente muito mais favorável para a gestão eficiente, isso é verdade.
O PS diz que as medidas na saúde vão mais longe do que o definido com a troika.
No transporte de doentes, era necessário moralizar a situação. O que está em causa é o financiamento das corporações de bombeiros, através de pagamentos sem controlo das despesas de transporte. E isso tinha que ser moralizado.
E nas taxas moderadoras?
A subida é aparentemente alta, mas foi ao mesmo tempo esbatida pelo aumento do número de isenções. Isto é muito difícil de avaliar, mas eu não sei se os portugueses ficaram pior ou melhor do que estavam. Antes, havia muitas violações da lei: taxas que não eram cobradas e isenções que não se justificavam. E valores que eram muito baixos, alguns deles.
A redução do preço dos medicamentos e outras medidas levaram a uma redução da despesa no ambulatório na ordem dos 20% em 2011. Nos hospitais, o ministro anunciou agora uma descida de 12% nos remédios hospitalares. Isto não é a prova de que era possível ter ido mais longe no seu tempo?
Pode-se sempre ir mais longe. Até se pode ir ao ponto da asfixia… O ponto onde se vai é o do equilíbrio político. Eu pratiquei dois cortes no preço dos medicamentos e, em troca, obtive da indústria um conjunto de concessões. A política é arte do possível.
Há estudos que apontam os impactos graves da austeridade para a saúde pública na Grécia. Não teme que o mesmo aconteça em Portugal?
Nunca chegaremos a esse ponto. Se quisesse argumentar com a evidência epidemiológica, davalhe o exemplo da Inglaterra. Na última guerra, tirando os mortos no confl ito, teve dos melhores índices de saúde de sempre, porque tinha uma população a comer disciplinadamente e fazia exercício físico obrigatório.
Não está a dizer que a austeridade é boa para a saúde?
Não, não quero dizer isso. Há factores que podem ser gravíssimos, como a doença mental, a depressão ou o suicídio.
Como “pai” do programa das Parcerias Público-Privadas (PPP) na saúde, como viu as conclusões das auditorias do Tribunal de Contas e da Inspecção-Geral de Finanças, que põem em casa os seus principais fundamentos?
Infelizmente, habituei-me a ter uma opinião muito céptica sobre as auditorias quer do TC quer da IGF. Convivi de perto com uma auditoria da IGF ao Amadora/Sintra. E se a auditoria tivesse sido bem feita, provavelmente o Estado não teria gasto em tribunal aquilo que teve de pagar. A auditoria era um conjunto de análises absolutamente infundamentadas. Quanto às auditorias do TC, não são julgamentos de contas. São opiniões. Não têm nenhum valor jurídico.
As divisões no PS Já disse que, enquanto o PS estiver dividido, o PSD vai continuar a ganhar debates. A que atribui as divisões do PS?
As questões da divisão são públicas. Corroboro parte delas. O PS devia ter sido mais enérgico não direi na defesa de Sócrates, mas nos valores e dos resultados positivos do Governo socialista. O que é importante defender não é a figura do líder. É defender uma política. E fizemos muita coisa bem feita. Não precisamos de nos envergonhar disso.
Que balanço faz da liderança de António José Seguro?
A liderança é muito difícil. Está entalada entre o demonizar Sócrates e alienar uma parte da sua bancada, e o defender Sócrates e travar uma batalha sem fim com outra parte da bancada e sobretudo com os opositores, neste caso o Governo. É um caminho cheio de minas. O Governo tem usado até ao limite do aceitável a propaganda e o descrédito porque sabe que do PS não há resposta.
Seguro é um líder a prazo?
Antonio José Seguro foi eleito por uma maioria muito sólida. Tem a possibilidade de continuar a liderar o partido até às eleições. Não há nenhum movimento contra ele dentro do PS.
O novo Tratado Europeu é uma boa resposta à crise?
Este tratado é claramente enviesado. Tem um número de artigos muito maior dedicado ao controlo e à disciplina e à punição dos países em termos orçamentais e três paragráfos perfeitamente anódinos sobre o crescimento.
O debate sobre o tratado mostrou que há desentendimentos muito fortes entre o PS e o PSD.
O Governo não precisava nada de antecipar este debate. Devia ter adiado para depois das eleições francesas, como outros países fizeram. O Governo, num seguidismo infrene, está a querer ser o menino bem comportado da sala e dizer que é o primeiro a entregar os deveres. Nunca o deveria ter feito. Não fica mais bem visto na fotografia se aprovar agora ou daqui a quatro semanas.
E o líder do PS está a gerir bem este processo?
Está a gerir como pode. É evidente que a proposta de adenda isolada na véspera com o “ou assinas ou não assinas” tinha muito poucas hipóteses de ter sucesso. Mas não vi também da parte do Governo nenhuma vontade de a discutir sequer. Vi uma rejeição liminar.
O Governo está a marginalizar o PS?
Sim, claramente. E isso é muito perigoso. É uma enorme insensatez. O Governo precisa do PS para legitimar muitas coisas. Se faz muitas mais destas, entrega o PS nos braços da ultra-esquerda.
Não há uma crise dos partidos socialistas europeus se apresentarem como uma alternativa real?
Existe uma crise do pensamento socialista. Houve aqui um momento de alguma esperança, na primeira fase do Tony Blair, mas que depois se estragou com o Iraque. Com a sua vocação de publicista e ganhar dinheiro a fazer conferências e a fazer livros, deu cabo de tudo.
A responsabilidade é do Tony Blair? Não, é de toda a esquerda. Os socialistas estão órfãos de uma referência desde Blair?
O socialismo não se faz com referências pessoais. Faz-se com ideias, como o modelo social europeu. Isto não signifi ca que não deva ser modernizado. Mas não ser assassinado. Pelos vistos, o Draghi [presidente do BCE] diz que ele está morto. Não espero que um financeiro diga outra coisa do modelo social europeu.
A Terceira Via destruiu a esquerda?
Diminuiu muito as condições. Tenho muito pena, pois eu próprio depositei muitas esperanças nela. E por isso uma vitória do François Hollande tem, sobretudo, um valor simbólico. Não sei se vai executar tudo o que tem proposto. Espero que não. Pois algumas coisas deixam a França em muito maus lençóis, como antecipar a idade de reforma para os 60 anos.
entrevista de João d’Espiney e Miguel Gaspar (texto), Pedro Cunha (fotografia), JP 15.04.12
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