sexta-feira, outubro 05, 2007

Na Saúde não há milagres

Para manter o SNS é necessário distinguir o que é razoável exigir do Governo do que é insuportável pedir a um orçamento

Na Europa não há dois sistemas de saúde iguais. Cada país criou há décadas, ou séculos, um modelo de sistema de saúde, de acordo com as suas condições políticas, sociais, económicas, culturais, que se desenvolveu sem perder, em regra, as suas referências constitucionais.
Em Portugal também assim aconteceu. O Serviço Nacional de Saúde (SNS) nasceu no final da década de 1970, influenciado pelo modelo inglês. No centro da Europa, sob a influência do modelo alemão, desenvolveu-se um sistema assente em seguros sociais, com menor intervenção do Estado. Com excepção de períodos mais agudos da vida de cada país, o modelo inicial mantém-se. E mantém-se por duas razões fundamentais: porque o modelo resulta da adequação a uma complexa realidade social e porque aquele concreto sistema social é conhecido das pessoas e transmite-lhes segurança. O SNS português nasceu, desenvolveu-se e demonstrou ter capacidade para permitir melhorias significativas na saúde dos cidadãos, mas demonstrou, também, uma fome insaciável de dinheiro.
Poder-se-á dizer que esse consumo colossal de recursos resulta de factores inevitáveis - o envelhecimento da população, a evolução tecnológica - e que o mesmo acontece nos outros países com que nos comparamos. Sim e não.
Sim, porque será sempre necessário mais dinheiro para prevenir doenças e tratar doentes durante mais tempo, porque os portugueses vivem mais anos, a população está mais envelhecida e com doenças cada vez mais incapacitantes. Não, porque da riqueza do país retiramos uma fatia maior para a saúde do que a grande maioria dos países da União Europeia e porque o aumento da despesa com o SNS cresceu 9,2 por cento por ano, entre 1995 e 2004, enquanto o PIB, ou seja a riqueza do país, cresceu 5,9 por cento. Mas, entre 2004 e 2006, aconteceu um quase milagre: o PIB cresceu 3,2 por cento, enquanto a despesa do SNS se ficou por 2,9 por cento.
Então, quatro observações são possíveis: 1) Existe um significativo consenso político sobre o modelo constitucional de SNS e uma manifesta preferência dos portugueses pela sua manutenção; 2) Se a despesa com o SNS voltar ao ritmo de crescimento da década de 1995/2004, os portugueses devem preparar-se para pagar mais dinheiro pela saúde, seja com a manutenção do actual modelo, seja com um modelo alternativo assente em seguros de saúde; 3) Se a despesa com o SNS se mantiver ao ritmo de crescimento dos últimos dois anos, então não só o modelo actual é viável como poderá tratar melhor os portugueses, cobrindo áreas em que a sua resposta é quase inexistente e preocupar-se mais com aquilo que aflige a população - as listas de espera para muitas consultas e cirurgias; 4) O crescimento da despesa do SNS ao ritmo dos últimos anos depende, em larga medida, da racionalização na utilização dos recursos disponíveis e da contenção de gastos.
Para que seja possível manter o actual modelo de SNS é necessário que saibamos distinguir o que é razoável exigir do Governo do que é insuportável pedir a um orçamento da saúde financiado por impostos. A busca de eficiência, o combate ao desperdício, a utilização racional da tecnologia, a melhoria da produtividade e a clarificação dos conflitos de interesses devem estar presentes no léxico dos decisores e dos cidadãos, enquanto contribuintes e enquanto consumidores de cuidados, como medidas que beneficiarão, a prazo, toda a população. A prevenção da doença, a promoção de estilos de vida saudáveis e os projectos que previnam a incapacidade e a dependência precoce devem ser entendidos como fazendo parte de uma estratégia de melhoria da saúde da população e de sustentabilidade do modelo constitucional de serviço de saúde.
Finalmente, os direitos dos cidadãos devem ser fortalecidos, incluindo o direito à qualidade do serviço, prestado em tempo útil, e a uma gestão adequada e transparente dos recursos envolvidos.
Jorge Simões, JP 02.10.07