sábado, julho 21, 2012

UE, aftermath

No passado dia 6 de Julho, a ministra das Finanças finlandesa afirmou que preferia preparar-se para sair do euro do que pagar as dívidas dos outros países. Foi também a 6 de Julho que foi lançado o livro Aftermath.
Produto da discussão e das análises realizadas ao longo dos últimos três anos no âmbito de um projecto que teve o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e foi coordenado por Manuel Castells. Na abertura desse livro alerta-se o leitor para a possibilidade de, quando estiver a lê-lo, a crise se ter de novo metamorfoseado. E é esse o caso.
O dia 6 de Julho de 2012 será lembrado como o momento de uma nova fase da crise iniciada em 2008. A crise é hoje abertamente institucional, colocando em causa a própria natureza do que virá a ser o futuro da União Europeia. Nós estamos a viver num rescaldo continuado da crise. O rescaldo a que nos referimos é a paisagem social, económica e institucional que está a surgir dos escombros do colapso e da tentativa de salvamento — com uma manta de retalhos — do capitalismo financeiro global e informacional que transformou as sociedades nas últimas três décadas.
O que nos reserva o futuro, ninguém o sabe, porque, entre outras coisas, uma das características do poderoso sistema financeiro no coração da crise foi a privatização do futuro, substituída por um mercado de futuros a ser comercializado segundo os ganhos de curto prazo. O resultado, como sabemos, tem sido a imprevisibilidade sistemática e a quebra da solidariedade intergeracional. Mas se não sabemos quais serão os contornos do futuro, sabemos algo de muito importante: não podemos regressar ao nosso passado recente. A virtualização do capital; a securitização de tudo num ambiente não regulado; o desligar da produção de bens e serviços da sua valorização; a separação entre as moedas e as políticas fiscais; a ficção da integração total das economias europeias com diferentes níveis de produtividade e défices públicos divergentes; o financiamento da dívida das economias no centro da rede global com empréstimos dos capitais acumulados no que outrora era a periferia; tudo isto chegou aos limites da sustentabilidade.
O que está a ser debatido não é a necessidade de reestruturar o sistema, mas o que deve ser feito e como. Em particular, quem paga pelo quê e quanto, quem fica com os benefícios e quem suporta o sofrimento da transição para um novo conjunto de instituições e regras. Tal será decidido segundo as relações de poder na base dos valores, interesses, estratégias e políticas que estão a ser debatidas na economia global em rede, nos Estados-nação e em cada sociedade em rede específica. De facto, os sistemas sociais não colapsam em resultado das suas contradições internas. A crise, os seus conflitos e o tratamento que lhes é dado são sempre um processo social. E este processo social é implementado e moldado pelos interesses, valores, crenças e estratégias dos actores sociais. Isto para dizer que, quando um sistema não reproduz automaticamente a sua lógica, existem tentativas de o restaurar tal como era, bem como projectos para reorganizar um novo sistema com base num novo conjunto de interesses e valores. O resultado final é, muitas vezes, resultado de conflitos e negociações entre os actores que são os porta-estandartes destas diferentes lógicas.
O sistema capitalista financeiro global que induziu a crise foi a expressão de um determinado conjunto de interesses, bem como a manifestação de uma cultura económica específica. Estes interesses e esta cultura ainda dominam na economia e na sociedade. Assim, o primeiro esforço para reestruturar o sistema caracterizou-se pela tentativa de restaurar as mesmas regras do jogo num enquadramento institucional mais apertado, menor redistribuição de riqueza e maior vigilância na implementação da lógica do sistema sobre os excessos dos seus gestores sem regras. Em termos de políticas económicas, depois do falhanço financeiro de Setembro de 2008, foi considerado um conjunto de estratégias, e algumas foram implementadas, por governos, empresas e instituições internacionais. No novo ambiente de produção de políticas, o Estado, tanto o Estado-nação como as redes de diferentes Estados, recuperou o seu papel de direcção na gestão do capitalismo através de múltiplas medidas. Na base destas medidas para lidar com a crise estava um crescente debate político entre os que defendiam o restabelecimento da saúde financeira do sistema e depois deixar o mercado fazer o seu papel, e os que duvidavam da capacidade do mercado se restabelecer dada a forte quebra da procura e de crédito disponível. Deste modo, propuseram uma nova forma de neokeynesianismo temporário, enfatizando os gastos públicos despendidos para induzir a criação maciça de empregos a curto prazo.
A tentativa neokeynesiana, que implicava um aumento substancial nos gastos públicos, durou pouco tempo nos países que a tentaram implementar. Existiam limites fiscais e, à medida que o rápido aumento da dívida pública aumentava o preço da estratégia, os mercados financeiros reagiam, desvalorizando as obrigações dos países sobreendividados e desvalorizando os das suas economias. À medida que as forças mais conservadoras se opunham tanto ao aumento dos impostos para os maiores rendimentos como aos gastos públicos, também existiram limites políticos que impossibilitaram qualquer projecto neokeynesiano, fazendo do sonho de um Estado-providência informacional um ideal utópico.
País após país, as elites políticas envolveram-se em batalhas pela atribuição da culpa, tentando retirar vantagens das dores da crise para destruir os seus adversários políticos. A conclusão destas batalhas foi a ausência de coerência na gestão da crise, tanto a nível nacional como internacional, e a deslegitimação dos governos na mente dos seus cidadãos tornados desconfiados. Assim, o rescaldo imediato da crise de 2008 caracterizouse pela incapacidade dos governos em gerir a crise, induzindo o agravar da crise económica em 2010, da crise financeira a partir de 2011 e da crise institucional a partir de meados de 2012. Enquanto as empresas financeiras recuperaram os seus lucros, o mercado imobiliário colapsou; os incumprimentos em empréstimos para habitação dispararam por todo o lado; as linhas de crédito para as PME foram drasticamente reduzidas, provocando falências em massa; o desemprego disparou; a procura ainda se deprimiu mais; e os cidadãos fecharam-se nos seus países expressando de todas as maneiras a sua falta de solidariedade com outros povos e outras nações, mesmo quando os seus governos afirmavam a necessidade absoluta de partilharem a dor. De facto, a visão das elites empresariais a satisfazerem os seus elevados padrões de vida e das elites políticas a manterem a sua arrogância face à população desinformada, aprofundou a distância entre o povo e os poderes e abriu caminho para a raiva descontrolada, reacções populistas e movimentos sociais alternativos.
Assim, este é o rescaldo da crise: os resíduos disfuncionais de um modelo económico baseado num sistema financeiro incapaz de se reformar; a mudança da acumulação de capital dos velhos centros que se virtualizaram até à morte para as novas periferias que possuem e produzem a economia real, sem ainda terem o poder para a gerir; na maioria dos países um sistema político em ruínas, produto da sua autodestruição e dos ataques das multidões privadas de direitos que deixaram de acreditar nos seus líderes; uma sociedade civil em desordem, à medida que as velhas organizações sociais se esvaziaram e os novos actores da mudança social ainda são embrionários; e a mais importante característica desta paisagem: as velhas culturas económicas que garantiam a segurança, como a crença no mercado e a confiança nos bancos, perderam o seu poder comunicativo, enquanto as novas culturas baseadas na tradução do sentido da vida em sentido económico ainda estão a ser criadas. Tendo percorrido, desde 2008, o longo caminho que nos levou da crise financeira dos mercados até à crise institucional da União Europeia, e por arrasto dos Estados europeus, tornou-se fundamental abrir uma nova etapa de reconstrução das nossas sociedades, mercados e Estados. Este é o nosso ponto de partida. O “rescaldo” é aquilo que nos induziram até agora a viver; o futuro, teremos de o criar, pois ninguém deverá poder antecipá-lo por nós.

Debate União Europeia, Gustavo Cardoso e João Caraça. JP 21 Jul 2012

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