segunda-feira, julho 23, 2012

"Os doentes com cancro em Portugal estão a ser punidos”

Vítor Veloso é muito crítico em relação ao modo como está a ser feita em Portugal a luta contra o cancro:

Antes de começarmos esta entrevista dizia que estava muito preocupado. Com quê?
Uma das questões que mais me preocupa está relacionada com os sobreviventes do cancro que não estão a ser devidamente tratados. Estas pessoas têm de ter, indiscutivelmente, uma vigilância contínua mesmo depois dos cinco anos livres de cancro e, para a Liga, é muito preocupante que estes doentes não sejam defendidos.

Mas estas pessoas não estão isentas de taxas moderadoras, como diz o ministro da Saúde?
O senhor ministro anunciou publicamente, há cerca de dois meses, que os sobreviventes de cancro, após cinco anos livres da doença, não pagariam taxas moderadoras dos exames e consultas relacionadas com a sua patologia. Mas, de qualquer modo, isso ainda não saiu em sítio nenhum. Estes doentes continuam a pagar e sem qualquer apoio.

Existem cerca de 250 mil pessoas nesta situação, é isso?
Mais. Na minha opinião serão entre os 300 e 400 mil doentes. É preciso que haja uma portaria, directriz, circular, qualquer coisa oficial que diga que estes doentes estão efectivamente isentos. Nessa altura, estes que estão a pagar deviam ser reembolsados. Os doentes reclamam que estão isentos e a parte administrativa diz que não sabe de nada e, por isso, acabam por pagar. Só houve a palavra do ministro e mais nada. Isto não pode ser.

Relativamente aos doentes com cancro, a LPCC também está preocupada ?
Também. A nível da acessibilidade há muitos problemas. As pessoas não têm dinheiro para pagar os transportes. Uma senhora contavame que gastava todo o dinheiro que o Estado dá só no táxi de sua casa até ao transporte público que precisava de apanhar até ao Porto. Isso é dramático. O Governo fixa a isenção na base do ordenado mínimo mas, para as pessoas que têm rendimentos um pouco acima disso e que não estão isentas, é muito difícil aguentar. São muitas consultas e tratamentos.

Há doentes a faltar às consultas?
Houve muitos doentes que faltaram a consultas e tratamentos de radioterapia e quimioterapia e que continuam a faltar. Repare que isso faz a diferença entre uma cura ou a sobrevivência com qualidade e uma morte desnecessária.

Tem ideia de quantas pessoas estão nessa situação?
Não. É difícil ter dados sobre isso até porque os doentes têm medo de se queixar, seja do que for.

Medo?
Pode acreditar que sim. Têm medo de represálias dos serviços onde são tratados. É uma realidade e uma tolice. Aliás, quando um doente faz queixa, provavelmente, vai ser mais bem tratado.

Está a desafiar os doentes a apresentar queixas?
Não. Acho que os doentes têm o direito e o dever de apresentar queixas, reclamações.

E, na sua opinião, têm razões para se queixar?
Muitas. O que se está a passar nesta área é perverso e perigoso. Os doentes estão a ser punidos. As acessibilidades, as taxas moderadoras, as consultas não atempadas...

Demoradas?
Consultas que não são realizadas dentro dos limites aceitáveis para que o doente oncológico seja visto.

Por exemplo?
Uma espera de um ano num serviço hospitalar de urologia para uma consulta, existindo já a suspeita de um diagnóstico de cancro da próstata não é aceitável. Ou a espera de um ano para serem chamados para uma consulta de otorrinolaringologia. Isto acontece. Por outro lado, os hospitais tentam contornar isto porque recebem um pedido de consulta mas não inscrevem de imediato o doente. Com isto ganham tempo, por vezes dois ou três meses. Os hospitais optam por só inscrever o doente quando têm vaga e assim, aparentemente, cumprem os tempos de resposta que são exigidos. Isto passa-se em praticamente todos os hospitais.

Há cortes de medicamentos Têm sido referidas dificuldades de acesso a medicamentos...
Esse é outro problema grave. Há doentes, por exemplo, que estão a fazer hormonoterapia que são doentes ainda em tratamento e, neste caso, o que vemos é que temos hospitais de primeira, segunda e terceira. Uns dão esta medicação, outros não dão e outros nem se interessam. Isto não pode ser. É um princípio de igualdade que está a ser ferido. Não entendo que no nosso país existam estas diferenças de tratamento.

Mas quem é que não dá este tratamento? Os IPO dão?
Os IPO ainda dão, mas custame que os outros hospitais que fazem oncologia não dêem. Como disse, isto é um princípio de igualdade, mas também acredito que a decisão não pode partir dos próprios hospitais. O senhor ministro disse recentemente que nunca tinha proibido os hospitais de dar qualquer tipo de medicação. É evidente que não, mas isso é uma forma encapotada de não ter responsabilidades e passá-las para os conselhos de administração que estão cada vez mais apertados com os cortes nos seus orçamentos. O ministro tem de assumir o ónus político e definir o que é que o Estado pode pagar. Tem de ser uma orientação do Ministério da Saúde.

Há medicamentos, sobretudo os novos, com custos elevados...
Há medicamentos muito caros que não são comprovadamente eficazes ou que dão uma sobrevida de mais dois ou três meses e muitas vezes sem qualquer qualidade de vida. Cortar aqui faz sentido. Mas aqueles que são e que demonstram durante anos e anos que são armas eficazes, esses têm de ser garantidos e o país tem de fazer esse esforço.

Também estão a ser cortados?
Alguns hospitais cortamnos por causa de restrições económicas. Insisto que é ao Ministério da Saúde que compete definir o que se corta e não devem ser as administrações hospitalares. Já se disse que os conselhos de administração seriam sujeitos a procedimento penal se ultrapassassem os seus orçamentos. Ora, é evidente que, numa situação destas, as administrações hospitalares serão cada vez mais restritivas.

Mas é preciso cortar. Onde?
Podemos racionalizar nas consultas, meios de diagnóstico, exames. Muitas vezes pedem coisas repetidas, sem interesse. Mais uma vez estamos perante algo perverso. Os médicos, muitas vezes, tentam contornar alguns problemas e, por exemplo, pedem exames muito mais caros, mas que não têm lista de espera para acelerar as coisas. E o hospital ainda não percebeu que vai gastar mais dinheiro do que se efectivamente respondesse atempadamente aos doentes.

Por exemplo?
Em vez de pedir um raio X ou uma mamografi a pedem uma ressonância magnética. Em vez de pedir uma TAC pedem um PET. Isso envolve uma enorme diferença de preço e o PET não tem lista de espera. Sob o ponto de vista económico, é um desastre. Depois há os exames repetidos, os centros de saúde pedem exames que nos hospitais voltam a ser pedidos. Fazem análises repetidas. É preciso que funcione melhor.

A prometida rede de referenciação pode ajudar a melhorar estas respostas?
A rede de referenciação é virtual e já não corresponde minimamente à realidade actual. Em dez anos mudou tudo, os critérios, as condições, os equipamentos, as especialidades... O Governo tem já um ano de vigência e tudo aquilo que devia estar feito a nível de oncologia ainda não foi feito. Mas na rede a aplicar há que ter em atenção que zonas no interior precisam de ter hospitais de referência no tratamento do cancro. Cada vez fi co mais preocupado com a tendência de centralizar tudo no litoral e com a desertifi cação do interior do país.

Mas concorda que há serviços que devem encerrar?
Claro que sim. Há locais sem conhecimento sufi ciente parta tratar doentes oncológicos. E muitas vezes estes serviços mais pequenos têm acesso a fármacos que os grandes hospitais não têm. Há outros pequenos serviços que não deviam fechar e o Estado devia dar-lhes condições e recursos.

O cancro está subfinanciado
Não acha que investir em tempo de tantos cortes será difícil?
O cancro está subfinanciado. As doenças cardiovasculares gastam o dobro. E o cancro mata mais.

Recentemente, associou este aumento de mortes a uma falta de qualidade de tratamento. Em que se baseou?
A incidência aumentou, a esperança de vida também, o aparecimento de cancro na velhice é muito mais frequente. Por tudo isto há mais mortes no cancro.

Então não tem a ver com a qualidade do tratamento...
Provavelmente, ainda não está relacionado. Podem já existir casos de tratamento não atempado. Mas se continuarmos com este tipo de atitude, se não se fi zer nada, pode ter a certeza que as mortes por cancro vão aumentar também por falta de tratamento atempado ou adequado.

Muitos destes doentes, antes de se queixarem, pedem ajuda. A Liga tem recebido mais pedidos?
Sim. Pedem para pagar medicamentos, transporte, tudo. Até alimentação. Aparecem-nos as coisas mais extraordinárias no sentido negativo. Houve um aumento de 50 por cento no último ano. Estamos a falar, aqui no Norte, de cerca de quatro mil pessoas que pedem ajuda à Liga. Umas de forma pontual e outras regularmente.

Quantos pedidos tinham antes?
Há cinco anos tínhamos um quarto destes pedidos. E ainda não estamos a falar numa fatia da população que há agora, de “novos pobres”, que estava no limiar e que ou porque foi alvo de um despedimento ou outro motivo jáestá neste momento na pobreza. Estas pessoas têm vergonha e não sabem como aceder aos apoios que existem.

Esses ainda não bateram a esta porta?
Muito poucos. E isso preocupanos. Gostávamos que estes “novos pobres” viessem ter connosco, sem problemas.

Terá resposta para eles?
Temos. Temos programas que prevêem actividades que são importantes – como a educação para a saúde –, mas que estamos dispostos a sacrifi car. Dada a situação do país e destes doentes, não vamos hesitar em diminuir a actividade desses programas para termos resposta. Temos actualmente um orçamento de 400 mil euros só para os pedidos de ajuda, há três anos eram 75 mil. E, se for preciso, desviamse mais verbas. É fundamental neste momento auxiliar o doente oncológico em difi culdades.

Entrevista Andrea Cunha Freitas, JP 22.07.12

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