segunda-feira, abril 03, 2006

Entrevista do coordenador da MCSP

Fórum Empresarial (FE)A Missão tinha objectivos previstos até Janeiro de 2006. Que medidas são essas e qual é o actual ponto de situação ?
Luís Pisco (LP): Tudo aquilo que tínhamos previsto até Janeiro de 2006 foi genericamente cumprido.
Fui nomeado em Outubro de 2005 e os primeiros passos foram escolher uma equipa de 15 pessoas para trabalhar comigo. Depois, havia uma segunda fase que era criar grupos de apoio ou CAE. Portanto, em cada uma das regiões do país tinha que ser nomeado um coordenador desse grupo de apoio local, de comum acordo entre o coordenador e os presidentes da ARS. Isso foi feito e neste momento temos a nossa equipa completa. São dez colaboradores a nível nacional e cinco coordenadores. Depois, havia que criar as condições para serem lançadas as candidaturas às Unidades de Saúde Familiares (USF) e isso foi feito no dia 12 de Janeiro, ou seja, três meses depois da nomeação do coordenador da Missão. Assinou-se, também, o despacho com as regras que têm de ser cumpridas para as equipas se poderem candidatar às USF. Esse despacho já foi publicado em DR e no dia 1 de Março iniciram-se as candidaturas, através da internet.
FEQuais são os objectivos das USF ?
LP
– O objectivo final, para a Missão, é modificar os cuidados de saúde primários e torná-los mais acessíveis e de melhor qualidade para os cidadãos. Isso consegue-se reconfigurando os centros de saúde, no total de 360 a nível nacional e com quase duas mil extensões, sendo assim uma rede que cobre todo o país, embora tenha algumas fragilidaes. Portanto, temos que melhorá-los, através da desburocratização, e torná-los mais próximos das pessoas.
FE: Essa transformação não podia passar pela reestruturação dos próprios Centros de Saúde ?
LP: É isso que estamos a fazer. Não se vão fechar Centros de Saúde. O que se vai fazer é reconfigurar os Centros de Saúde, organizando-os de maneira diferente.
As USF vão pertencer aos centros de saúde e algumas funcionarão no espaço dos actuais centros. Já temos muitos centros de Saúde e alguns deles construídos recentemente e com boas instalações.
FE: Que outras características apresentam as USF ?
LP: Há um aspecto importante que é a alteração da remuneração dos profissionais, que vai premiar os bons desempenhos e as boas práticas. Não é um sistema remuneratório como o que existe na Alemanha ou na Áustria, que é o pagamento por acto, mas sim como o da Dinamarca ou do Canadá, que é um pagamento por capitação.
Há uma espécie de lista ponderada que não são só as pessoas que estão inscritas num determinado médico, é a composição dessa lista e isso será reflectido no pagamento desse médico.
Até aqui, este sistema de pagamentos só se aplicava aos médicos. Estamos a tentar que ele seja extensível também aos enfermeiros porque, se queremos manter o trabalho em equipa, temos de premiar as equipas por esse bom trabalho.
FE:Estamos a falar de equipas multidisciplinares ...
LP: Estas USF só têm médicos, enfermeiros e administrativos.
Estas equipas, através de adesão voluntária, poderão alargar o seu espaço de atendimento. Se o utente souber que a sua USF está aberta até às 10.00 horas da noite, será um dos médicos da equipa que o irá atender. Como as equipas têm, no máximo, oito médicos, ao fim de algum tempo, as pessoas ficam a conhecer todos os médicos e isso traz vantagens.
O horário de funcionamento é das 8.00 horas às 20.00 horas, mas é possível contratar-se um horário extra de atendimento, caso se prove que isso é benéfico para os cidadãos de uma zona. Mais do que isso, não faz qualquer sentido porque se houver uma verdadeira urgência , entre as 24.00 horas e as 10.00 horas, há um hospital de serviço a uma distância razoável. Estar aberto até às 20.00 horas ou ao sábado ou domingo de manhâ, também pode ser uma mais valia, porque permite melhorar a acessibilidade, sem que as pessoas tenham que estar a faltar ao trabalho.
Podem ser envolvidos nestas equipas entre 300 a 800 médicos, no total. E entre quatro mil a 14 mil pessoas. Em 100 unidades contabilizam-se 1.400 pessoas. E vamos poder escolher os locais onde há melhores condições para as equipas aparecerem.
As equipas têm autonomia e contratualizam uma carteira básica de serviços, sendo que, depois, podem contratualizar uma carteira adicional, para aumentar os serviços. Há as chamadas Agências de Contratualização com quem se pode negociar um regime de incentivos.
FE: Uma das falhas apontadas aos Centros de Saúde é a desvirtualização de algumas valências importantes para os utentes. As USF prevêem resolver alguma coisa neste sentido?
LP: Obviamente que há valências que são clássicas : o planeamento, a saúde infantil e materna, a medicina preventiva e tudo isso terá de ser prioritário nestas USF. Como são multidisciplinares, têm essa vantagem de fornecer vários serviços, de forma a que a pessoa não tenha que ser sempre vista pelo médico, podendo ser também vista pelo enfermeiro.
O Centro de Saúde prestará apoio a várias unidades de saúde familiar e existirá um conjunto de outros profissionais, como nutricionistas e assistentes sociais, que poderão ter actividades de promoção da saúde, o que é uma aposta muito clara destes futuros centros de saúde.

Propostas de Mudança
FE
: O que está previsto em relação aos Centros de Saúde existentes ?
LP: Vamos aproveitar os actuais Centros de Saúde que, normalmente, têm 16 médicos, e transformar cada um em duas USF com oito médicos cada, e um número de administrativos e enfermeiros semelhante. Não ficam fisicamente separados porque o edifício é o mesmo, mas em termos funcionais poderão ficar. Onde hajam instalações degradadas, é claro que se farão coisas novas.
FE: Geograficamente existe algum critério para a implementação destas USF ? Há algum rácio pré definido ?
LP: O objectivo é haver uma cobertura de toda a população por médicos de família e nas periferias das grandes cidades, que é onde há mais falta de médicos. Não é no interior do país ou nas cidades, mas sim nas cinturas de Braga, Setúbal, e Lisboa onde há problemas e aí até poderá ter de se construir algo de raiz.
FE: Qual a expectativa quanto às candidaturas para as USF ?
LP: Não sabemos o que se vai passar em termos de candidaturas. Penso que elas se irão constituir rapidamente. A minha expectativa é que haja muito mais grupos interessados do que vagas. As candidaturas abriram no dia 01 de Março e já surgiu uma quantidade interessante de candidaturas.
Quando atingirmos as 100 USF temos que parar para fazer um balanço e realizar um estudo económico.
Como as USF têm contratualização, avaliação e normas de boas práticas, ganha-se em eficiência porque há muito desperdício no SNS e são esses ganhos que pagam este sistema. Portanto, não esperamos gastar mais do que se gasta com os Centros de Saúde actualmente, até porque há muitas horas extraordinárias, muitos exames complementares de diagnóstico desnecessários e muita coisa que pode melhorar a qualidade da prescrição.
FE: A finalidade da Missão é justamente fazer este acompanhamento ?
LP: Sim. O tempo de vida desta missão é de 18 meses. Iremos estar a funcionar até Abril de 2007 e o nosso objectivo é acompanhar e facilitar todo este processo. Depois de estar tudo lançado, a gestão poderá ser feita pelas ARSs. Não seria possível às estruturas existentes, como as ARS e a DGS, ter mais este projecto.

Incentivos monetários
FE
: Como é que se podem ligar as USF à falta de médicos, sobretudo, de família ?
LP: Não se vão arranjar médicos de repente. Primeiro, temos que tratar bem os médicos que se formam. Nos últimos anos, houve um aumento de formação de médicos, mas que não é suficiente. Ainda continua a haver falta. Mas os regimes que existem têm de ser melhor aproveitados e os médicos têm de ter incentivos para aumentar as suas listas de doentes, assim como deve aumentar o número de outros profissionais nos Centros de Saúde.
FE: E que tipo de incentivos estão previstos ?
LP: Eles passam pela reorganização funcional e pelo incentivo monetário. Os médicos têm que saber que, se aumentarem a sua lista de utentes, têm que ter a noção de que isto não é elástico e que não podem ter cinco mil doentes. Só podem ter dois mil que, nas unidades ponderadas, poderá dar um pouco mais. Mas uma maior produtividade terá de ser acompanhada com a qualidade.
FE: Os médicos ou os profissionais de saúde foram auscultados nesta reestruturação ? Eles são favoráveis às USF ?
LP: Os médicos foram auscultados. Fizémos reuniões nas cinco ARSs, onde estavam centenas de pessoas. O ministro da Saúde esteve nalgumas apresentações e falou a todos os profissionais de saúde presentes. Fizémos também muitas reuniões com profissionais de saúde e com a Ordem dos Médicos. Estamos a procurar ter a maior transparência possível e que as pessoas só adiram ao projecto se, de facto, acharem que isso tem interesse e que é estimulante.
FE: Está previsto dar formação aos médicos e aos profissionais de saúde no âmbito dessa reestruturação ?
LP: Sim. Não basta pôr as pessoas juntas para formar uma equipa. Há um conjunto de aspectos que podem ser treinados, porque estas equipas vão ter autonomia. Têm de falar umas com as outras e vão ser responsabilizadas, avaliadas e vão fazer contratos sobre as metas que querem atingir e sendo recompensadas por isso. Há uma maior autonomia mas acompanhada de uma maior responsabilidade, o que não está muito nos hábitos dos portugueses.

Urgências fora das USF
FE: O hospital também presta alguns cuidados de saúde primários. Qual é o papel do hospital nesta reestruturação ?
LP: O hospital dedica-se mais aos cuidados de saúde secundários. Mas tem que haver uma articulação entre os hospitais e os Centros de Saúde.
Neste momento, estão a decorrer várias reformas simultâneamente: a dos cuidados primários, a dos serviços de saúde pública, a dos cuidados continuados, que é uma área em que a Saúde se tem demitido muito e está a ser feita uma reforma dos atendimentos de urgência, seja dos hospitais, seja dos Centros de Saúde e, ao mesmo tempo, ainda há a reforma da administração pública.
Nos hospitais, obviamente que vão ter de haver muitas alterações; provavelmente nós temos hospitais e serviços de urgência a mais e está tudo centrado nas urgências, o que é mau em termos de qualidade. O objectivo é que as pessoas sejam vistas o mais próximo possível de casa e em locais adequados. Os hospitais são sítios perigosos e é mau para uma criança, que apenas tem uma virose ou um pouco de febre, estar muito tempo numa sala de espera de um hospital, onde está um conjunto de outras patologias.
FE: Mas está previsto que as USF tenham um serviço de SAP, como os actuais Centros de Saúde ?
LP: O conceito de urgências nesses SAPs não faz sentido porque não são verdadeiras urgências. Como se pode explicar que uma pessoa vá a um SAP e a tecnologia mais sofisticada que o médico tem é um estetoscópio e um aparelho medidor de tensão. Criar a ideia de que há urgências em cada esquina, é uma falsa sensação de segurança porque se se tiver um enfarte do miocárdio, uma situação verdadeiramente urgente, os minutos são fulcrais.
O que vai haver é um Call Center, um serviço de atendimento telefónico, onde as pessoas serão reencaminhadas, assim como a rede de urgência (INEM) tem de ser estendida a todo o país.
Os SAP só se justificam porque os Centros de Saúde não têm acessibilidade e, hoje, é uma solução imediata.
FE: Então estes SAP não vão funcionar nas USF ?
LP: Não funcionam, de certeza. O conceito das USF é não ter SAP. A Unidade tem um horário de abertura, com acessibilidade e se for vista pelas características da população, concerteza estará aberta até às 20.00 horas ou meia noite.
Agora, dificilmente se justificará da meia noite às 08.00 horas, porque aí, as situações verdadeiramente urgentes terão que ir para o hospital de referência, ou nos casos de não haver hospital, para as unidades básicas de urgência. Mas essas têm condições mínimas para serem consideradas unidades de urgência.
FE: Não haverá o risco das USF ganharem os mesmos problemas que os Centros de Saúde, pelo facto de haver um número elevado de pessoas sem médico de família, que depois vai passar a usar essas unidades ?
LP: Temos que provar que é possível trabalhar melhor, se forem dadas condições, se as pessoas estiverem organizadas e se tiverem incentivos para isso. Não podemos permitir que as USF fiquem afogadas. Às pessoas que não se podem inscrever, o Estado tem de garantir atendimento. Agora, isso coloca uma pressão na parte de quem tem que organizar os serviços de saúde, que tem de contratar mais médicos e mais pessoal. Não é para fazer uma mudança de cosmética e tirar pessoas de um lado para o outro.
FE: O Centro de Saúde é a primeira porta a que os doentes ocorrem. No caso de um surto de gripe das aves, está previsto algum projecto de prevenção ao nível da USF ?
LP: A gripe das aves é um problema de Saúde Pública grave, se vier a acontecer e penso que, neste momento, a DGS e a DGV estão a lidar com esse problema de forma sensata, não alarmando as pessoas.
Neste momento a gripe das aves é um problema de veterinária, não é um problema humano. As pessoas devem ter a noção de que há riscos se houver uma mutação e que se isso de facto se transmitir de humano a humano, será um problema de saúde pública dos mais graves que enfrentámos nos últimos tempos. Mas as autoridades têm planos de contingência: a DGS tem um grupo perfeitamente organizado e com sistemas de alerta; a DGV faz as análises quando aparece uma ave morta.
Penso que, dentro daquilo que é possível fazer-se na área da saúde pública, está a ser feito. Agora, não se pode estar a causar alarme público com algo que ainda não existe.
entrevista de luís pisco, JN n.º 725, 31.03.06- Saúde em Portugal