terça-feira, março 14, 2006

Encontro Nacional Clínica Geral


1. Desejo saudar a Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral que reuniu uma plateia tão numerosa e interessada e agradecer o convite que me foi dirigido.
A reunião demonstra a coesão da vossa especialidade médica, a força do vosso argumentário profissional e a capacidade reconhecida de combinação entre o interesse pessoal dos associados e o interesse público.
Venho falar-vos, hoje, da reforma do exercício da vossa profissão, no contexto do Serviço Nacional de Saúde.
2. A reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP), é disso que se trata, constitui, de par com a rede de cuidados continuados a idosos e dependentes, um dos grandes objectivos da governação na saúde. Não é o défice, os gastos em medicamentos, o monopólio das farmácias, os hospitais EPE, as parcerias no investimento. É também tudo isso, mas a razão de ser da actividade governativa não é o sistema, são as pessoas, pelos ganhos em saúde. O sistema não pode vir antes. E sem CSP não pode haver uma estratégia de ganhos em Saúde. São o primeiro contacto, o encontro da família com o sistema, quando está doente, mas também quando se mantém saudável. Contacto mediado pela escola, pela comunidade de convivência, pelo local do trabalho, pela comunicação social, parceiro mediador indispensável entre o sistema e o cidadão, cuja presença importante neste evento, hoje particularmente saúdo.
3. Durante anos pensámos quase exclusivamente no sistema: na sua arquitectura, nas prioridades organizativas, na distribuição do poder interno, nos recursos financeiros e físicos, nos recursos humanos e na sua qualificação, nos parceiros sociais, menos ou mais cooperantes, menos ou mais interessados, menos ou mais competentes e dedicados. Ocupámos muitos anos a tecer a malha do sistema, a rede de hospitais, primeiro, a de centros de saúde, depois, a articulação com o sector convencionado. Concebemos e orgulhosamente construímos, com poucos recursos mas com elevada prioridade, um sistema universal, isto é, para todos: geral, isto é, cobrindo uma vasta gama de acções, desde a promoção da Saúde, à prevenção da doença, ao tratamento, à reabilitação. E também altamente comparticipado para pobres e ricos. Integrámos velhas e novas doenças infecciosas ligadas ao social, como a tuberculose, o HIV e agora a gripe; velhas patologias sociais, como o alcoolismo e a saúde mental, agudizadas a cada solavanco da sociedade; respondemos com arsenal pesado a desafios difíceis, imprevistos e mutantes, como a toxicodependência. Não tivemos ainda recursos suficientes para a saúde oral, para a gravidez adolescente, para a saúde das minorias étnicas. Só agora estamos a ter algum sucesso na luta contra a guerra civil nas estradas, mas continuamos a descurar o risco ocupacional. Transitámos, epidemiologicamente, da elevada incidência das doenças cérebro-vasculares e baixa na doença isquémica, para a situação quase oposta, gastando mal os recursos que temos, necessitando de desenvolver duas tarefas simultâneas e quase contraditórias: a correcção e eventual reorganização da rede de referência cardiovascular e o reforço da prevenção primária e até secundária no tratamento antes, até ao hospital e também depois dele.
Tentamos, de forma algo atabalhoada, acompanhar o progresso terapêutico na luta contra o cancro, mas estamos ainda mal preparados no diagnóstico precoce e nem sempre oportunos ou selectivos no tratamento.
E descurámos, em grau proporcional ao declínio da família pluricelular, o acompanhamento na saúde dos nossos mais velhos, lançando-os para fora dos hospitais, sem termos construído a passadeira móvel que os reconduziria à família e à comunidade. E, finalmente, preocupámo-nos mais com os edifícios que com a formação de médicos e enfermeiros de família, mais com a emblemática urgência nocturna que com a qualidade e densidade tecnológicas do seu acolhimento; mais com a extensão da malha até ao paradoxo da periferia sem almas, do que com as condições decentes nas almas periurbanas. Ingurgitámos centros de saúde com procura de variado grau de necessidade e urgência, convivemos com a escassez de oferta em médicos de família; negligentemente tolerámos a substituição do trabalho com doentes e famílias pela ocupação, à hora, a ver doentes desconhecidos, ou até, em casos extremos, mas infelizmente frequentes, ao assalariamento clínico desqualificado, dispendioso e desmotivador.
Tanta generosidade de intenções, assumida e partilhada por tantos políticos e dirigentes, para tão controversos resultados! Tanta discussão estéril, de argumentos contraditórios, para uma realidade tão visível e impositiva! Tantos recursos consumidos para tão pequena glória!
Estamos porventura no acúmen da tendência, no limiar da nossa insatisfação colectiva. Sentimos não poder, mais tempo, continuar na irracionalidade presente. Sentimo-lo por razões, antes de mais, de inteligência, depois por imposição social, por solidariedade, se quiserem. Finalmente, sentimos dificuldade crescente em abusar por mais tempo da tolerância do cidadão eleitor e contribuinte que nos impõe que façamos mais e sobretudo melhor, com o já muito que nos dá!
Estando a cumprir um ano de governo, podemos hoje definir bem as nossas cinco prioridades:
1. Uma rede de cuidados de saúde continuados a idosos e dependentes para cobrir a mais grave lacuna na saúde dos portugueses. Ouviremos falar dela, em pormenor, dentro de alguns dias;
2. A transformação de centros de saúde de modelo esforçado mas esgotado, em unidades de saúde familiares de geometria, estrutura e titularidades variáveis, ajustadas ao espaço, ao tempo, às necessidades e aos meios;
3. A sustentabilidade financeira do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Com o bom desempenho orçamental no 2º semestre de 2005 e o orçamento realista e possível para 2006, recuperámos credibilidade para o SNS. Esforço que pode ser inglório, se à disciplina suceder o desfalecimento ou o relaxamento;
4. A modernização do equipamento social e da sua gestão: a passagem de hospitais SA a EPE, a criação de novas EPE, de entre elas dois grandes hospitais de ensino, a criação de centros hospitalares para ganhar escala ou recuperar o vigor e a estima perdidos na fragmentação anterior de que os Hospitais Civis de Lisboa são exemplo; a prática da contratualização em tempo útil, o controlo da despesa controlável, sobretudo nas terapêuticas, a modernização da gestão intermédia e, finalmente e não menos importante, o recurso generalizado aos sistemas de informação automatizados;
5. Por fim, a melhoria do acesso do cidadão ao bem mais dispendioso do sistema, o medicamento: procurando forçar a acessibilidade nos Medicamentos Não Sujeitos a Receita Médica (MNSRM); provocando reduções unilaterais de preços para o público, criando tectos de despesa em ambulatório e nos hospitais, e continuando o apoio aos medicamentos genéricos.
Mas é de Cuidados de Saúde Familiares que me incumbe falar nesta congregação. De uma aposta nova, que quase todos vós sufragais, com entusiasmo obreirista por alguns, com natural reserva pela maioria e por uma esperada hostilidade pelos poucos que se consideram satisfeitos e realizados no sistema actual.
As Unidades de Saúde Familiar (USF) não foram uma invenção do Governo, muito menos minha, são um produto das vossas inteligência, experiência e não-resignação. Partiu de muitos de vós o conceito, o desenho, a flexibilidade do modelo, a fórmula de implantação e até a antevisão de obstáculos. Não há milagres, a explicação reside nos erros passados. A saída do bloqueio consistiu no seu reconhecimento e no aproveitamento da janela de oportunidade. De uma situação desnivelada entre governantes e governados, encontramo-nos agora numa situação de pré-cumplicidade. Porventura, nunca total. Nem a desejamos, pois o progresso nasce da antítese. Apenas nos basta um segmento de caminho comum, o suficiente para galgarmos um outro patamar qualitativo, onde as nossas discussões deixem de ser sobre produtividade, reclamações, horas extra e SAP’s desnecessários e desqualificados, para passarem a ser sobre o nível de qualidade clínica alcançada, a qualidade da inserção familiar, o entrosamento com a comunidade, a satisfação descomprometida do cidadão e a sensação de dever cumprido e de auto-estima de todos os que o atendem.
Aguardei, com alguma ansiedade, o desfecho do fim do período prévio à apresentação de candidaturas. Não escondo que me invadia o receio de virmos a ter poucas mais que as actuais RRE (Regime Remuneratório Experimental). Pois bem, não só os números hoje conhecidos já ultrapassam as expectativas, como não foi necessário estimular ou acolher apenas a reconversão das RRE em USF. O movimento de renovação surge desde a base, com propostas diversificadas e até inovadoras.
O que nos aumenta o nível de responsabilidade. Mas também nos estimula a gerar inovação organizativa. Entendamo-nos: o Governo sente a obrigação de resposta à vossa adesão com um quadro estável de condições de trabalho.
Tal só virá a ocorrer com a legislação em preparação, mas alguns pontos podem já ser adiantados:
a) Seguindo a orientação de dar prioridade ao cidadão, estimularemos a constituição de USF em locais de maior número de utentes sem médico de família. Sem prejudicar, é claro, as candidaturas a apresentar. O dever público impõe-nos, como primeira tarefa, cuidar dos que não têm sequer médico. Essas novas USF, a criar por concurso especial, serão acessíveis a espontâneas equipas de clínicos gerais, enfermeiros e apoios administrativos, a cooperativas de prestadores, a instituições particulares de solidariedade social e a operadores privados concessionados, nos termos da lei de bases do SNS e do programa do Governo.
b) O Governo não abdica da eventual criação de USF em Unidades Locais de Saúde nem da articulação de USF a hospitais de gestão concessionada, sempre que o contexto o aconselhe, como alternativa à modalidade de agrupamentos de centros de saúde. Todavia, assegurará que cada uma delas presida uma ideia integradora, concorrencial e não hegemónica nem hospitalocêntrica.
c) As novas instalações de centros e extensões de saúde a aprovar a partir de agora incluirão obrigatoriamente USF candidatas nos termos do concurso aberto. Não é aceitável desperdiçar uma oportunidade de modernização de infraestruturas não a associando ao novo modelo organizativo.
d) O conceito de cuidados de saúde primários deve ser considerado independente do atendimento de urgência, deixando de conter o atributo de permanência que obriga a serviços de porta aberta sem condições qualificadas, em situações de procura de expressão irrisória. Os Cuidados de Saúde Primários, por definição, devem estar disponíveis e acessíveis até, digamos, às 20 ou 22 horas, limite máximo aceitável para uma organização que não rompa a ligação do doente ao seu médico. Depois dessa hora, os cuidados dificilmente se podem considerar familiares, a não ser através de breve contacto telefónico, quando e se pertinente, para passarem a ser vistos como situações de urgência ou emergência e como tal devidamente tratados em localização concentrada e adequada.
e) A reconversão dos actuais SAP nocturnos é independente da presente reforma. Todavia, aquela pode ser facilitada, entre outros meios, pela criação de USF no mesmo local. Uma parte dos recursos financeiros hoje dispendidos com o SAP nocturno auxiliará o universo compensatório da correspondente USF que o evite.
f) As unidades de saúde familiares, à medida que o seu sistema de informação o permitir, contratualizarão com as ARS (Administrações Regionais de Saúde)os ganhos de eficiência estimados em redução de consumo desnecessário de medicamentos e MCDT (Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica). Sempre que essa redução se comprove no âmbito da população coberta pela USF, para a Unidade reverterá uma fracção da poupança financeira realizada.
g) Os ganhos de eficiência serão baseados no programa que cada USF negociar com a Agência de Contratualização da sua ARS e serão utilizados na alimentação dos encargos adicionais com o novo regime retributivo, mas também em equipamentos clínicos e de informação e ainda na cobertura de encargos de deslocação a congressos e de aquisição de documentação para actualização permanente, dispensando os médicos e enfermeiros do apoio, nunca desinteressado, da indústria de medicamentos ou de material de consumo clínico.
h) O Governo compromete-se a criar, em tempo condizente com o calendário de lançamento das USF, as condições legais de mobilidade e vinculação dos aderentes.
i) Igualmente se compromete a facultar a cada USF aprovada, condições para a modernização de instalações, equipamentos, material clínico, sistemas de informação e respectivo apoio, necessários ao desempenho das vossa tarefas, cabendo a cada ARS, com a colaboração dos Serviços Centrais competentes, o planeamento e a programação das acções conducentes à disponibilização destes recursos.
j) O Governo compromete-se a legislar, até ao final do ano, para o cumprimento das lacunas de cobertura social e de saúde que estejam a ocorrer ou venham a decorrer da fase de transição do estatuto anterior para o novo estatuto que vier a ser aprovado para reger as USF.
l) Finalmente, estamos abertos a negociações porfiadas com os vossos representantes acerca do modelo retributivo, que desejamos generoso e incentivador, mas que sabemos balizado entre a cobertura das reais necessidades da população e os meios financeiros que o Governo, no seu conjunto, considere adequados e possíveis.
Em troca deste compromisso não vos pedimos adesão cega, mas sim cooperação critica. Estamos ainda no início da caminhada e alguns perder-se-ão pelo caminho, ainda que nos possam reencontrar mais tarde. Outros agrupar-se-ão numa segunda vaga, depois de se certificarem das vantagens da mudança.
O caminho a trilhar, que hoje se antevê ainda brumoso, conta com bússola e apoio de rectaguarda. E também com a capacidade critica e a flexibilidade de ir alterando o que porventura esteja impreciso ou incompleto.
Faltam-nos uma ou duas gerações de médicos de família após a vossa geração inicial. Só agora estamos a criar condições para a renovação de gerações, mas todos sabemos que nos esperam anos difíceis, com grave erosão demográfica de médicos, com alguns anos de duração. Também é essencial integrar rapidamente os jovens especialistas, a cada fornada, ultrapassando obstáculos formais incompreensíveis. Não está excluído que tenhamos que recorrer a profissionais estrangeiros, convidados, se possível da Europa alargada, como tem vindo a fazer, com sucesso, o Reino Unido, a Espanha e também Portugal, em escala limitada. Pelo que conhecemos, estamos seguros que a vossa disponibilidade para o acolhimento e integração desses colegas será total. O recente sucesso da operação de integração de médicos estrangeiros, conduzida pela Fundação Calouste Gulbenkian, dá-nos a garantia de que essa transfusão cultural se poderá fazer sem incidentes.
Desejo-vos, a todos, muito bom trabalho. Nós também iremos esta tarde trabalhar aqui, a nível nacional, com todas as administrações regionais, as sub-regiões e os serviços centrais envolvidos. Aproveitamos a logística para, com economia, prepararmos os passos seguintes, respondendo à espontaneidade e generosidade social daqueles que já aderiram ou se encontram em processo de candidatura.
Intervenção do Ministro da Saúde, abertura do 23.º Encontro Nacional de Clínica Geral, em Vilamoura