terça-feira, março 21, 2006

A Desumanização da Medicina

Felizmente que o Ministro da Saúde tem tido a sabedoria de não tomar os médicos como o inimigo principal e de ter virado as baterias para outras zonas bem mais perigosas. Felizmente também que os médicos não embarcaram em lutas corporativas

Quanto mais se avança na compreensão da psicossomática como entendimento do funcionamento do corpo humano e das suas patologias, mais se avança também na robotização da Medicina e na mecanização de diagnósticos, terapêuticas e estruturas institucionais. De tal modo que aquilo que poderia ser um progresso pela aplicação da técnica pode transformar-se num retrocesso de consequências irreparáveis.
Hoje sabe-se que os conceitos de psíquico e somático são apenas categorias académicas para facilitar a linguagem, quando temos dificuldade em expressar o pensamento complexo que corresponde à mais complexa das realidades - as nossas concepções sobre o nosso próprio pensar/sentir, sobre algo que é tanto corpo como mente, sem que haja dualidade porque são um todo. E se algum cientista filósofo explicou isso em termos concretos foi António Damásio. Mas não só: há outros portugueses que têm desenvolvido esta temática.

A relação médico-doente
Isso leva-nos a pensar que as chamadas doenças do corpo nunca o são apenas da cabeça para baixo. As mensagens que a todo o momento circulam dentro do corpo humano - neuronais, hormonais, imunitárias - formam uma rede de comunicação complexa que faz que o sintoma não esteja apenas lá, onde dói ou funciona mal, mas também num todo, que não é visível, mas que existe.
Por este motivo, a relação médico-doente é tão importante. Ao colher a história clínica, ao ouvir as queixas, o médico não está só a inventariar dados para o diagnóstico. Está a ouvir ... E ter alguém que o oiça talvez seja a primeira terapêutica para o doente, independentemente do alívio físico do sintoma. Por isso há investigadores que chamam a isto o "médico terapêutica". Por esse caminho se terá que compreender o chamado "efeito placebo". O efeito placebo não corresponde só à evolução que a doença teria expontaneamente se o doente não tomasse nada; tomando placebo o doente melhora de facto. É necessário é que pense que está a tomar um remédio...Mesmer curava mesmo muitos doentes apesar de Benjamim Franklin ter demonstrado em 1785, que não havia fluido nenhum, nem magnetismo animal nenhum. De facto não havia, o fluido era outro.
Ora é este efeito terapêutico, este fluido, esta melhoria pelo contacto interpessoal que se passa com o médico e os outros profissionais de saúde, que está em vias de extinção rápida.
É óptimo que tenhamos técnicas de laboratório e de imagem, que galoparam nos últimos 20 anos e que nos dão certezas onde as não tínhamos. São óptimos os avanços na cirurgia. E há boas moléculas para tratar as doenças mais correntes, embora aí a caminhada seja mais lenta do que parece. É bom que haja critérios de diagnóstico, protocolos, orientações terapêuticas pré-estabelecidas. Mas... não chega. Estes avanços coincidem e não por acaso, com grande elevação dos custos na Saúde. Os custos da Saúde acabam todos nas farmácias, na indústria e nos bancos. Os grandes e bons aparelhos dos avanços técnicos são "arrendados" aos bancos e aos seus créditos e é lá que acaba a cadeia de custos. Por isso a inovação (novo aparelho, novo crédito) é sem dúvida útil, mas é fatal... Convenhamos, no entanto, que sempre é melhor inventar novos aparelhos de imagem ou de estudo da dinâmica cardíaca do que tanques ou aviões de combate. A este panorama vai acrescentar-se também o economicismo na saúde. E como em todas as empresas, tende-se a cortar no pessoal e a produzir mais ou seja, ver mais doentes. A tendência é para a parafrenália técnica ir dominando e o doente é "visto" o mais rapidamente possível.
Veio dos EUA a moda de contabilizar oficialmente o tempo máximo (15 minutos, 18 minutos) e estendeu-se à Europa. Paradoxalmente, a burocracia, seja ela no papel, seja no computador, aumentou, porque é necessário saber quem deve a quem dentro do Estado. O doente não pode ser dispensado porque afinal é o objecto de toda esta cadeia de montagem, mas convenhamos que tem que ser reduzido a abrir pouco a boca. A existir, mas calado e sem ouvir explicações.

Os seres humanos e as máquinas
Felizmente que o Ministro da Saúde tem tido a sabedoria de não tomar os médicos como o inimigo principal e de ter virado as baterias para outras zonas bem mais perigosas. Felizmente também que os médicos não embarcaram em lutas corporativas, embora alguns comentadores gostem sempre de os meter no pacote. Felizmente ainda que a nova administração do hospital onde trabalho, o Hospital de Santa Maria, tenha atacado alguns problemas importantes. Já não estamos confrontados com as sessões de "aprendizagem"a que fomos submetidos nos anos anteriores em que nos ensinavam "gestão" comparando-nos com instituições bancárias e mostrando-nos acetatos em que o hospital era representado por uma fábrica com chaminé a deitar fumo.
No entanto... o perigo está aí. O risco de se acabar com as carreiras médicas, que foram a grande valorização da medicina portuguesa (aqui diagnostica-se e trata-se como "lá fora"), o risco de se acabar com o Serviço Nacional de Saúde (é antipático e tem má cara, mas existe). O risco da invasão pela apoteose de máquinas, informática, siglas de decifração obscura e sobretudo correr, correr e fazer do doente um objecto que só empata, está aí.
Ora o ser humano só pode sobreviver em colectivo e em interacção pessoal. Na doença, esta interacção é imprescindível. O espaço de comunicação e de confiança é "meia-cura". Xamanes, bruxos, Mesmer, cientistas médicos, foram sempre para além do remédio.
Acredito que na hora da dôr todos necessitam desse espaço de relação, sejam eles modernos, pós-modernos ou arcaicos. Mas sei que este espaço humano está seriamente em risco. Pretendo com isto lançar um alerta. Médica, Professora da Faculdade de Medicina de Lisboa
Isabel do Carmo, JPúblico 20.03.06