Entrevista CC - NM 24.07.05
JN: Numa escala de zero a dez que classificação atribui aos serviços públicos de saúde ?
CC: Um seis, sim ... à vontade. Entre seis e sete.
JN: Um suficiente, pouco mais que medíocre ?
CC: Não, corresponde a um suficiente a raiar o bom ! Temos profissionais muito competentes, com boa qualidade e preparação técnica, mas continuamos a ter uma má organização. Em termos globais, os serviços públicos de saúde não carecem de recursos humanos nem financeiros, mas continuam a gastar mal o dinheiro. E atenção, porque nós não precisamos de gastar menos, precisamos de gastar melhor. Sei que estou a ser optimista porque nas sondagens internacionais, que comparam os sistemas de saúde e que são efectuadas pela EU, Portugal aparece sempre num dos lugares mais desfavoráveis da tabela, com resultados muito mais negativos e que, no meu entender, não correspondem à realidade.
JN: Conhece o sector e a administração pública como poucos e é ministro da saúde pela segunda vez.
Há meses, quando tomou posse, se uma fada madrinha lhe tivesse oferecido uma varinha mágica com poderes para realizar no imediato três desejos tinha-a a usado para mudar o quê ?
CC: Essa é uma situação ficcional que vou direccionar para a realidade, sem passes de magia. O desejo mais importante de um ministro da saúde é ter uma dotação orçamental que lhe permita exigir uma gestão responsável dos serviços. Quando a dotação é muito inferior às despesas reais, nenhum gestor a leva a sério e não se preocupa em cumprir as metas porque, independentemente do desempenho, sabe que ficará sempre aquém devido à falta de recursos. Isto significa que quem precisar de 12 e receber 9 não se importa de gastar 13 ou 14. Mas se receber 11,5 já faz um esforço para alcançar os resultados. E este desejo – ter um orçamento aceitável para uma gestão responsável – poderá vir a ser objectivado já no final deste ano, se as contas da saúde registarem apenas uma ligeira derrapagem, como espero que aconteça depois de ter visto aprovado o orçamento rectificativo.
JN: E os outros dois desejos ?
CC: O segundo objectivo a conseguir que cada português tenha um médico de família e o terceiro que as famílias dos idosos e dependentes tenham serviços de saúde aos quais possam recorrer para tratar ou internar os seus doentes.
JN: Sem pós mágicos, como pensa envolver os diferentes intervenientes nesta cruzada sabendo que o dinheiro é pouco e que é urgente geri-lo com responsabilidade ?
CC: O primeiro trabalho é convencer os gestores de que a sua liberdade de intervenção é proporcional à responsabilização. Quanto às chefias intermédias, fundamentais em todo o processo, são sobretudo médicas (coadjuvadas por recursos de enfermagem bem estruturados e, nalguns casos, já apoiadas por administradores hospitalares) e estou optimista.
Passei os últimos três anos a ensinar médicos, nomeadamente directores clínicos e de serviço, e devo dizer que a experiência foi muito reconfortante. Os médicos que foram meus alunos estão muito bem preparados e posso garantir que têm condições para desempenhar com competência responsabilidades de administração.
JN: Os portugueses não põem em causa a capacidade de gestão dos médicos, até porque sabem da eficácia com que os mesmos gerem as suas clínicas privadas.
CC: Mas algumas são geridas por gestores profissionais. É óbvio que nem todos os médicos têm capacidade para gerir, do mesmo modo que nem todos os administradores são bons gestores. É preciso ter capacidade para liderar, inovar. Assumir riscos e gerir conflitos.
JN: Adepto da descentralização e da responsabilização, diga-nos se os gestores hospitalares vão passar a ser efectivamente responsabilizados pelos seus actos ?
CC: Todos os gestores que foram nomeados trouxeram, no acto da posse, uma carta de missão. É um documento de enorme importância pois foi redigido pelos próprios e revisto por quem os nomeou, embora seja provisório e revisto noventa dias depois.
JN: De onde nasceram essas cartas de missão ?
CC: Da legislação publicada pelo Governo a que pertenço e que determinou que todos os dirigentes da Administração Pública fossem nomeados mediante uma carta de missão onde cada um promete o que vai cumprir, de acordo com objectivos a alcançar em metas que estão quantificadas. Este é um desafio enorme num país onde não há uma cultura de responsabilização, onde não é fácil identificar objectivos e muito menos quantificá-los ou identificar metas.
JN: Responsabilização já não é uma palavra maldita ?
CC: O meu antecessor neste Governo (Luís Filipe Pereira) deu um contributo muito positivo para a criação de uma cultura de responsabilidade e de gestão que é visível, por exemplo, nos Hospitais SA. Aqueles podem ter muitos defeitos e ser pouco transparentes, mas a verdade é que encontrei um ministério com uma cultura diferente. Já disse publicamente quais os problemas resultantes da gestão anterior, nomeadamente a falta de transparência, a maquilhagem da informação e a nomeação de dirigentes por critérios de partidarização e amizade. Mas estou determinado a manter o que encontrei de bom. Mesmo nos hospitais SA mantive em funções uma boa parte dos gestores, com todos os problemas que isso me traz. Só mudei pessoas onde sabia que podia melhorar.
JN: Já há alguns anos a Revista Magazine fez uma reportagem sobre a sinistralidade automóvel e constatámos que a maioria dos hospitais públicos que recebiam politraumatizados não cobravam às seguradoras as despesas dos internamentos, tratamentos e outros meios de diagnóstico e que os processos acabavam por prescrever. Esta situação já foi ultrapassada ?
CC: Se não foi totalmente, pelo menos foi melhorada em virtude das novas exigências de gestão. Hoje, num hospital, é fundamental saber qual a diferença entre a facturação emitida a terceiros responsáveis, por exemplo as seguradoras, e a facturação efectivamente cobrada. E há uma grande insistência junto dos serviços para que sejam lestos na facturação e na cobrança. Trata-se de dinheiro precioso – além de ser injusto que os portugueses transfiram as responsabilidades de potenciais acidentados de trânsito para uma companhia de seguros e que seja, depois, o Estado a custear os tratamentos – os gestores sabem isso e têm a responsabilidade de o reaver. Também na cobrança das taxas moderadoras constatámos um descontrolo no registo dessas receitas, que, nalguns casos nem sequer eram contabilizadas. Não sei se neste tipo de casos se detectaram situações de fraude, mas existiu pelo menos muita incúria.
JN: É errado pensar que, enquanto o Estado continuar a dever milhões de euros à Indústria farmacêutica, continua refém da mesma ?
CC: Está enganada. O Estado praticamente não tem dívidas nesse sector. Primeiro urge distinguir os pagamentos às Farmácias do pagamento das dívidas de fornecimento hospitalar, sendo que a maioria delas foi paga por via da aprovação do orçamento rectificativo do ano passado. Os pagamentos em atraso vão ser feitos brevemente pois o orçamento rectificativo da Saúde permitiu dotar os hospitais do dinheiro necessário por a dotação inicialmente prevista ser insuficiente. E é óbvio que gostaríamos de pagar a trinta dias, ainda não conseguimos, mas a indústria sabe que até ao fim do ano as contas estarão acertadas.
JN: E quanto à Associação Nacional de Farmácias ?
CC: Sempre tive um bom relacionamento com a ANF, embora agora esteja um pouco beliscado pois percebi que havia uma campanha personalizada contra mim, sem que eu mereça tanto. Mas voltando à Indústria, o problema fundamental é que as vendas que fazem aos hospitais estão a crescer entre 18 e 20% ao ano.
Enquanto há 15anos a factura farmacêutica hospitalar representava oito por cento, neste momento ascende a vinte. Sei que os fármacos de dispensa hospitalar, nomeadamente para o VIH e Oncologia, aumentaram imenso a factura, mas temos de introduzir protocolos de utilização de medicamentos. Não podemos continuar a ser tão liberais ao ponto de aceitar pagar todos os fármacos usados em meio hospitalar quando os ensaios clínicos chegam ao fim. Se isto continuar a acontecer quem fica refém da Indústria são os doentes e nós não podemos permitir tal coisa.
JN: Mas os Ensaios Clínicos obedecem a protocolos rígidos e que eu saiba, não implicam a aquisição posterior dos medicamentos.
CC: Vamos mais devagar. Os Ensaios Clínicos têm muito que se lhe diga e só agora é que temos uma Comissão Nacional que controlará e aprovará os ensaios a decorrer em meio hospitalar. A constituição desta comissão visa pôr alguma ordem nesse sector e encontrar mecanismos para que Portugal possa participar em estudos multicêntricos que podem prestigiar e deixar dinheiro no país.
A inovação terapêutica passa naturalmente pelos hospitais, mas nós não podemos engolir tudo o que aparece de novo. Oncologia, Cardiovascular e VIH/Sida são três áreas onde a racionalidade da terapêutica é fundamental. Porque é que Portugal tem de ser muito mais liberal na aceitação de um novo medicamento hospitalar do que Inglaterra ?
JN: Os médicos que trabalham para o sector público continuam a ganhar mal e a trabalhar muito ?
CC: Têm de facto um ordenado baixo, mas a este acresce o pagamento das urgências e das horas extraordinárias, pelo que julgo que não ganham nada mal. Nós não queremos que ganhem menos, queremos sim dar-lhes uma maior e melhor retribuição que será proporcional ao seu desempenho. O sistema actual, baseado no tempo de trabalho e não no trabalho efectivamente realizado, cria injustiças a que quero pôr cobro. E compete aos Directores Clínicos fazer a avaliação do binómio desempenho/ retribuição. O modelo que estamos a conceber – que já está a funcionar nalguns hospitais- baseia-se na monitorização da informação, o que permitirá saber quem fez o quê e quando a cada paciente que entrou na urgência. Este mecanismo, utilizado em muitos hospitais estrangeiros, vai permitir-nos reorganizar os serviços de urgência e retribuir melhor o trabalho que os médicos prestam nos hospitais.
JN: Percebe a dificuldade que muitos portugueses têm em entender porque há tão longas listas de espera para as Consultas e as Cirurgias nos hospitais públicos enquanto as mesmas podem ser realizadas de uma semana para a outra numa qualquer clínica privada ?
CC: Claro que percebo, mas não é exactamente assim. Se analisarmos os sistemas de Saúde de alguns países europeus, naqueles onde vigora um modelo de SNS e onde o ordenado médico provém de um salário – como Portugal, Inglaterra, Itália, Espanha – encontramos longas e burocráticas listas de espera. Já os que têm um modelo convencionado que se baseia no pagamento de cada acto – por exemplo, Alemanha, Suíça, Bélgica e França -, não têm listas de espera porque há um incentivo à multiplicação dos actos. Isto é uma constatação internacional. Essa associação não existia no sector público mas foi, desde há dez anos, criado o sistema de incentivos especiais para reduzir as listas de espera. Não contesto o método, que tem muitos defeitos - facilita a política de vasos comunicantes em que os médicos dizem de si mesmos “faço menos no meu horário de trabalho para poder fazer mais no horário extraordinário” – mas também tem muitas qualidades – aumentou muito o número de cirurgias não urgentes realizadas. E a auditoria recentemente feita pelo Tribunal de Contas às Listas de Espera identificou em 18 hospitais uma redução das cirurgias regulares e um aumento das cirurgias electivas. Isto é que é o aspecto negativo, porém, 18 em 90 é um número que me preocupa mas não me assusta. Vamos manter o sistema, mas remodelado. O Sistema Integrado de Gestão para Inscritos em Cirurgia (SIGIC) permite ao paciente obter um “cheque” que lhe permite fazer a cirurgia de que necessita no sector privado se o Público não lhe der resposta em tempo útil.
JN: Há quem diga que o mau funcionamento dos hospitais públicos e as longas listas de espera para cirurgia se destinam precisamente a permitir que os doentes sejam encaminhados para os privados. Será mesmo assim ?
CC: Primeiro, os hospitais públicos estão a funcionar cada vez melhor. Basta olharmos para os números da produção hospitalar, da mortalidade, da capacidade de concentrar nos hospitais todos os pacientes da sua área de atracção sem ter de os enviar para outros hospitais. E aqui divirjo do meu antecessor que considerava terem ocorrido saltos espectaculares nos hospitais SA. Não houve. Talvez tenham um pouco mais de produção, mas também aconteceu nos outros, mesmo sem avaliação in vitro.
JN: A informação e a lei da procura e da oferta também se aplicam aqui ?
CC: Claro que sim. À medida que a população sabe que pode operar a sua catarata, que a artrose da anca se resolve com uma prótese, que as varizes podem ser operadas, inscreve-se e são cada vez mais os portugueses que querem fazer essas cirurgias electivas. O iceberg da procura da saúde vai emergindo e reflecte-se no aumento das listas de espera. Há três anos, quando saí do Ministério, eram 18 as patologias onde havia lista de espera. Hoje temos 64. Mas, enquanto ministro, o que mais me importa é que o tempo de espera seja proporcional à gravidade da situação de cada paciente, que varia dentro das mesmas patologias.
JN: Uma das primeiras medidas anunciadas por este Governo foi a venda de Medicamentos que não careçam de prescrição médica em super e hipermercados. O desagrado da ANF perante a medida não o surpreendeu, pois não ?
CC: O que me surpreendeu foi a rápida mudança de posições dos seus dirigentes. Começaram na agressividade, manifestaram depois enorme desagrado e agora declaram a adesão. Este percurso é que ainda não percebi. Aquela decisão, a forma e as circunstâncias como foi anunciada constituiu um sinal simbólico para deixar claro que o Governo que estava a ser empossado iria resistir aos mais poderosos lobis.
JN: Estarão os portugueses suficientemente informados para se automedicarem ? Embora já tenha lido estudos que apontam os portugueses como um dos povos da EU que mais se automedicam na farmácia, o que se sabe desta realidade ?
CC: Na farmácia do meu bairro, e antes de ser conhecido, sempre constatei o enorme rigor da senhora farmacêutica quanto à automedicação e penso que não é excepção. Admito que possa haver uma certa complacência por parte dos farmacêuticos que facultam os medicamentos porque os doentes precisam deles naquele momento, permitindo-lhes que tragam depois a prescrição. Não vejo nisto nada de mal, significa que as farmácias (e quem lá trabalha) estão inseridas na comunidade, que conhecem as pessoas e as suas dificuldades.
JN: Os anticoncepcionais vão ser vendidos nos supermercados ?
CC: Ainda não sei. Portugal tem apenas 67 medicamentos que não carecem de receita médica para serem adquiridos. A Bélgica tem 108, a Suíça 103, o Reino Unido cerca de 100. Portanto, Portugal está um pouco abaixo da média da EU, ou seja, somos conservadores. Os anticoncepcionais anovulatórios orais são de facto vendidos em muitos países sem receita médica. E não vejo razão para que assim não seja em Portugal.
JN: Mas em Portugal, e nas farmácias, também são vendidos sem prescrição médica independentemente do que refere a embalagem ...
CC: Isso não sei e, embora admita que nem todas as pílulas sejam iguais, penso que a Comissão Técnica deve estar, neste momento, a estudar esse dossier com toda a atenção. Até na chamada pílula do dia seguinte, ainda não sei porque é que umas exigem prescrição médica e outras não.
JN: E quanto à população ? Numa altura em que se fala cada vez mais da chamada medicina preventiva, como pensa responsabilizar cada português pela sua saúde ?
CC: Ainda hoje de manhã eu e a minha mulher nos interrogávamos se não seria útil, por exemplo, retomar as velhas mas sempre actuais campanhas do professor Fernando Pádua sobre os riscos do consumo do sal. Não posso ainda anunciar nada, mas tenho uma proposta do professor para avançar com uma campanha televisiva, a passar em momentos de grande audiência. Sal, tabaco, álcool e gorduras constituem o nosso grande problema.
JN: Sente-se chocado por saber que as mulheres portuguesas podem continuar a sentar-se no banco dos réus por terem interrompido voluntariamente uma gravidez ?
CC: Claro que me sinto chocado e a minha posição sobre o assunto é sobejamente conhecida. Enquanto ministro da Saúde a minha obrigação é fazer aplicar a lei aprovada em 1984 e dar cumprimento a uma resolução da República de 2004 que ordena ao governo que contrate com o sector privado, caso os hospitais não reunam as condições para realizar o aborto nos casos em que ele é consentido. É isso que vamos fazer e estamos a preparar legislação.
JN: Independentemente da a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher vir a ser despenalizada ?
CC: Sim, esse é outro processo acerca do qual todos conhecem a minha posição. Agora, quero mesmo fazer cumprir a lei actual e preciso de saber quantos são os médicos objectores de consciência em cada um dos hospitais para saber quais os recursos de que disponho e os que preciso de contratar.
JN: Os subsistemas de saúde são uma realidade e quem deles beneficia não quer perder os privilégios de que goza no acesso e na comparticipação. Não terão razão para se sentir discriminados os restantes portugueses ?
CC: É evidente que não faz sentido que os funcionários públicos tenham diferentes subsistemas de saúde e a tendência será a uniformização de benefícios baseada no esquema da ADSE, que faz parte do sistema de benefícios da Administração Pública. Se aquela estivesse sob a minha tutela era provável que a gerisse como se de uma seguradora se tratasse – punha-a em concurso público internacional para evitar o desperdício e a fraude no controlo de dezenas de milhares de prestadores. Mas no que à equidade respeita já demos um passo de gigante com a harmonização das idades de reforma.
JN: Não o choca o facto de qualquer português que tenha efectuado um seguro complementar de saúde poder ver a sua apólice anulada porque a dada altura adoeceu e passou a dar “prejuízo” à seguradora ?
CC: É evidente que sim, mas temos de pensar que os segurados sabem o que adquirem e que a lógica dos seguros complementares é lucrativa e não de beneficência.
JN: Quando terminar o seu mandato de ministro vai, finalmente, aposentar-se com uma reforma dourada ?
CC: A minha única reforma será a de professor universitário e tenciono voltar à universidade depois de concluir este mandato.
Entrevista ao Notícias Magazine, 24 Julho 2005
CC: Um seis, sim ... à vontade. Entre seis e sete.
JN: Um suficiente, pouco mais que medíocre ?
CC: Não, corresponde a um suficiente a raiar o bom ! Temos profissionais muito competentes, com boa qualidade e preparação técnica, mas continuamos a ter uma má organização. Em termos globais, os serviços públicos de saúde não carecem de recursos humanos nem financeiros, mas continuam a gastar mal o dinheiro. E atenção, porque nós não precisamos de gastar menos, precisamos de gastar melhor. Sei que estou a ser optimista porque nas sondagens internacionais, que comparam os sistemas de saúde e que são efectuadas pela EU, Portugal aparece sempre num dos lugares mais desfavoráveis da tabela, com resultados muito mais negativos e que, no meu entender, não correspondem à realidade.
JN: Conhece o sector e a administração pública como poucos e é ministro da saúde pela segunda vez.
Há meses, quando tomou posse, se uma fada madrinha lhe tivesse oferecido uma varinha mágica com poderes para realizar no imediato três desejos tinha-a a usado para mudar o quê ?
CC: Essa é uma situação ficcional que vou direccionar para a realidade, sem passes de magia. O desejo mais importante de um ministro da saúde é ter uma dotação orçamental que lhe permita exigir uma gestão responsável dos serviços. Quando a dotação é muito inferior às despesas reais, nenhum gestor a leva a sério e não se preocupa em cumprir as metas porque, independentemente do desempenho, sabe que ficará sempre aquém devido à falta de recursos. Isto significa que quem precisar de 12 e receber 9 não se importa de gastar 13 ou 14. Mas se receber 11,5 já faz um esforço para alcançar os resultados. E este desejo – ter um orçamento aceitável para uma gestão responsável – poderá vir a ser objectivado já no final deste ano, se as contas da saúde registarem apenas uma ligeira derrapagem, como espero que aconteça depois de ter visto aprovado o orçamento rectificativo.
JN: E os outros dois desejos ?
CC: O segundo objectivo a conseguir que cada português tenha um médico de família e o terceiro que as famílias dos idosos e dependentes tenham serviços de saúde aos quais possam recorrer para tratar ou internar os seus doentes.
JN: Sem pós mágicos, como pensa envolver os diferentes intervenientes nesta cruzada sabendo que o dinheiro é pouco e que é urgente geri-lo com responsabilidade ?
CC: O primeiro trabalho é convencer os gestores de que a sua liberdade de intervenção é proporcional à responsabilização. Quanto às chefias intermédias, fundamentais em todo o processo, são sobretudo médicas (coadjuvadas por recursos de enfermagem bem estruturados e, nalguns casos, já apoiadas por administradores hospitalares) e estou optimista.
Passei os últimos três anos a ensinar médicos, nomeadamente directores clínicos e de serviço, e devo dizer que a experiência foi muito reconfortante. Os médicos que foram meus alunos estão muito bem preparados e posso garantir que têm condições para desempenhar com competência responsabilidades de administração.
JN: Os portugueses não põem em causa a capacidade de gestão dos médicos, até porque sabem da eficácia com que os mesmos gerem as suas clínicas privadas.
CC: Mas algumas são geridas por gestores profissionais. É óbvio que nem todos os médicos têm capacidade para gerir, do mesmo modo que nem todos os administradores são bons gestores. É preciso ter capacidade para liderar, inovar. Assumir riscos e gerir conflitos.
JN: Adepto da descentralização e da responsabilização, diga-nos se os gestores hospitalares vão passar a ser efectivamente responsabilizados pelos seus actos ?
CC: Todos os gestores que foram nomeados trouxeram, no acto da posse, uma carta de missão. É um documento de enorme importância pois foi redigido pelos próprios e revisto por quem os nomeou, embora seja provisório e revisto noventa dias depois.
JN: De onde nasceram essas cartas de missão ?
CC: Da legislação publicada pelo Governo a que pertenço e que determinou que todos os dirigentes da Administração Pública fossem nomeados mediante uma carta de missão onde cada um promete o que vai cumprir, de acordo com objectivos a alcançar em metas que estão quantificadas. Este é um desafio enorme num país onde não há uma cultura de responsabilização, onde não é fácil identificar objectivos e muito menos quantificá-los ou identificar metas.
JN: Responsabilização já não é uma palavra maldita ?
CC: O meu antecessor neste Governo (Luís Filipe Pereira) deu um contributo muito positivo para a criação de uma cultura de responsabilidade e de gestão que é visível, por exemplo, nos Hospitais SA. Aqueles podem ter muitos defeitos e ser pouco transparentes, mas a verdade é que encontrei um ministério com uma cultura diferente. Já disse publicamente quais os problemas resultantes da gestão anterior, nomeadamente a falta de transparência, a maquilhagem da informação e a nomeação de dirigentes por critérios de partidarização e amizade. Mas estou determinado a manter o que encontrei de bom. Mesmo nos hospitais SA mantive em funções uma boa parte dos gestores, com todos os problemas que isso me traz. Só mudei pessoas onde sabia que podia melhorar.
JN: Já há alguns anos a Revista Magazine fez uma reportagem sobre a sinistralidade automóvel e constatámos que a maioria dos hospitais públicos que recebiam politraumatizados não cobravam às seguradoras as despesas dos internamentos, tratamentos e outros meios de diagnóstico e que os processos acabavam por prescrever. Esta situação já foi ultrapassada ?
CC: Se não foi totalmente, pelo menos foi melhorada em virtude das novas exigências de gestão. Hoje, num hospital, é fundamental saber qual a diferença entre a facturação emitida a terceiros responsáveis, por exemplo as seguradoras, e a facturação efectivamente cobrada. E há uma grande insistência junto dos serviços para que sejam lestos na facturação e na cobrança. Trata-se de dinheiro precioso – além de ser injusto que os portugueses transfiram as responsabilidades de potenciais acidentados de trânsito para uma companhia de seguros e que seja, depois, o Estado a custear os tratamentos – os gestores sabem isso e têm a responsabilidade de o reaver. Também na cobrança das taxas moderadoras constatámos um descontrolo no registo dessas receitas, que, nalguns casos nem sequer eram contabilizadas. Não sei se neste tipo de casos se detectaram situações de fraude, mas existiu pelo menos muita incúria.
JN: É errado pensar que, enquanto o Estado continuar a dever milhões de euros à Indústria farmacêutica, continua refém da mesma ?
CC: Está enganada. O Estado praticamente não tem dívidas nesse sector. Primeiro urge distinguir os pagamentos às Farmácias do pagamento das dívidas de fornecimento hospitalar, sendo que a maioria delas foi paga por via da aprovação do orçamento rectificativo do ano passado. Os pagamentos em atraso vão ser feitos brevemente pois o orçamento rectificativo da Saúde permitiu dotar os hospitais do dinheiro necessário por a dotação inicialmente prevista ser insuficiente. E é óbvio que gostaríamos de pagar a trinta dias, ainda não conseguimos, mas a indústria sabe que até ao fim do ano as contas estarão acertadas.
JN: E quanto à Associação Nacional de Farmácias ?
CC: Sempre tive um bom relacionamento com a ANF, embora agora esteja um pouco beliscado pois percebi que havia uma campanha personalizada contra mim, sem que eu mereça tanto. Mas voltando à Indústria, o problema fundamental é que as vendas que fazem aos hospitais estão a crescer entre 18 e 20% ao ano.
Enquanto há 15anos a factura farmacêutica hospitalar representava oito por cento, neste momento ascende a vinte. Sei que os fármacos de dispensa hospitalar, nomeadamente para o VIH e Oncologia, aumentaram imenso a factura, mas temos de introduzir protocolos de utilização de medicamentos. Não podemos continuar a ser tão liberais ao ponto de aceitar pagar todos os fármacos usados em meio hospitalar quando os ensaios clínicos chegam ao fim. Se isto continuar a acontecer quem fica refém da Indústria são os doentes e nós não podemos permitir tal coisa.
JN: Mas os Ensaios Clínicos obedecem a protocolos rígidos e que eu saiba, não implicam a aquisição posterior dos medicamentos.
CC: Vamos mais devagar. Os Ensaios Clínicos têm muito que se lhe diga e só agora é que temos uma Comissão Nacional que controlará e aprovará os ensaios a decorrer em meio hospitalar. A constituição desta comissão visa pôr alguma ordem nesse sector e encontrar mecanismos para que Portugal possa participar em estudos multicêntricos que podem prestigiar e deixar dinheiro no país.
A inovação terapêutica passa naturalmente pelos hospitais, mas nós não podemos engolir tudo o que aparece de novo. Oncologia, Cardiovascular e VIH/Sida são três áreas onde a racionalidade da terapêutica é fundamental. Porque é que Portugal tem de ser muito mais liberal na aceitação de um novo medicamento hospitalar do que Inglaterra ?
JN: Os médicos que trabalham para o sector público continuam a ganhar mal e a trabalhar muito ?
CC: Têm de facto um ordenado baixo, mas a este acresce o pagamento das urgências e das horas extraordinárias, pelo que julgo que não ganham nada mal. Nós não queremos que ganhem menos, queremos sim dar-lhes uma maior e melhor retribuição que será proporcional ao seu desempenho. O sistema actual, baseado no tempo de trabalho e não no trabalho efectivamente realizado, cria injustiças a que quero pôr cobro. E compete aos Directores Clínicos fazer a avaliação do binómio desempenho/ retribuição. O modelo que estamos a conceber – que já está a funcionar nalguns hospitais- baseia-se na monitorização da informação, o que permitirá saber quem fez o quê e quando a cada paciente que entrou na urgência. Este mecanismo, utilizado em muitos hospitais estrangeiros, vai permitir-nos reorganizar os serviços de urgência e retribuir melhor o trabalho que os médicos prestam nos hospitais.
JN: Percebe a dificuldade que muitos portugueses têm em entender porque há tão longas listas de espera para as Consultas e as Cirurgias nos hospitais públicos enquanto as mesmas podem ser realizadas de uma semana para a outra numa qualquer clínica privada ?
CC: Claro que percebo, mas não é exactamente assim. Se analisarmos os sistemas de Saúde de alguns países europeus, naqueles onde vigora um modelo de SNS e onde o ordenado médico provém de um salário – como Portugal, Inglaterra, Itália, Espanha – encontramos longas e burocráticas listas de espera. Já os que têm um modelo convencionado que se baseia no pagamento de cada acto – por exemplo, Alemanha, Suíça, Bélgica e França -, não têm listas de espera porque há um incentivo à multiplicação dos actos. Isto é uma constatação internacional. Essa associação não existia no sector público mas foi, desde há dez anos, criado o sistema de incentivos especiais para reduzir as listas de espera. Não contesto o método, que tem muitos defeitos - facilita a política de vasos comunicantes em que os médicos dizem de si mesmos “faço menos no meu horário de trabalho para poder fazer mais no horário extraordinário” – mas também tem muitas qualidades – aumentou muito o número de cirurgias não urgentes realizadas. E a auditoria recentemente feita pelo Tribunal de Contas às Listas de Espera identificou em 18 hospitais uma redução das cirurgias regulares e um aumento das cirurgias electivas. Isto é que é o aspecto negativo, porém, 18 em 90 é um número que me preocupa mas não me assusta. Vamos manter o sistema, mas remodelado. O Sistema Integrado de Gestão para Inscritos em Cirurgia (SIGIC) permite ao paciente obter um “cheque” que lhe permite fazer a cirurgia de que necessita no sector privado se o Público não lhe der resposta em tempo útil.
JN: Há quem diga que o mau funcionamento dos hospitais públicos e as longas listas de espera para cirurgia se destinam precisamente a permitir que os doentes sejam encaminhados para os privados. Será mesmo assim ?
CC: Primeiro, os hospitais públicos estão a funcionar cada vez melhor. Basta olharmos para os números da produção hospitalar, da mortalidade, da capacidade de concentrar nos hospitais todos os pacientes da sua área de atracção sem ter de os enviar para outros hospitais. E aqui divirjo do meu antecessor que considerava terem ocorrido saltos espectaculares nos hospitais SA. Não houve. Talvez tenham um pouco mais de produção, mas também aconteceu nos outros, mesmo sem avaliação in vitro.
JN: A informação e a lei da procura e da oferta também se aplicam aqui ?
CC: Claro que sim. À medida que a população sabe que pode operar a sua catarata, que a artrose da anca se resolve com uma prótese, que as varizes podem ser operadas, inscreve-se e são cada vez mais os portugueses que querem fazer essas cirurgias electivas. O iceberg da procura da saúde vai emergindo e reflecte-se no aumento das listas de espera. Há três anos, quando saí do Ministério, eram 18 as patologias onde havia lista de espera. Hoje temos 64. Mas, enquanto ministro, o que mais me importa é que o tempo de espera seja proporcional à gravidade da situação de cada paciente, que varia dentro das mesmas patologias.
JN: Uma das primeiras medidas anunciadas por este Governo foi a venda de Medicamentos que não careçam de prescrição médica em super e hipermercados. O desagrado da ANF perante a medida não o surpreendeu, pois não ?
CC: O que me surpreendeu foi a rápida mudança de posições dos seus dirigentes. Começaram na agressividade, manifestaram depois enorme desagrado e agora declaram a adesão. Este percurso é que ainda não percebi. Aquela decisão, a forma e as circunstâncias como foi anunciada constituiu um sinal simbólico para deixar claro que o Governo que estava a ser empossado iria resistir aos mais poderosos lobis.
JN: Estarão os portugueses suficientemente informados para se automedicarem ? Embora já tenha lido estudos que apontam os portugueses como um dos povos da EU que mais se automedicam na farmácia, o que se sabe desta realidade ?
CC: Na farmácia do meu bairro, e antes de ser conhecido, sempre constatei o enorme rigor da senhora farmacêutica quanto à automedicação e penso que não é excepção. Admito que possa haver uma certa complacência por parte dos farmacêuticos que facultam os medicamentos porque os doentes precisam deles naquele momento, permitindo-lhes que tragam depois a prescrição. Não vejo nisto nada de mal, significa que as farmácias (e quem lá trabalha) estão inseridas na comunidade, que conhecem as pessoas e as suas dificuldades.
JN: Os anticoncepcionais vão ser vendidos nos supermercados ?
CC: Ainda não sei. Portugal tem apenas 67 medicamentos que não carecem de receita médica para serem adquiridos. A Bélgica tem 108, a Suíça 103, o Reino Unido cerca de 100. Portanto, Portugal está um pouco abaixo da média da EU, ou seja, somos conservadores. Os anticoncepcionais anovulatórios orais são de facto vendidos em muitos países sem receita médica. E não vejo razão para que assim não seja em Portugal.
JN: Mas em Portugal, e nas farmácias, também são vendidos sem prescrição médica independentemente do que refere a embalagem ...
CC: Isso não sei e, embora admita que nem todas as pílulas sejam iguais, penso que a Comissão Técnica deve estar, neste momento, a estudar esse dossier com toda a atenção. Até na chamada pílula do dia seguinte, ainda não sei porque é que umas exigem prescrição médica e outras não.
JN: E quanto à população ? Numa altura em que se fala cada vez mais da chamada medicina preventiva, como pensa responsabilizar cada português pela sua saúde ?
CC: Ainda hoje de manhã eu e a minha mulher nos interrogávamos se não seria útil, por exemplo, retomar as velhas mas sempre actuais campanhas do professor Fernando Pádua sobre os riscos do consumo do sal. Não posso ainda anunciar nada, mas tenho uma proposta do professor para avançar com uma campanha televisiva, a passar em momentos de grande audiência. Sal, tabaco, álcool e gorduras constituem o nosso grande problema.
JN: Sente-se chocado por saber que as mulheres portuguesas podem continuar a sentar-se no banco dos réus por terem interrompido voluntariamente uma gravidez ?
CC: Claro que me sinto chocado e a minha posição sobre o assunto é sobejamente conhecida. Enquanto ministro da Saúde a minha obrigação é fazer aplicar a lei aprovada em 1984 e dar cumprimento a uma resolução da República de 2004 que ordena ao governo que contrate com o sector privado, caso os hospitais não reunam as condições para realizar o aborto nos casos em que ele é consentido. É isso que vamos fazer e estamos a preparar legislação.
JN: Independentemente da a interrupção voluntária da gravidez a pedido da mulher vir a ser despenalizada ?
CC: Sim, esse é outro processo acerca do qual todos conhecem a minha posição. Agora, quero mesmo fazer cumprir a lei actual e preciso de saber quantos são os médicos objectores de consciência em cada um dos hospitais para saber quais os recursos de que disponho e os que preciso de contratar.
JN: Os subsistemas de saúde são uma realidade e quem deles beneficia não quer perder os privilégios de que goza no acesso e na comparticipação. Não terão razão para se sentir discriminados os restantes portugueses ?
CC: É evidente que não faz sentido que os funcionários públicos tenham diferentes subsistemas de saúde e a tendência será a uniformização de benefícios baseada no esquema da ADSE, que faz parte do sistema de benefícios da Administração Pública. Se aquela estivesse sob a minha tutela era provável que a gerisse como se de uma seguradora se tratasse – punha-a em concurso público internacional para evitar o desperdício e a fraude no controlo de dezenas de milhares de prestadores. Mas no que à equidade respeita já demos um passo de gigante com a harmonização das idades de reforma.
JN: Não o choca o facto de qualquer português que tenha efectuado um seguro complementar de saúde poder ver a sua apólice anulada porque a dada altura adoeceu e passou a dar “prejuízo” à seguradora ?
CC: É evidente que sim, mas temos de pensar que os segurados sabem o que adquirem e que a lógica dos seguros complementares é lucrativa e não de beneficência.
JN: Quando terminar o seu mandato de ministro vai, finalmente, aposentar-se com uma reforma dourada ?
CC: A minha única reforma será a de professor universitário e tenciono voltar à universidade depois de concluir este mandato.
Entrevista ao Notícias Magazine, 24 Julho 2005
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