Privatização do Aborto
Tal como tinha ameaçado, o ministro da Saúde anunciou que vai contratar clínicas privadas para garantir às mulheres portuguesas um aborto legal, quando este não é "resolvido" nos hospitais públicos. Assim, seria prosseguido o "interesse público", torneando o suposto incumprimento da lei naquelas instituições e a invocação de objecção de consciência por parte dos médicos.
Já foram apontadas, inclusivamente pela Ordem dos Médicos, as inconsistências desta ideia do ministro, que aliás não é nova. Não há dúvida que se realizam em Portugal menos abortos legais do que Correia de Campos e vários deputados gostariam. Mas não são claras as razões pelas quais a privatização do aborto uniformizaria critérios e reduziria o nível de objecção de consciência, a não ser que se presuma e deseje que o "interesse próprio" dos médicos venha a prevalecer sobre a sua rectidão, para contornar quer a lei, quer a consciência, o que não é admissível presumir ou incentivar.
Neste artigo gostaria de salientar que essa intenção do senhor ministro é precipitada e perigosa, atendendo à experiência espanhola. É hoje um dado adquirido que em Espanha a lei é violada, sistematicamente, pelas clínicas privadas (que realizam 90 por cento dos abortos legais): aí, 97 por cento dos abortos provocados são justificados por motivos ligados à saúde materna e, numa proporção esmagadora, são invocados motivos psíquicos sem validação psiquiátrica. Como ainda recentemente foi sublinhado num seminário realizado na Assembleia da República, o que há de facto em Espanha, no sector privado, é o negócio florescente e fraudulento do aborto "a pedido", à margem da lei e com a complacência das autoridades.
Recordo que, no final de 2004, um parecer do Colégio (português) de Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos considerou perfeitamente correcta uma interpretação da lei (como ocorre em Portugal) que não deslize para abusos, ao contrário do que acontece em Espanha, onde a interpretação legal comum corresponderia a uma prática negligente e abusiva da lei.
Aquele parecer sustentava ainda que o aborto voluntário com base em motivos psíquicos, de acordo com a actual lei, raramente se justifica, uma vez que não se estabeleceu nunca nenhuma relação causal directa e inequívoca entre o estado de gravidez e qualquer grave e duradoura lesão para a saúde psíquica que permita fundamentar tal medida em critérios médicos absolutos. É sintomático que este parecer tenha sido quase ignorado na comunicação social e na comunidade política. Depois de tanto clamor e indignação sobre os presumidos defeitos da interpretação da lei feita em Portugal e sobre os méritos da sua aplicação em Espanha, não deixa de ser curioso este silêncio.
Por outro lado, é muito provável que a privatização do aborto vulnere o direito da mulher a receber informação veraz e impeça o consentimento informado. Por exemplo, de acordo com notícias saídas em meios de comunicação social nos últimos tempos (Época e Voz de Galicia), a quase totalidade das mães que abortam em Espanha não são advertidas das consequências psicopatológicas e psiquiátricas que derivam do aborto, consequências que hoje são bem conhecidas da comunidade científica, constituindo a chamada "síndrome pós-aborto". Por último, há também notícias de "ligações perigosas" ao longo da "cadeia de valor" do negócio do aborto - entre as clínicas, a Federação de Planeamento Familiar Espanhola e laboratórios farmacêuticos - que tendem explorar a assimetria de informação de que beneficiam, à custa da saúde das mulheres e da bolsa do Estado.
Em suma, a privatização do aborto gera incentivos perversos e suscita sérios problemas de regulação e controlo. O ministro da Saúde é um especialista em políticas públicas no sector e não pode ser a única pessoa a ignorá-los, sobretudo quando a evidência empírica disponível parece confirmar essa perversidade. Assim, a questão não será a incapacidade do Estado para fazer cumprir a lei nos hospitais, mas sim a esperança inconfessada do Governo de que o aborto seja discretamente "liberalizado" no sector privado. Mesmo que o resultado do referendo - embora o PS pareça apostado em fazer de Jorge Sampaio, à força, o "Presidente do aborto" - seja não. Associação Mulheres em Acção
Alexandra Teté - Jornal Público 05.07.05
Já foram apontadas, inclusivamente pela Ordem dos Médicos, as inconsistências desta ideia do ministro, que aliás não é nova. Não há dúvida que se realizam em Portugal menos abortos legais do que Correia de Campos e vários deputados gostariam. Mas não são claras as razões pelas quais a privatização do aborto uniformizaria critérios e reduziria o nível de objecção de consciência, a não ser que se presuma e deseje que o "interesse próprio" dos médicos venha a prevalecer sobre a sua rectidão, para contornar quer a lei, quer a consciência, o que não é admissível presumir ou incentivar.
Neste artigo gostaria de salientar que essa intenção do senhor ministro é precipitada e perigosa, atendendo à experiência espanhola. É hoje um dado adquirido que em Espanha a lei é violada, sistematicamente, pelas clínicas privadas (que realizam 90 por cento dos abortos legais): aí, 97 por cento dos abortos provocados são justificados por motivos ligados à saúde materna e, numa proporção esmagadora, são invocados motivos psíquicos sem validação psiquiátrica. Como ainda recentemente foi sublinhado num seminário realizado na Assembleia da República, o que há de facto em Espanha, no sector privado, é o negócio florescente e fraudulento do aborto "a pedido", à margem da lei e com a complacência das autoridades.
Recordo que, no final de 2004, um parecer do Colégio (português) de Especialidade de Psiquiatria da Ordem dos Médicos considerou perfeitamente correcta uma interpretação da lei (como ocorre em Portugal) que não deslize para abusos, ao contrário do que acontece em Espanha, onde a interpretação legal comum corresponderia a uma prática negligente e abusiva da lei.
Aquele parecer sustentava ainda que o aborto voluntário com base em motivos psíquicos, de acordo com a actual lei, raramente se justifica, uma vez que não se estabeleceu nunca nenhuma relação causal directa e inequívoca entre o estado de gravidez e qualquer grave e duradoura lesão para a saúde psíquica que permita fundamentar tal medida em critérios médicos absolutos. É sintomático que este parecer tenha sido quase ignorado na comunicação social e na comunidade política. Depois de tanto clamor e indignação sobre os presumidos defeitos da interpretação da lei feita em Portugal e sobre os méritos da sua aplicação em Espanha, não deixa de ser curioso este silêncio.
Por outro lado, é muito provável que a privatização do aborto vulnere o direito da mulher a receber informação veraz e impeça o consentimento informado. Por exemplo, de acordo com notícias saídas em meios de comunicação social nos últimos tempos (Época e Voz de Galicia), a quase totalidade das mães que abortam em Espanha não são advertidas das consequências psicopatológicas e psiquiátricas que derivam do aborto, consequências que hoje são bem conhecidas da comunidade científica, constituindo a chamada "síndrome pós-aborto". Por último, há também notícias de "ligações perigosas" ao longo da "cadeia de valor" do negócio do aborto - entre as clínicas, a Federação de Planeamento Familiar Espanhola e laboratórios farmacêuticos - que tendem explorar a assimetria de informação de que beneficiam, à custa da saúde das mulheres e da bolsa do Estado.
Em suma, a privatização do aborto gera incentivos perversos e suscita sérios problemas de regulação e controlo. O ministro da Saúde é um especialista em políticas públicas no sector e não pode ser a única pessoa a ignorá-los, sobretudo quando a evidência empírica disponível parece confirmar essa perversidade. Assim, a questão não será a incapacidade do Estado para fazer cumprir a lei nos hospitais, mas sim a esperança inconfessada do Governo de que o aborto seja discretamente "liberalizado" no sector privado. Mesmo que o resultado do referendo - embora o PS pareça apostado em fazer de Jorge Sampaio, à força, o "Presidente do aborto" - seja não. Associação Mulheres em Acção
Alexandra Teté - Jornal Público 05.07.05
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