segunda-feira, setembro 03, 2012

Sinais de deriva


‘Para os gurus liberais que nos governam, menos Estado significa desfazer-se de tudo o que pode implicar no futuro a existência de uma política económica que não seja apenas ditada pelo que eles chamam a livre concorrência. Foi assim que o BPN foi privatizado com o Estado a pagar, em lugar de receber que a fatia pública da Cimpor foi privatizada, com prejuízo; que a ANA e a TAP vão ser descartadas a preço de saldo; que a construção naval vai acabar com a liquidação sumária dos Estaleiros de Viana, por onde não passa a tão apregoada “aposta no mar”. Foi para tornar o Estado inoperante em sectores estratégicos que, ao contrário do que fazem países como a França ou a Alemanha, o Governo se apressou a desfazer-se das golden shares que lhes restavam e assiste de braços cruzados à óbvia cartelização das petrolíferas e ao abuso de poder da EDP, aliás subsidiada à socapa. E é por isso que avança na privatização de sectores que, nem sequer sendo deficitários, prestam serviços públicos essenciais, que a mais elementar prudência recomendaria que não fossem privatizados ou concessionados em regime de monopólio, como são os correios e a água. E é por isso, enfim, que o Governo acaba de se atolar no pântano da privatização da RTP, cujo interesse público escapa a todos e onde apenas é claro o interesse particular do Governo em seguir avante: tudo o resto é uma trapalhada absoluta, com cenários alternativos que se contradizem uns aos outros, sucessivos grupos de trabalho e consultores contratados, cujo único resultado é demonstrar a sua total ignorância sobre o que seja um serviço público de televisão e o próprio mercado do audiovisual português e a sua absoluta impreparação e incompetência para se ocupar do assunto. Pudemos assim assistir, estarrecidos, à lição de cátedra do liberal Borges propondo, sem vergonha, oferecer uma estação e um canal público a um qualquer amigo privado e ainda lhe dar 140 milhões por ano. Privatização? Reajustamento? Poupança? Não, apenas despudor. O fundamentalismo ideológico que determina a política seguida não reconhece qualquer razão de interesse público e já nem sequer se sustenta na racionalidade económica. É por isso que o Governo foi tão lesto a reduzir os contratos de trabalho e a sua protecção jurídica a quase nada, como se ter trabalho fosse um privilégio em si mesmo, mas não ousa encarar de frente o poder da EDP — nem para defender os consumidores nem para diminuir os custos de produção das empresas.

A querida troika veio encontrar uma execução orçamental em que nenhuma das célebres reformas prometidas e esperadas avançou (eu rio-me da ignorância deles quando oiço os alemães dizer que Portugal não tem outro caminho senão continuar com as reformas). Em que a dívida pública aumentou e o défice estabelecido para este ano nem por intervenção divina será cumprido. Em que 300.000 pessoas perderam o emprego e dezenas de milhares de empresas faliram e muitas mais vão falir porque a banca não empresta um tostão a ninguém — e até o mais assanhado esquerdista sabe que, sem crédito, não há economia que possa funcionar. Em que 19 das 20 empresas do PSI-20 se mudaram para melhores residências fiscais e os que ficaram estão a ser exterminados por um governo ‘liberal’ que tornou tão insustentável a carga fiscal que em lugar de recolher mais dinheiro o perdeu. E em que, finalmente, toda a poupança na despesa pública foi conseguida com cortes de salários, mantendo intacta a superstrutura que arruína o país e os maus hábitos de proteger com dinheiros públicos os amigos do costume.

Um ano e meio decorrido, depois de ter aceitado os sacrifícios impostos com uma resiliência que todos reconhecem, os portugueses têm o direito de esperar que o Governo e a troika lhes digam o que correu mal e porquê, e o que vai ser mudado ou revisto. E não adianta virem com desculpas sobre a conjuntura externa, porque esta é a mesma maioria que não aceitava essa explicação ao governo anterior. Não adianta virem dizer que a situação era bem pior do que esperavam, pois que nos juraram que conheciam bem a situação e estavam preparados para governar (e ainda esperamos provado “desvio colossal”...). Supondo que, quer o Governo quer a troika, não tenham a humildade de reconhecer que falharam no diagnóstico e na solução, é de esperar, pelo menos, que não venham, simplesmente, propor-nos mais do mesmo. Estamos pobres e descrentes, todavia ainda não estúpidos de todo.’
Miguel Sousa Tavares, semanário Expresso, 01.09.12

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