sábado, junho 24, 2006

Governo, ANF e Princípios

Nem todos estão de Acordo

Governo e ANF assinaram um acordo. Mudam as regras para as farmácias e para os farmacêuticos. Há vozes que discordam do que foi aceite pelas duas partes. Muitas das críticas são feitas por dirigentes farmacêuticos.

Marina Caldas

O acordo de princípio assinado entre o Governo e a Associação Nacional de Farmácias (ANF) apanhou os portugueses de surpresa.
Numa análise primária ficou a ideia de que o primeiro-ministro, José Sócrates, estava a continuar a “cruzada” contra o “poderoso lobby das farmácias” (ANF) iniciada, precisamente, no dia da sua tomada de posse ao anunciar a liberalização na venda de medicamentos não sujeitos a receita médica
Passadas poucas horas descobriu-se que o referido acordo, cozinhado secretamente, satisfazia as duas partes - Governo e ANF.
Ao liberalizar a propriedade da farmácia, o acordo possibilita que pessoas exteriores ao sector possam ter o domínio sobre estes espaços comercias de medicamentos – o que até aqui não acontecia, uma vez que a lei se regia pelo princípio de “uma farmácia um farmacêutico”. Por outro lado, permite às farmácias, instaladas perto de estabelecimentos hospitalares públicos, que alarguem a sua rede e, através de concurso, se possam fixar dentro dos próprios hospitais, para dar apoio aos doentes do ambulatório (ou seja, os que não estão internados).

As Dúvidas

Instalou-se a dúvida. Muitas dúvidas. Afinal, quem ganha com estas medidas: as farmácias? Os farmacêuticos? O Governo? Os hospitais? Os doentes (utentes)?
Apesar de nem todos estarem de acordo neste princípio os utentes podem ser os grandes beneficiados com as novas medidas caso elas sejam implementadas, futuramente. Perante esta perspectiva ninguém pode acusar o Executivo de Sócrates de não olhar para os interesses da população. Seja como for, na área da Saúde são poucas as personalidades que se levantam a dar “vivas” ao acordo.
Mais importante, talvez, é a percepção de que há vozes discordantes a partir do sector farmacêutico. Afinal, João Cordeiro não tem o apoio incondicional de todos os seus pares.
A Prémio resolveu saber quem é que não está ao lado do “homem forte” das farmácias e tentar perceber as razões que fazem com que João Cordeiro seja tão amado por uns e tão odiado pelos restantes.

Sócrates e Cordeiro na Terra

Clara Carneiro é farmacêutica, ex-deputada do PSD e foi, durante muito tempo, a “ministra sombra” dos social-democratas, tendo estado também na corrida para bastonária à Ordem dos Farmacêuticos.
Todos lhe reconhecem uma postura frontal, quando está em causa a defesa de princípios que considera imutáveis. No caso do recente acordo, Clara Carneiro não tem dúvidas.
“É um acordo que revela grande prepotência de ambas as partes que o assinaram” e que foi “vendido, a nível de marketing, como se só existisse Deus no Céu e o engenheiro Sócrates e o doutor João Cordeiro na Terra”, começa por referiu a farmacêutica, para explicar o significado de “prepotência” neste domínio.
“Comecemos pelo Governo. Os responsáveis que estiveram na origem da construção deste protocolo ultrapassaram tudo e todos (até o Presidente da República que, após a ida deste documento ao Parlamento e caso a maioria o aprove, ainda o pode vetar). Repare que ninguém foi ouvido - nem a Ordem, nem a associação dos farmacêuticos hospitalares, nem as administrações dos hospitais nem a Associação de Farmácias de Portugal. Ninguém.
A ANF, por seu lado, demonstrou a sua prepotência uma vez que representando apenas 2.600 dos 10 mil farmacêuticos existentes no país assinou um acordo com o Executivo em nome de todos. Isto tem outro nome que não prepotência?”, pergunta, sem esperar resposta.
Mas Clara Carneiro vai mais longe ao dizer que tem sérias dúvidas que as medidas delineadas e apresentadas recentemente pelo primeiro-ministro cheguem “a vias de facto”, uma vez que “todo o acordo implica uma mudança radical no edifício legislativo relativo à farmácia e ao medicamento”, que não é fácil pôr em prática e para o qual não se está estatutariamente preparado.
Mas se tudo isto for para bem do doente, é uma mais valia, questionámos.
“Duvido que seja”, respondeu de imediato Clara Carneiro, explicando depois “quando se falou da venda livre de medicamentos não sujeitos a receita médica, a ideia foi passada ao público como se, a partir daquele momento, os medicamentos baixassem de preço, principalmente nos supermercados. Aconteceu o contrário. Os medicamentos que estão a ser vendidos fora das farmácias são mais caros ainda”.
Isto prova, acrescenta, “que a questão da acessibilidade aos fármacos, no país, não é o problema principal da saúde dos portugueses, como nos tentaram fazer crer. Muito pelo contrário. O que esta a acontecer, é que o actual Governo está a retirar aos cidadãos as almofadas que os favoreciam. Veja o que se passa com os genéricos”.
Clara Carneiro tem mais críticas na manga e fala da “concorrência desleal” em que o acordo assinado entre o Executivo e a ANF coloca quer as farmácias quer mesmo os farmacêuticos.
“Uma farmácia instalada dentro de um hospital é um aspirador. Ninguém tem dúvidas, penso eu. Ora essa farmácia não fica em pé de igualdade com as farmácias de oficina instaladas na rua. Daí eu ter dito que este acordo é prepotente. Agora acrescento que é também mitigado”.

Mau para os Farmacêuticos

“Este foi, sem dúvida, um mau acordo para os farmacêuticos e um bom acordo para a ANF, enquanto entidade”. É esta a primeira reacção da farmacêutica do Porto Graça Pereira Lopes, presidente da Associação de Farmácias de Portugal (AFP), ao ser questionada sobre o que estava em causa em todo este processo.
Esta responsável, aliás, fez ouvir a sua voz pouco depois de ter conhecimento do acordo, através de um comunicado de imprensa, salientando que “o universo farmacêutico era representado pela respectiva Ordem, e que o mundo das farmácias tinha duas representantes: a ANF e a AFP”. Ora, esta última não foi ouvida pelos responsáveis governamentais, no que diz respeito ao acordo em análise.
“Não é aceitável uma posição unilateral”, pode ler-se no documento, acrescentando que o acordo “arrastou consigo a imagem de que as farmácias são uma actividade puramente mercantilista, esquecendo que na área da saúde são as farmácias que cobrem as necessidades não abrangidas pelos serviços públicos de saúde, facto que tem sido totalmente reconhecido pela população”.
Mas afinal, qual é o benefício acrescido que a ANF acaba por ter com este acordo?.
A resposta da presidente da Associação de Farmácias de Portugal estava pronta.
“A ANF conseguiu negociar a seu favor uma série de parâmetros que lhe vão permitir, a partir de agora, colocar em movimento algumas ‘empresas-satélite’ que lhe estão associadas”.
Explicando melhor, “sem que o primeiro-ministro se tivesse apercebido, penso eu, a ANF conseguiu desbloquear serviços que não estavam sob o seu controlo total, como é o caso da entrega de medicamentos ao domicílio, via Internet; da assistência dos doentes nas respectivas casas e, ainda, tudo o que está ligado à importação directa
medicamentos.”
À partida, os serviços referidos por Graça Pereira Lopes, podem dar-nos a ideia de que são um benefício acrescido quer para os utentes quer para os farmacêuticos.
A responsável da AFP explica que para os farmacêuticos, sócios da ANF, não são um bom prenúncio, uma vez que “estes serviços são debitados aos associados, e os custos são elevados. Quem ganha, sem dúvida, é a ANF mais uma vez”.

O Turno da Noite

Graça Lopes deixa ainda perceber que o acordo em questão é muito genérico e que a dificuldade principal tem a ver com a sua regulamentação.
“Não digo que, tal como esta delineado, este acordo não seja bom para os utentes. Pode ter vantagens e algumas até significativas, como a possibilidade de não ter de se deslocar a uma farmácia, à noite, quando pode adquirir os fármacos no hospital. O mesmo não acontece para os farmacêuticos. Temos de dizer isto muito frontalmente”.
Uma das medidas que podem vir a ser adoptadas pelos responsáveis das farmácias de oficina (comunitárias) tem a ver com a revisão dos turnos. É que, em muitos casos, não se justifica o serviço nocturno, uma vez que nos hospitais este sector vai funcionar 24 horas por dia.
“Há aqui coisas positivas, que tem a ver com o cumprimento do horário de 55 horas – que permite que as farmácias possam estar abertas à hora de almoço e encerrem às 22 horas, se assim o desejarem. Em todo o caso, há farmácias que se preparam para
fechar as portas, no período da noite, uma vez que a distribuição de medicamentos nos hospitais vai levar a que não haja interesse, por parte dos responsáveis das farmácias de oficina em manter estes estabelecimentos abertos nessa fase”.
E neste domínio têm uma palavra a dizer os farmacêuticos hospitalares. Aqueles que trabalham nos hospitais e que já são responsáveis pela distribuição de determinados fármacos, quer para os doentes internados quer para doentes especiais, em ambulatório.
Jorge Brochado é presidente da Associação Portuguesa dos Farmacêuticos Hospitalares (APFH) e, neste quadro, não tem dúvidas.
“Este acordo é óptimo para a ANF. Mais uma vez tiro o chapéu ao doutor João Cordeiro que, a prazo, vai aumentar o negócio do seu grupo empresarial em cerca de 600 milhões de euros”.
Para este responsável, o dirigente da ANF é visto como “o líder de um grupo económico, cujo intuito é o lucro e, nesse sentido, fez um óptimo acordo”.
Seja como for, Jorge Brochado reconhece que “as farmácias comunitárias prestam um bom serviço público e que o grande responsável por esta situação se chama João Cordeiro.
“Ele funcionou muito bem com as ineficiências do Estado. Aproveitou-as. Em muitos períodos o estado, fruto de incapacidade, deu todas as condições ao líder da ANF para fazer o que quisesse e como quisesse e, ainda por cima, tirar dividendos económicos com isso”, referiu à Prémio.

Direito à emancipação

Jorge Brochado faz críticas severas ao acordo agora estabelecido, no que se refere à instalação de farmácias vindas do exterior para o hospital.
“Porque não foram dadas condições para que as farmácias hospitalares, ou equipas de profissionais de próprio hospital e que estão ligadas às farmácias hospitalares, pudessem fazer o trabalho que vai ser dado a farmácias exteriores e que não têm vínculo ao hospital? Será que as farmácias hospitalares não têm o direito à emancipação? Como é que tudo este processo vai ser posto em prática? Vão existir dois tipos de farmácias no mesmo espaço, uma virada para a venda de medicamentos e outra para a distribuição gratuita? E se as farmácias de oficina vão distribuir todo o tipo de fármacos, qual o papel que fica para o farmacêutico hospitalar? Vamos passar a trabalhar para estas novas estruturas? Bom, se pagarem bem, não nem me importo!”, acrescentou Jorge Brochado, com o espírito sarcástico que lhe é habitual.
Mas este responsável tem mais a dizer e relembra que há quatro anos, “era então ministra Manuela Arcanjo, a possibilidade da distribuição de medicamentos aos doentes das urgências era algo impensável. Falava-se, então, de grandes dificuldades nas alterações logística que tais medidas acarretavam”.
De repente, “e estando no poder o mesmo partido político - e graças a um acordo estabelecido com um único parceiro social, esquecendo até a Ordem dos Farmacêuticos - eis que todas as dificuldades são superadas e é estabelecido um acordo milagroso”.
Há um torcer de nariz de Jorge Brochado quanto à fórmula utilizada para se chegar ao fim. Um fim que, refere, está muito distante de ser implementado.
“Não sei se errarei muito se disser que este Governo ainda vai cair e pouco disto foi para a frente”, referiu.
Voltando ao comunicado da AFP, e sem fazer uma análise aprofundada sobre o conteúdo do acordo, é salientado que “a estratégia que foi seguida é bem diferente da orientação da Comunidade Europeia para o sector”. Além disso, o que mais surpreendeu os responsáveis desta associação foi “a falta de transparência com que o processo foi conduzido, tanto mais que, em numerosas ocasiões, o ministro da Saúde tem vindo a afirmar que a ANF detém um poder excessivo que necessita de alteração”.
Questionada sobre as diferenças principais entre a AFP da ANF, Graça Lopes fala na defesa do interessa dos farmacêuticos.
“A defesa que fazemos não passa pelo lucro para a associação, uma vez que não temos fins lucrativos. Não cobramos rigorosamente nada pelos serviços que prestamos aos nossos associados, ao contrário da ANF”.
Sobre João cordeiro, refere que ele tem de ser visto como “um dirigente das farmácias” e promete que, enquanto for presidente da AFP esta associação nunca se tornará num “cartel”.

O que diz o Acordo

O Acordo assinado entre o Governo e a ANF estabelece os princípios para “a liberalização da propriedade da farmácia, melhoria da acessibilidade aos medicamentos e preservação da qualidade da assistência farmacêutica”. Entre os vários pontos estabelecidos, a Prémio resolveu apresentar os ‘items’ da polémica, tal e qual são enunciados no documento. Assim, eis alguns dos tópicos em que a ANF e o Governo estão de acordo e que são referidos no texto principal.

- Os profissionais de saúde que sejam prescritores de medicamentos não poderão ser, directa ou indirectamente, proprietários de farmácia. Será alargado o regime de incompatibilidades previsto na lei, pelos menos às seguintes empresas: empresas da indústria farmacêutica, empresas de distribuição grossista e entidades privadas prestadoras de cuidados de saúde ou subsistemas que comparticipem no preço dos medicamentos.

-Cada proprietário individual, empresa ou grupo de empresas, não poderá, directa ou indirectamente, concentrar a titularidade, exploração ou gestão de mais de quatro farmácias.

-Estabelecer-se-á uma capitação mínima de 3.500 habitantes por farmácia e será prevista uma distância de 350 metros entre farmácias, mantendo-se as regras actuais quanto à distância mínima relativamente a hospitais e centros de saúde.

-Será possível instalar farmácias em qualquer local, independentemente da capitação, desde que não haja farmácia a menos de 2km.

-O procedimento de abertura de novas farmácias será feito, de forma transparente, mediante concurso público simplificado. Os critérios de selecção dos concorrentes, visam a defesa dos utentes e serão, designadamente, os seguintes:
a) Observação das regras para instalação de novas farmácias;
b) Menor número de farmácias do candidato:
c)Composição do quadro técnico proposto para a farmácia;
d) Período semanal mínimo de abertura ao público;
e) Serviços farmacêuticos que o candidato se propõe prestar na farmácia

-As farmácias podem evoluir para unidades prestadoras de serviços farmacêuticos, para além da dispensa de medicamentos e, nessa medida, deve ser actualizado e ampliado o objecto da sua actividade. Para além da dispensa dos medicamentos, passam a constituir objecto da actividade da farmácia os produtos e serviços seguintes:
.Serviços farmacêuticos, designadamente domiciliários, em especial para apoio à terceira idade;
.Produtos naturais;
.Produtos veterinários;
.Produtos de saúde e conforto;
.Vacinas não incluídas no Plano Nacional de Vacinação da DGS, administração de medicamentos e primeiros socorros;
.Meios auxiliares de diagnóstico e terapêutica;
.Campanhas de informação e programas de cuidados farmacêuticos

-Serão instaladas farmácias de venda ao público nos estabelecimentos hospitalares para dispensarem receituário dos serviços oficiais de saúde, devendo funcionar 24 horas por dia e 365 dias por ano. Estes serviços serão concessionados, sendo dada preferência a proprietários de farmácias localizadas na mesma zona

-Dar-se-á início à dispensa de medicamentos em unidose no ambulatório, em termos a regulamentar

-Os medicamentos actualmente distribuídos nos hospitais e que possam tecnicamente ser dispensados em farmácias, poderão ser por elas distribuídos, em termos a regulamentar

-A proibição de prática de descontos pelas farmácias será revogada

-A venda de medicamentos à distância pelas farmácias, através da Internet, será autorizada, mediante regulamentação específica que defenda a protecção da saúde pública e garanta a qualidade e a segurança na dispensa

-Será generalizada com a maior urgência a prescrição médica pela Denominação Comum Internacional do princípio activo (DCI). Sempre que legalmente admissível a substituição, será obrigatória a dispensa, pela farmácia, do medicamento de preço mais baixo. Se a farmácia não dispensar o mais barato, suportará a diferença entre o custo do mais barato e o custo do medicamento dispensado. Se o doente, por vontade própria, decidir adquirir um medicamento mais caro, deve assinar a receita como comprovativo da sua decisão e suportará, nesse caso, o diferencial do custo

-A importação paralela de medicamentos provenientes de países da EU será liberalizada, ficando dependente da autorização do INFARMED, nos termos do estatuto do Medicamento

Marina Caldas, revista prémio 23.06.06