quarta-feira, maio 31, 2006

Entrevista de Alberto Rosa Torner

Entrevista de Marina Caldas - Revista Gestão Hospitalar
O director gerente do Hospital de La Ribera e Departamento de Salud 11, em Valência, esteve em Portugal para participar num seminário promovido pela APAH sobre o financiamento da Saúde. À GH explica as razões do sucesso desta parceria público-privada e aponta alguns caminhos para uma nova forma de encarar o financiamento do sector.

Gestão Hospitalar (GH) – Quem são os parceiros da parceria público-privada do Hospital de La Ribera?
Alberto de Rosa Torner (ART) – Os accionistas? 51% é da companhia de seguros de saúde mais importante de Espanha, Adeslas, 45% são dos dois bancos mais importantes da comunidade valenciana (Bancaja e Caja de Ahorro del Mediterráneo), e 4% são das duas construtoras que fizeram o hospital. Mas a líder é a companhia de seguros.

GH – É uma sociedade que trabalha para o Governo?
ART – É uma sociedade que foi constituída para a gestão deste projecto.

GH – Quem efectua o controlo dessa gestão? O conselho de administração inclui um representante do Governo?
ART – Não. A empresa nomeia os seus cargos directivos, como o meu, de forma autónoma. O Governo nomeia um delegado, que é um médico, e é ele que controla tudo o que se faz no hospital, actividade, a qualidade do que se faz. Por exemplo, o serviço de atendimento ao paciente, em vez de depender de mim como gerente, que é o acontece em qualquer outro hospital, nesta unidade depende do delegado porque o Governo decidiu que ele controla o que fazemos aí.

GH – Como funciona o pagamento por capitação?
ART – No concurso público que foi feito fixava-se um valor ‘per capita’ que o Governo calculou aproximadamente em 20% mais barato do que lhe custa a gestão dos seus próprios hospitais. O nosso pressuposto é a multiplicação desse valor pelo número de habitantes que existe na comarca. Como temos uns sistemas de informação muito potentes que estão ligados aos sistemas de informação populacionais da própria comunidade valenciana sabemos, todos os dias, quantos habitantes tem a comarca.

GH – Mas e se houver um imprevisto, como uma pandemia? Como funcionará o pagamento?
ART – O aumento faz-se em função do aumento médio da comunidade valenciana. Porque se afectar toda a comunidade valenciana, o aumento da nossa capitação é o aumento do gasto sanitário da comunidade valenciana. Para que ocorresse uma catástrofe teria de ser algo que só nos afectasse a nós e isso é muito difícil.

GH – O contrato é de 15 anos. A capitação é revista anualmente?
ART – Sim. Revê-se anualmente face ao aumento do gasto médio da comunidade valenciana.

GH – Quanto gastam por pessoa?
ART – A nossa capitação, no ano de 2005, foi de 454 euros por habitante. O gasto com os cuidados primários, cuidados continuados e cuidados hospitalares da comunidade valenciana situa-se nos 600 euros, excluindo o gasto farmacêutico em ambulatório, e a nós pagam-nos 454 euros.

GH – E chega?
ART – Sim, sim! Acabámos o ano com lucros de um milhão e 600 mil euros que, dentro do volume total de facturação não são uns lucros muito importantes, mas que nos enchem de satisfação, pois sendo 20% mais baratos que o Estado e tendo feito todos os investimentos e tendo que os amortizar e ainda ter lucros deixa-nos muito satisfeitos.

GH – Em que é que o pagamento por capitação contribui para o sucesso desta sociedade?
ART – Não é a capitação. O importante é que é um modelo que incentiva os gestores a mudar o seu ‘chip’, o modo de pensar, a forma de trabalhar, para nos dedicarmos a curar os pacientes, a cuidar deles. Porque o objectivo último do modelo de capitação é conseguir o melhor estado de saúde dos cidadãos. Esta seria a situação, se ninguém adoecesse, em que a empresa conseguiria os seus melhores resultados económicos.
Todas as unidades de assistência, hospital, centros de saúde, médicos, enfermeiros, auxiliares, administrativos, todos devem trabalhar de um modo eficiente para conseguir que o estado de saúde dos cidadãos seja o melhor. Assim, a capitação permite-nos ser mais eficientes, dar mais qualidade aos serviços e, no final, conseguir um melhor estado saúde.

GH – Que tipo de especialidades é que têm?
ART – É um hospital muito tecnológico. Temos duas ressonâncias magnéticas, um acelerador lineal para o tratamento do cancro, neurocirurgia, cirurgia cardíaca… somos um hospital com uma grande carteira de serviços porque quisemos, desde logo, ser autosuficientes do ponto de vista assistencial, para conseguir a fidelização dos cidadãos.

GH – Também proporcionam cuidados paliativos?
ART – Há hospitais de apoio e temos um dispositivo assistencial ao domicílio. Enviamos médicos e enfermeiros à casa dos doentes. Temos cerca de 40 pacientes à casa de quem vamos. Quando são crónicos, há hospitais de apoio do Governo para onde enviamos os doentes e pagamos-lhes.

GH – O facto de a sociedade incluir, além do hospital, centros de saúde, consultórios, não dificulta a gestão?
ART – Do nosso ponto de vista é muito mais importante, é mais interessante, é o futuro! Não se pode ver o hospital como algo distinto, separado do resto dos dispositivos assistenciais porque o cidadão é o mesmo. Quando nós gestores dizemos que o cidadão tem de ser o centro do sistema efectivamente temos de o conseguir. E, para isso, todos os que nos dedicamos à saúde temos de trabalhar de forma coordenada, com objectivos únicos, com sistemas de informação que nos permitam acompanhar o utente a cada momento. Colocar toda a tecnologia, todos os dispositivos assistenciais, todas as infra-estruturas ao serviço de uma melhor saúde para todos os cidadãos.

GH – Há facilidade de comunicação entre todas as unidades e tantos profissionais de saúde?
ART – É verdade que, historicamente, houve uma falta de comunicação entre os hospitais e os cuidados primários, em Espanha e, certamente, em Portugal. Porém, temos de superar isso!

GH – Como é que conseguiram?
ART – De muitas maneiras! Os sistemas informáticos são uma maneira. Estabelecer objectivos que sejam únicos para todo o departamento. Nós incentivamos os profissionais dos hospitais para que se desloquem aos centros de saúde para actuar como consultores e isso fez com que diminuíssem as consultas hospitalares. Formar os médicos de cuidados primários, dar-lhes mais tecnologia, fazer rotações entre os médicos para que os dos cuidados primários vão para o hospital para ver como se trabalha, e para que os hospitalares vão os centros de saúde. O que é preciso é que os profissionais se conheçam e falem entre si. É difícil mas tem de ser feito porque é o futuro!

GH – E não houve resistências dos profissionais?
ART – Bom, por sermos uma entidade privada houve dois tipos de resistência. Entre os cuidados primários e o hospital, e dos profissionais que vinham da Administração Pública e estavam a ser integrados numa empresa privada. Mas, no final, nós somos profissionais de saúde e o nosso objectivo é trabalhar para o paciente. Creio que um discurso profissional faz dissipar todos esses receios!

GH – A transição para este modelo não foi fácil?
ART – Creio que foi mais difícil quando se fez o hospital porque era uma experiência totalmente nova e as pessoas tinham medo da palavra privatização. Mas quando assumimos os cuidados primários fomos surpreendidos porque as pessoas tinham vontade de fazer coisas. O nosso compromisso de formação, de incentivos, de trazer tecnologia era muito superior ao que tinham tido por parte da Administração Pública e, nesse sentido, não tivemos problemas.

GH – A população da comunidade é obrigada a recorrer aos vossos serviços ou pode escolher?
ART – Há liberdade de escolha. Se as pessoas decidirem ir a outro hospital, a nós cabe-nos o encargo do gasto do acto médico a 100%. E podem vir aos nossos serviços pessoas de outras regiões e aí o Governo só nos paga 80%. É um sistema de controlo de qualidade. O Governo quer que nós nos concentremos nos nossos cidadãos e consigamos a maior fidelização dos cidadãos da nossa comunidade. Por isso, no mínimo, temos de oferecer um serviço igual ao de outros hospitais públicos e temos de ter mais qualidade para que nos escolham a nós.
Dou-lhe um exemplo. Se uma mulher grávida da nossa comarca decide dar à luz num hospital de fora nós temos que pagar ao Governo 100% do custo do parto, por exemplo dois mil euros. Se uma mulher de outra zona recorre a nós o Governo paga-nos 80%, ou seja, 1600 euros. O Governo quer que nos dediquemos às nossas doentes. Assim, todas as nossas grávidas têm anestesia epidural, todos os quartos são individuais – é o único hospital público de Espanha assim. Portanto, temos uma qualidade de serviço que não existe em outros hospitais públicos.

GH – Conseguiram descer o número das urgências hospitalares. Como?
ART – Eu diria que somos o único hospital de Espanha que está a reduzir as urgências! Tivemos diversas estratégias. A primeira é informatizar todas as urgências – as dos cuidados primários e hospitalares. Estamos a fazer intercâmbios de profissionais entre primários e hospitalares, para que conheçam os respectivos trabalhos. Pusemos um écran na sala de espera do hospital onde pomos os tempos de espera nos centros de saúde e no hospital. Dotámos com tecnologia quatro dos nossos 10 centros de saúde, a Norte, Sul, Leste e Oeste. Com praticamente a mesma tecnologia que temos no hospital, radiologia simples, ecografia, análises e umas camas de observação, onde se pode ficar umas horas sem necessidade de recorrer ao hospital.
Estamos a dotar os cuidados primários de maior capacidade de resolução, para que os serviços fiquem mais próximos do cidadão.

GH – Estão também a reduzir os gastos com medicamentos?
ART – O gasto farmacêutico é dos problemas mais prementes de Espanha, é o terceiro país da Europa com maiores gastos farmacêuticos em ambulatório. Fizemos um plano estratégico do uso racional do medicamento, estamos a trabalhar com os médicos e com a indústria farmacêutica, porque consideramos que esta deve ser uma aliada, deve mudar o seu conceito de gestão e aliar-se ao Governo e aos gestores privados. Elaborámos guias clínicos para os médicos. Estas estratégias permitem-nos que, se a comunidade valenciana está a crescer 7% no gasto farmacêutico, nós estejamos a crescer um ponto abaixo.

GH – Como funciona o plano estratégico que referiu?
ART – Nós temos toda a informação sobre quanto é que gasta cada um dos médicos. O que disse antes é que os profissionais têm de se conhecer, de falar, as coisas têm de ser feitas com consenso. Juntámos um grupo de profissionais, todos médicos e enfermeiros, e eles é que acordaram um guia clínico para o tratamento digestivo, do cardiovascular, das depressões. Viram quais os tipos de medicação, viram quais os medicamentos que foram usados por cada médico e os que não estavam a funcionar. Sem impor nada ao médico, mas recomendando-lhe que se adapte aos guias clínicos que foram elaborados pelos profissionais. Nesse sentido, dá-se-lhes a informação sobre os medicamentos, o que estão a usar os colegas, o que fazem de diferente … como se fosse ‘bench-marketing’ – dar aos médicos a informação que os gestores dispõem. A súmula destes consensos é levar todos a trabalhar com uma lógica assistencial mas também económica.

GH – O que é que acontece aos médicos que não seguem o que foi acordado?
ART – Não se trata de obrigá-los a cumpri-lo! Mas se existe um consenso científico, um consenso médico, de que isto é o adequado, se ele não o cumpre terá os seus motivos, mas pelo menos terá a informação.

GH – Mas terá a liberdade de não seguir esse guia?
ART – Sim! É a mesma coisa que quando pomos na sala de espera das urgências do hospital um écran com os tempos de espera. Não obrigamos a ninguém a ir ao seu centro de saúde mas estamos a demonstrar que, por uma coisa de nada não valeria a pena ir ao hospital, resolveria melhor o seu problema se fosse ao centro de saúde.
Não se trata de pensar que o médico é o inimigo, temos de tentar aliar-nos, dar-lhes informação, dar-lhes parte nos resultados económicos, dar-lhes reconhecimento.

GH – Qual é a taxa de satisfação dos utentes?
ART – A taxa é muito elevada. 92% de muito satisfeitos, 6% de medianamente satisfeitos e apenas 2% de insatisfeitos.

GH – Acha que este modelo pode ser aplicado em qualquer país?
ART – Creio que este modelo se aplica a qualquer realidade. Teria que ter alguns retoques dependendo de se estar numa zona urbana, numa zona rural, numa zona envelhecida ou não, ou se é um hospital universitário, se é um hospital novo de raiz ou hospitais velhos.

GH – E integrar sempre o hospital e os centros de saúde?
ART – Na minha opinião não é indispensável. Eu aprendi muito com a integração do hospital e dos cuidados primários. Creio que é o futuro!
Mas, por exemplo, o hospital da comunidade de Madrid terá o mesmo modelo de capitação, mas não os cuidados primários.

GH – E funciona?
ART – Está a ser construído agora. A minha experiência diz-me que é muito positivo integrar os cuidados primários com os hospitalares. É indispensável? Não. Mas estou convencido que, dentro de uns anos, as pessoas responsáveis por estes projectos apenas hospitalares procurarão uma forma para trabalhar coordenadamente com os primários.

GH – Como funciona o vosso sistema de incentivos aos médicos?
ART – Ao estarmos totalmente informatizados o que fazemos é ir somando todos os actos que cada médico realiza todos os dias: consultas externas, urgências, operações. Cada acto médico tem uma valoração e vai-se somando tudo. Trimestralmente vemos se o médico cumpriu os objectivos que, como organização, lhe estipulámos. Se cumpriu a 100%, então todo o dinheiro que acumulou com o seu trabalho é-lhe dado, se só cumpriu 95%, então recebe só 95% dessa valoração.

GH – Para além do ordenado base?
ART – Todos têm um salário fixo que é o mesmo da Administração Pública. Recebem a mais a parte de incentivos que é, aproximadamente, 20 a 25% do salário. Cada médico ganha de formas diferentes, primeiro por todo o trabalho e, depois, em função dos objectivos. Por exemplo, um dos objectivos é não ter listas de esperas, se não tem paga-se todo o incentivo.
Isto já nos permitiu ter a espera média para cirurgias mais baixa de Espanha. Nós temos uma média de 40 dias de espera por uma cirurgia. Mas isto desde o dia em que o médico diz ao doente que tem de ser operado até ao dia da operação.

GH – Tem uma verba fixa de incentivos para cada um dos objectivos?
ART – Por exemplo, cada consulta um euro, cada operação às cataratas 15 euros, cada paciente hospitalizado observado, três euros. Tudo isto vai-se somando e, trimestralmente, vemos se tem listas de espera, se tem doentes muito complicados, se demora muito nas consultas… se cumpriu a 100% os objectivos, pagamos-lhe todo o dinheiro que acumulou. Se cumpriu a 95%, recebe só essa parte.

GH – Há incentivos para enfermeiros?
ART – Funcionam para todo o hospital. Mas, no caso dos médicos, é mais importante e podemos fazê-lo individualmente. No caso dos enfermeiros, é muito menos importante e, provavelmente, será cerca de 5 a 6% do salário que recebem. E fazemo-lo por grupo e não individualmente. Por exemplo, marcamos objectivos à unidade de cuidados intensivos, às urgências, a cada um dos andares.

GH – E os administrativos também recebem incentivos?
ART – Sim, mas por grupo.


Currículo

Alberto de Rosa Torner
Licenciado em Económicas e Empresariais pela Universidade de Valência
Mestre em Administração e Direcção de Empresa pelo ESADE
Mestre em Alta Gestão Sanitária
Auditor assistente da Arthur Andersen
Director Administrativo da Mapfre
Gerente Clínica Virgen del Consuelo
Gerente Hospital Valencia al Mar
Gerente Hospital 9 de Outubro
Gerente Clínica Quirón de Valência
Director Gerente do Hospital de La Ribera e Departamento de Salud 11, desde Novembro de 1998