domingo, junho 18, 2006

Carta Aberta dos Bastonários

Assumir que a prestação de cuidados de saúde é comparável a uma mera actividade económica, apenas sujeita às livres regras de mercado é, além de um risco óbvio para a saúde dos cidadãos, uma falácia económica. Os maus resultados de tão mirífica acepção estão provados cientificamente e manifestam-se em problemas de crescimento descontrolado dos custos com saúde, na ausência de evidência de qualidade e na incapacidade do Estado em regular a acessibilidade. A prevalência destas teses apenas conduz, a curto prazo, à entrega fácil e irreversível da exploração da saúde a interesses económicos, sem protecção dos interesses dos cidadãos ou do Estado. Aceitar a bondade de tais teses é promover o delapidar de recursos e patrimónios de toda a sociedade, patrocinar a perda irremediável da função redistributiva do Estado e, mais grave, afectar a universalidade do acesso a cuidados de saúde. No contexto próprio é, verdadeiramente, contrariar o que, de forma comum se afere em relação à saúde como «o custo de um valor sem preço».
Em todos os países desenvolvidos a prestação de cuidados é alvo de apertada regulação e vigilância dado que interfere com os valores fundamentais da dignidade humana. É também nos países mais desenvolvidos que assume maior relevância o exercício de regulação como garante do verdadeiro acesso universal a cuidados de saúde, indissociável da garantia de qualidade da intervenção dos profissionais de saúde sujeitos a exigentes códigos éticos e deontológicos. Desse modo, o primado da salvaguarda do interesse público, em particular dos interesses dos doentes, é assegurado pela delegação de poderes de regulação profissional, associados a consequentes mecanismos de punição de má prática lesiva do interesse público. As Ordens dos profissionais de saúde são assim um mecanismo de confiança da sociedade na avaliação da conduta praticada interpares, regida por macanismos de transparência e fé pública.
Contudo, no nosso país, e em contraciclo internacional, parece agora surgir uma inovadora abordagem de salvaguarda da concorrência pura centrada apenas no preço como factor determinante de bons cuidados de saúde. De um momento para o outro, a intervenção da Autoridade da Concorrência parece ser a panaceia para todos os problemas da saúde, ultrapassando até todas as entidades e instituições da área da saúde. Parece até que, afinal, o nosso país se prepara para descobrir novas soluções peregrinas que, em muitos outros países foram já definitivamente abandonadas.
É nesta nova agenda que, desde há alguns meses, se têm procurado mecanismos de «diabolização» das Ordens profissionais e, por essa via, exorcizar as ineficiências do nosso sistema de saúde. De facto invoca-se a intervenção das Ordens como lesivas do interesse público que, por lei e constitucionalmente, elas próprias estão obrigadas a defender. Parece assim estar esquecida a fundamentação real da existência de Ordens profissionais: a criação, enquadramento, regulamentação, funções e competências são da exclusiva competência do Estado, estribado na matriz constitucional e leis da República Portuguesa.
Contudo, e logo após esta exacerbação no ataque às profissões da saúde, na tentação de alcançar bode expiatório fácil para as insuficiências estruturais de organização e funcionamento do país, sobreviverão os reais problemas com a continuidade das necessidades de saúde da população a necessitar do empenho e profissionalismo dos profissionais de saúde. É demasiado simplista apelidar as Ordens de «corporações» defensoras de interesses instalados que apenas terão o tenebroso objectivo de usurpar os interesses de consumidores e cidadãos, para ilegítimo favorecimento dos membros que representam. A facilidade e ligeireza destas análises esbarram frontalmente com as necessidades e reclamações mais sentidas pelos cidadãos.
Ao contrário desta deriva nacional, diversos países europeus têm reforçado os mecanismos de regulação profissional, atribuindo às respectivas instituições mais poderes e mais responsabilidades, para salvaguarda da qualidade da saúde e do rigor nos cuidados de saúde prestados. Não se trata de reclamar mais privilégios ou benesses para os profissionais, como muitas vezes se interpreta no nosso país. Pelo contrário, ao colocar mais exigências sobre as entidades de regulação profissional, o Estado exige maiores responsabilidades e maior prestação de contas da actividade dos profissionais de saúde. Aliás, a importância da regulação tem sido expressa nas diversas áreas em que o Estado tem delegado tarefas em entidades especializadas e vocacionadas para tal.
As Ordens dos profissionais de saúde no nosso país têm vindo a colaborar com as diversas instituições promotoras do interesse público e, desse modo, prestado reais contributos em relação à promoção dos cuidados de saúde. São assim exemplos as parcerias mantidas ao nível da formação pré e pós-graduada, o desenvolvimento de boas práticas profissionais, a atribuição de especializações, a promoção do desenvolvimento científico, a aposta na qualidade, entre muitas outras. Em suma, as Ordens dos profissionais de saúde têm contribuído com o seu empenho e exigência para uma elevação da qualidade das respostas da saúde à satisfação das necessidades da população. O que não será certamente uma alternativa é a diluição de responsabilidades e a proliferação de impunidades num quadro desregulamentado em que o doente/cidadão, ou o próprio Estado, não dispõe de mecanismos de promoção de excelência e de sanção de práticas condenáveis.
As Ordens de profissionais de saúde, e em particular os profissionais de saúde, continuam disponíveis para intervir na defesa do interesse público e na promoção intransigente de um exercício profissional capaz de corresponder às necessidades da população portuguesa.
Bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Bastonário da Ordem dos Médicos, Bastonário da Ordem dos Médicos Dentistas, semanário expresso 17.06.06.