domingo, julho 10, 2005

Vacinação, futuro da medicina

Futuro da Medicina continua a passar pelas vacinas

A vacinação foi uma das armas que permitiram aumentar a esperança de vida no século XX, embora nos últimos anos se tenha investido pouco nesta área. A ameaça do bioterrorismo atrai agora as atenções da investigação farmacêutica
A 6 de Julho de 1885, fez esta semana 120 anos, Louis Pasteur experimentou, num rapaz de nove anos, a primeira vacina contra a raiva, salvando-lhe a vida. Nos 120 anos que se seguiram à experiência de Pasteur, as vacinas permitiram erradicar a varíola e contribuíram para um aumento da esperança média de vida. Ainda assim, nas últimas décadas, as empresas farmacêuticas têm-se mantido arredadas das vacinas, porque são bem menos lucrativas que os medicamentos para as doenças crónicas dos ocidentais. Mas a situação começou a alterar-se nos últimos anos, muito por causa da ameaça do bioterrorismo.
A grande contribuição de Pasteur para a ciência foi ter descoberto que a cada doença corresponde um tipo de germe. As minúsculas esferas e tubos que se viam em amostras de tecidos doentes e excreções, desde que tinha sido inventado o microscópio, eram consideradas produto de geração espontânea. Mas Pasteur demonstrou que eram elas que causavam as doenças.
Pasteur ligou a descoberta dos germes ao trabalho de Edward Jenner, que, em 1796, fez as primeiras imunizações contra a varíola. Pasteur pensou que as infecções poderiam ser combatidas se fosse administrada uma dose atenuada do próprio agente infeccioso, para treinar o sistema imunitário. A ideia de Pasteur foi o motor de uma revolução na Medicina no século XX. Permitiu até declarar extinta a varíola, em 1980.
"A vacinação é a intervenção médica mais eficaz dos últimos tempos", defendem investigadores da biofarmacêutica Chiron e da Universidade de Stanford (EUA), na revista Science. Mas as farmacêuticas não têm grande empenho em generalizar as campanhas de vacinação. Na verdade, quando se fala de campanhas globais, fala-se de países em desenvolvimento. E as vacinas contra as doenças infecciosas são muito baratas, custam em geral menos de um euro, e isso não as torna rentáveis.
Para reduzir a transmissibilidade de um agente infeccioso, é preciso imunizar uma determinada proporção da população, que varia consoante as doenças. Assim, para erradicar a varíola, era preciso vacinar 70 a 80 por cento da população. Mas, para imunizar contra o sarampo, é preciso vacinar 90 a 95 por cento das pessoas. E são precisos cerca de 20 anos, cumprindo estas taxas, para a imunização ser mesmo eficaz.
Mas há uma enorme diferença entre o que acontece no mundo rico e ocidental e o que se passa nos países em desenvolvimento. Em África, nos últimos 15 anos, apenas 50 por cento da população é vacinada, o que é insuficiente para proteger a população.

Maior investimento nas doenças dos países desenvolvidos
"O lado negativo da prossecução do lucro é que existe maior investimento na investigação de vacinas para doenças prevalecentes nos países desenvolvidos", frisa Manuel Carmo Gomes, da Comissão Técnica de Vacinação, organismo de aconselhamento da Direcção-Geral de Saúde. Isto explica que nenhuma farmacêutica tenha um programa de larga escala para desenvolver uma vacina da tuberculose ou da malária, apesar de algumas se terem juntado
a consórcios com parceiros públicos para combater estas doenças.
As contas dos economistas provam que os custos da doença são muito mais elevados do que os do desenvolvimento de vacinas. Cada euro gasto com a vacina VASPR (sarampo, papeira e rubéola), ou com a DTP (difteria, tétano e tosse convulsa), ajuda a poupar 16 euros e seis euros, respectivamente, em despesas médicas.
Mas não são precisos argumentos destes para convencer a indústria e o Governo dos Estados Unidos a correr às vacinas quando se fala em bioterrorismo. Em resposta às ameaças bioterroristas após o 11 de Setembro de 2001, os EUA investiram 1,7 mil milhões de dólares, cerca de 1,4 mil milhões de euros, na investigação para o desenvolvimento de vacinas contra agentes patogénicos utilizáveis pelos terroristas. Este valor é mais do que o orçamento total do GAVI, a aliança que coordena o plano de imunização à escala planetária.
Mas em 2003 o mundo teve um bom exemplo de que a investigação nesta área não pode parar. Bastou uma mulher de 78 anos, contaminada com pneumonia atípica (SARS), ter viajado de Hong Kong para Toronto, no Canadá, para, em pouco tempo, morrerem 44 pessoas. O susto mostrou o perigo de uma infecção respiratória letal, para a qual não exista vacina. "As vacinas vieram para ficar, pelo menos para as doenças o agente infeccioso não temos esperança de alguma vez conseguir erradicar, como a gripe", lembra Manuel Carmo Gomes.
Primeira imunização sistemática tem mais de 200 anos
Edward Jenner foi o autor da primeira tentativa científica de controlar uma doença infecciosa - a varíola - através de uma inoculação deliberada. A doença viria a ser erradicada em 1980
A prática de uma técnica denominada variolização, como tentativa de imunização contra a varíola, remonta ao século X. A varíola foi uma das mais devastadoras doenças que a humanidade conheceu: cerca de 30 por cento dos infectados não sobreviviam. Entre os métodos de variolização utilizados na China, pelo ano 1000, estavam a remoção de pele das pústulas provocadas pela doença e a redução destas a pó, que depois era inalado, explica João Feliciano, mestre em doenças transmissíveis, no artigo A vacinação e a sua história, publicado no n.º 2 dos Cadernos da Direcção-Geral da Saúde.
Em 1721 Mary Wortley Montagu, aristocrata casada com o embaixador inglês na Turquia, procurou lançar em Inglaterra o método que tinha visto os turcos usar. "Inoculando o pus de um convalescente com varíola num indivíduo são, comunica-se-lhe uma varíola mais benigna" - é a ideia subjacente, relata Jean-Charles Sournia, em História da Medicina (ed. Instituto Piaget).
Mas se a relação entre a exposição a uma doença e ficar protegido de a contrair no futuro era já registada pelos egípcios, cerca de 3000 a. C., como sublinha João Feliciano, é ao médico inglês Edward Jenner que se atribui "o mérito da vacinação". "Jenner investigou uma crença, comum entre os camponeses, de que os trabalhadores que lidavam com vacas infectadas com cowpox - a varíola da espécie -, e que desenvolviam pústulas semelhantes às dos animais (uma condição benigna conhecida por vaccinia, do latim vacca), não eram contagiados com a varíola", explica no seu site (correio.fc.ul.pt/~mcg/vacinacao/historia/index.html) Manuel Carmo Gomes, da Universidade de Lisboa.
Em 1796, Jenner inoculou um rapaz de oito anos com pus retirado do braço de uma mulher infectada por uma vaca. Mais tarde, o rapaz foi inoculado com o vírus da varíola humana e não desenvolveu a doença. "O trabalho de Jenner, com a vacinação por varíola bovina, é a primeira tentativa científica para controlar uma doença infecciosa através de uma inoculação deliberada e sistemática", sustenta Feliciano.
Em França, no final do século XVIII, escolas e regimentos inteiros são vacinados e as homilias dominicais são dedicadas à vacinação. Em 1956, sob a orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS) e através de esforços conjugados de todos os países, é lançado um programa planetário da vacinação contra a varíola. A erradicação é confirmada em 1980. Este "permanece como o único caso de erradicação global de uma doença infecciosa humana", sublinha Feliciano.
O termo vacinação continuou, no século XIX, a ser utilizado por Louis Pasteur - apesar do seu método ser distinto. "A vacinação de Jenner consiste em injectar no homem o vírus de uma doença próxima da varíola, enquanto a vacinação de Pasteur utiliza o próprio germe da doença que se pretende prevenir, depois de atenuada a sua virulência", explica Sournia. A 6 de Julho de 1885, Pasteur vacinou um jovem pastor mordido por um cão raivoso e passou a ser recordado por ter descoberto a vacina da raiva.

Poliomielite falha erradicação
Nos décadas que se seguiram, os progressos foram enormes. Em 1974 foi criado o Programa Alargado de Vacinação, que incluía, por exemplo, as vacinas da tuberculose, poliomielite e sarampo. Objectivo: uma cobertura total das populações e grupos etários vulneráveis de todo o mundo - uma meta que ainda não foi cumprida.
A poliomielite é o próximo alvo da OMS. O prazo para eliminar esta doença, estabelecido em 1988, terminava no final de 2005. Em 88 existiam 350 mil casos em todos os continentes. Hoje são conhecidos 1255, confinados à África central, Índia e países limítrofes. Mas há casos recentes em Angola, Etiópia, Iémen e na Indonésia, onde a doença já não estava presente há anos, e que obrigam a repensar a eficácia das campanhas de vacinação. Em Outubro, vai ser reavaliada a data prevista de erradicação. Esta doença viral invade o sistema nervoso e pode paralisar uma criança
em horas. Cerca de dez por cento dos casos são mortais e uma em 200 crianças fica com lesões graves. com Ana Machado
Programa Nacional vacinou sete milhões de crianças
Se o Programa Nacional de Vacinação (PNV) contemplasse apenas quatro doenças - poliomielite, difteria, tosse convulsa e tétano - tinha-se poupado ao país 5154 mortes e 39.707 casos destas patologias, indicam dados comparativos no última década anterior ao início do PNV (1956-1965) com o último decénio do século XX (1991-2000). As primeiras experiências de vacinação começaram em Portugal ainda no século XVIII, havendo referência a inoculações contra a varíola em 1793. Mas a administração universal e gratuita de vacinas apenas começou em 1965 e o verdadeiro impacte na saúde dos portugueses começou a sentir-se a partir de então, refere a Avaliação do Programa Nacional de Vacinação. No início as verbas do PNV vinham da Direcção-Geral de Saúde (DGS), mas também da Fundação Calouste Gulbenkian e de outros mecenas. Quarenta anos depois, mais de sete milhões de crianças e vários milhões de adultos foram vacinados e as dez doenças incluídas no PNV são consideradas "controladas ou eliminados do país". São dez as patologias incluídas: difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite, tuberculose, sarampo, papeira, rubéola, hepatite B e infecções por Haemophilus influenzae tipo b (que provoca, por exemplo, a meningite). Em 2006 a lista passará a incluir a meningite C que registou 200 casos em 2000 e 86 em 2003, uma descida que Graça Freitas entende ser o reflexo do facto de o Estado comparticipar a vacina em 40 por cento. A campanha de vacinação arrancou em Portugal com a poliomielite e "foi um sucesso estrondoso. Num ano, a doença desapareceu", refere a responsável pelo Departamento de Doenças Transmissíveis da DGS, Graça Freitas. Hoje, a Direcção-Geral de Saúde (DGS) estima uma proporção de vacinados muito elevada, atingindo valores da ordem dos 95 por cento ou mais para cada vacina. A varíola foi erradicada em 1980, a poliomielite está em vias de o ser e o sarampo também pode vir a ser extinto, lê-se no mesmo documento. Mas houve alguns insucessos pelo caminho que se manifestaram sob a forma de surtos, nomeadamente de poliomielite (1972), de difteria (1976), de sarampo (1989 e 1994) e de papeira (1996/1997). Em 2004 registam-se apenas 380 casos de doenças que podiam ser evitadas pela vacinação gratuita, mas há ainda "assimetrias e bolsas da população" com susceptibilidade à doença, acrescenta a responsável. C.G.
Vacinas para os próximos anos
Vacinas que tardam

Rotavírus
Todos os anos morrem 1,9 milhões de crianças com menos de cinco anos devido a diarreias agudas. Os rotavírus são responsáveis por cerca de um quarto destas mortes, a maioria das quais nos países em desenvolvimento. Há várias vacinas em estudo, mas duas estão mais avançadas: uma já está homologada no México, República Dominicana e Kuwait e está na última fase do processo de ensaios clínicos em humanos noutros países. A outra está também em vias de concluir essa fase nos EUA e na Europa. Em 2006 deverá haver mais países a aplicar estas vacinas. A disseminação de programas de imunização na Ásia e na África poderá acontecer em 2009.
Vírus Papiloma Humano (HPV)
É a causa mais frequente do cancro do colo do útero, que mata cerca de 250 mil mulheres no mundo anualmente. Duas vacinas, administradas em três doses, estão na última fase de testes e deverão ser licenciadas na Europa e nos EUA dentro de um a dois anos. Estas vacinas não vão cobrir alguns tipos de HPV responsáveis por 30 por cento dos cancros do colo do útero. A forma de introdução destas vacinas está em debate, porque pode encontrar alguma oposição. É que o vírus HPV transmite-se por via sexual e, para as vacinas serem eficazes, devem ser tomadas por raparigas jovens, antes de iniciarem actividade sexual, o que cria resistências em alguns pais.

Doenças pneumocócicas
Dois milhões de crianças morrem por ano devido a infecções respiratórias, grande parte das quais imputáveis a um tipo de bactérias, os pneumococos. Há uma vacina licenciada nos Estados Unidos e em vários outros países (incluindo Portugal), mas que não cobre dois serotipos responsáveis por uma elevada percentagem de doenças nos países em desenvolvimento. O mesmo laboratório já desenvolveu e avaliou em alguns países africanos uma vacina que cubra esses serotipos, prevendo-se que peça a homologação nos próximos meses. Uma vacina eficaz para as crianças dos países em desenvolvimento deverá estar prestes a ser usada em 2008-2009.
HIV
Há vários ensaios clínicos de vacinas experimentais contra o HIV em fase de conclusão. Já foram feitos cerca de 50 ensaios desde 1987, mas os resultados têm sido pouco motivadores. Continuam-se a fazer avanços na compreensão da forma de actuar do vírus, mas não se consegue desencadear uma resposta do sistema imunitário que o elimine. No entanto, foi possível desenvolver vacinas que protegem macacos sobre a versão dos símios do HIV, e algumas pessoas têm uma misteriosa imunidade contra o vírus. Entrentanto, continuam a ser infectadas todos os dias cerca de 14 mil pessoas.
Tuberculose
A vacina Bacille Calmette-Guérin, a famosa BCG, é ainda a única disponível contra a tuberculose, mas estima-se que evite apenas cinco por cento de todas as mortes potencialmente evitáveis com recurso à vacinação. E todos os anos morrem pelo menos dois milhões de pessoas devido à doença. Um terço da população do planeta (1.860.000 pessoas) está infectada com a bactéria Mycobacterium tuberculosis e uma parte significativa dos casos que surgem deve-se à reactivação destas infecções latentes. Hoje, há quatro novas vacinas em ensaios clínicos, e uma equipa britânica estuda a possibilidade de usar a BCG em combinação com outras, para obter uma melhor protecção.
Malária
Mata por ano cerca de 1,1 milhões de pessoas em todo o mundo, uma grande parte crianças de países africanos. Há várias vacinas em diferentes estádios de desenvolvimento, mas o agente infeccioso neste caso é um parasita, que é mais complicado do que um vírus ou bactéria. Há várias iniciativas de cooperação internacional para tentar desenvolver uma vacina eficaz, um objectivo que até agora sempre escapou, e a Fundação Bill & Melinda Gates tem sido uma grande financiadora destes esforços. Mas há uma vacina que está a ser testada em Moçambique que deu bons resultados em crianças.
1,4 milhões de mortes evitáveis
A OMS estima que em 2002 a vacinação de rotina poderia ter evitado a morte de 1,4 milhões de crianças com menos de cinco anos, 14 por cento do total da mortalidade infantil nesta faixa etária. O sarampo foi responsável por 38 por cento destas vítimas, as infecções por Haemophilus influeanzae tipo b (responsável, por exemplo, pela meningite) tiraram a vida a 27 por cento destas crianças, 20 por cento morreram por tosse convulsa, 14 por cento devido a tétano (incluindo o neonatal).
Visto o problema pelo ângulo oposto, contas feitas para 2003, a OMS estima que a imunização poupou a vida a mais de dois milhões de pessoas, assim como a cerca de 600 mil pessoas que poderiam ter perdido a vida por doenças relacionadas com a hepatite B, como a cirrose e o cancro, que podiam ter ocorrido na vida adulta se não tivessem sido vacinadas contra a doença.
Dossier do Jornal Público 10.07.05