segunda-feira, abril 10, 2006

A visita ao hospital

Uma visita ao Dona Estefânia permitiu a Cavaco ter a seu lado, no primeiro acto público, um dos mais reformistas ministros deste Governo. Não deve ter sido por acaso
Um mês depois de ter tomado posse, Cavaco Silva teve ontem a sua primeira acção pública. Aparentemente inócua: deslocou-se ao Hospital Dona Estefânia, visitou alguns serviços, conversou com doentes e médicos, trocou breves impressões com o ministro da Saúde e recordou que tinha ali passado muitas horas à cabeceira de um familiar.
Será isto que se espera do Presidente? Ou será que a escolha de um hospital para a sua primeira saída pública tem um significado especial? Será apenas porque prometeu dar atenção à situação das crianças?
O primeiro mês em Belém (tal como toda a campanha eleitoral) mostraram que Cavaco raramente toma decisões por acaso ou que não tenham um significado. Ora, se esta visita não foi escolhida por acaso, o que é que a motivou?
Provavelmente enviar alguns sinais, se bem que subtis. O primeiro foi ter realizado a visita acompanhado por um dos ministros decididamente mais reformadores deste Governo, e por isso mesmo um daqueles que estão sob o fogo quase constante dos mais variados interesses (ainda ontem, por causa do encerramento de uma maternidade, houve mais uma manifestação): Correia de Campos. O segundo foi ter escolhido uma área polémica, a da saúde, e ter-se recusado a fazer qualquer comentário público reafirmando o que disse na campanha e o que disse no discurso de posse, isto é, que diria sempre primeiro ao Governo o que tivesse a dizer. O recado foi directo para quem ainda esperasse que de Belém surgissem declarações sobre intenções do Executivo, em particular as que até envolvem o Dona Estefânia. O terceiro foi ter escolhido um dos bons hospitais públicos, que disse conhecer como utente e cujo trabalho elogiou: num país onde se está sempre a criticar os serviços públicos, a mensagem não podia ser mais clara. Tanto mais que o Dona Estefânia é realmente um caso de sucesso, tendo recebido o ano passado um prémio pelo trabalho da sua Comissão de Humanização e Qualidade e estabelecido uma parceria com uma associação privada com sede nos EUA para construir quartos capazes de acolher as famílias de crianças internadas com menos recursos económicos.
Se olharmos por este prisma para a escolha de Cavaco Silva podemos começar a perceber melhor o sentido concreto da prometida "cooperação estratégica". Uma cooperação que não se manifesta num apoio cego, antes tem uma face menos visível (as reuniões semanais com o primeiro-ministro, que têm sido longas mas das quais nada tem transpirado, o que é muito significativo) e na escolha de iniciativas que, mesmo que subliminarmente, indicam um caminho. Como a visita de ontem.
Nos próximos tempos o Presidente terá algumas intervenções públicas, por tradição marcantes como a das cerimónias do 25 de Abril. Terão de ser intervenções diferentes, intervenções próprias daquilo que ontem designou como "uma nova fase", possível até porque, como também referiu, "sabe hoje muito mais do que há um mês".
O estudo que hoje publicamos mostra que Cavaco foi eleito porque fez quase o pleno do centro-direita e da direita e porque recolheu as preferências de muitos eleitores que se situam no centro e no centro-esquerda. Contudo, a sua eleição ainda amarga a largos sectores do eleitorado, os que sempre viram Belém como pertença de alguém saído da esquerda por o país ser "sociologicamente de esquerda". Mais do que tentar conquistá-los, a isso comprometendo outras prioridades, o Presidente deve actuar de acordo com o que prometeu, o que implica o tal "remar para o mesmo lado" em conjunto com o Governo, vigiando-o e moderando-o, mas também apoiando-o quando enfrenta os problemas habituais quando se procura mudar alguma coisa em Portugal. Incluindo problemas como o que hoje faz a nossa manchete.
JMF, JP. 10.04.04