Zeca Afonso
1. - José Afonso: De Coimbra até ao Sul
Manuel Alegre
A voz que guardo dentro de mim não está gravada em nenhum disco: anda a cantar «contos velhinhos de amor, numa noite branca e fria», algures, em Coimbra.
Foi assim que conheci José Afonso, num Inverno de há muitos anos. Ainda se faziam serenatas, as raparigas agradeciam acendendo e apagando a luz três vezes e nós viajávamos pela noite dentro, «bêbados de coisas inextricáveis», como escrevia então Herberto Helder. Já a voz do José Afonso anunciava outras trovas, mas naquele tempo a Académica era ainda (foi-o sempre) a nossa dama, por ela sofríamos aos domingos no Calhabé ou nos campos do País onde chegávamos à boleia, de capa e moca, e sem um tostão no bolso. Até que um dia o Zeca resolveu partir para Marrocos. Conseguimos apanhá-lo a tempo, graças a uns ciganos nossos amigos. Mas a tentação do Sul já estava dentro dele. Ou talvez daquele azul de que fala Mallarmé e que era, de certo modo, a cor da sua voz. Ele era como a cigarra e precisava do espaço do Verão, Alentejo, Algarve, a planície, as areias e o mar. É preciso dizer que nessa altura já ele era distraído (nós dizíamos despistado). Uma noite estava a jantar em minha casa e de repente deu um salto na cadeira: onde é que deixei o meu filho? E lá fomos à procura. Mas o miúdo, habituado aos despistanços do pai, tinha ido tranquilamente do estádio para casa.
Tínhamos então grandes discussões. Eu já andava na militância política, o Zeca era, havia de ser sempre, um libertário em estado quase puro. Ainda se debatia a questão da arte e do empenhamento social e político do artista.
Teoricamente o Zeca era contra, mas as coisas foram mudando e quase sem darmos por isso todos nos fomos comprometendo cada vez mais. Foi primeiro o Decreto 40 900, contra a autonomia das associações e a resposta estudantil, com uma grande manifestação em Coimbra. E depois 1958, o general Delgado e aquele vendaval que varreu o País de lés a lés. Então o Zeca quis pegar em armas. Mas como?
Tivemos que recorrer às que tínhamos à mão: a poesia, a guitarra, o canto. A guitarra do António Portugal tornou-se de repente mais nervosa, experimentando novos ritmos e dissonâncias, e o Zeca aparece a trautear melodias estranhas. Até que saiu a «Balada do Outono». Foi uma iluminação. Assim como alguns poemas aparecem feitos, também aquela balada dava a impressão de ter estado sempre ali e de ter sido colhida no ar num dos momentos de distracção concentrada do Zeca. A canção de Coimbra não voltaria a ser a mesma, a música ligeira portuguesa também não. Aquela balada era nova e ao mesmo tempo muito antiga. Tudo estava nela: a tradição trovadoresca, os cantares de amigo, os romances populares. E também o espírito de um tempo de mudança.
Entretanto o Zeca partia para o Sul. E eu para Angola. Reencontrámo-nos no início de 1964, numa festa de recepção aos caloiros da Faculdade de Medicina no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tinha eu acabado de regressar da prisão em Angola, estava com residência fixa em Coimbra, mas vim sem pedir licença.
Trazíamos a «Trova do Vento Que Passa». Cantou-a primeiro o Adriano, a seguir o Zeca, depois ambos. E acabámos em coro, na rua. Era assim, naquele tempo. As trovas e baladas tinham o ritmo da nossa inquietação, de uma luta, da nossa vida. E vieram o «Menino do Bairro Negro», «Os Vampiros», «O Coro dos Caídos». O Sul entraria na música do Zeca com o seu «Pastor de Bensafrim», o seu «Sol de Verão», Catarina, o Alentejo, a cigarra, o silêncio, o grande espaço, a sombra de uma azinheira e o calor da fraternidade. E depois a África, seus ritmos e seus tambores, na fase da maturidade. Vieram os exílios, as longas separações, as pequenas e grandes batalhas, o 25 de Abril, encontros, desencontros, reencontros. E a voz do Zeca sempre, a avisar e animar a malta.
Como os provençais da época de oiro, cuja lição Ezra Pound tão bem captou, José Afonso foi um grande trovador moderno, ligando de novo a poesia e a música. Desse modo renovou uma e outra e contribuiu para mudar a própria vida, como queria Rimbaud.
Foi um homem fraterno, despojado, por vezes até ao exagero. Mas era assim: um revolucionário franciscano, como lhe chamei, irritado por vezes com o seu desprendimento de tudo e de si mesmo. Talvez as sociedades não consigam suportar a força subversiva de um tal despojamento. Por isso o Zeca foi tantas vezes censurado. Por isso continua simultaneamente a encantar e a incomodar. Eu sei que gostariam de transformá-lo em álibi ou torná-lo inofensivo depois de morto. Mas não é possível. A sua voz está tão cheia de ternura que será irremediavelmente subversiva.
Como disse António Portugal: «Um homem cuja voz foi a nossa voz durante muitos anos e que ajudou a tomar possível o nosso encontro colectivo com uma identidade perdida e com um destino que hoje orgulhosamente assumimos.»
Talvez seja isso o que uns tantos não conseguem perdoar-lhe. Mas é com certeza por isso que ele continua a ser a nossa voz.
2. - Ensaios na «Brasileira»
Rui Pato
Conheci o Zeca nos meus 16 anos, tinha ele 33, já licenciado em Letras, a leccionar em Mangualde, mas aproveitando todas as folgas para vir a Coimbra, ansioso por mostrar aos amigos as suas últimas baladas.
Até essa altura, a sua actividade musical tinha sido, na década de 50 e princípio da de 60, a de um estudante com boa voz, que cantava no Orfeão e que, juntamente com o Rolim, Machado Soares, Goes, Levy Baptista, Lopes de Almeida, Portugal, Brojo e outros, se agrupavam para executar fados e guitarradas, actuando quer em espectáculos do Orfeão, quer em espectáculos da Tuna, quer em serenatas e, de vez em quando, para a gravação de um disco de fados.
Eu ouvi o seu nome, as primeiras vezes, ao meu pai que, como jornalista em Coimbra, fazia questão de viver intensamente a vida coimbrã, saltitando das tertúlias futrico-intelectuais para as académicas. E nestas últimas pontificava o Zeca, como o seu bom humor, com as suas permanentes distracções e com uma irreverência intelectual a que chamavam de «existencialista». Mais tarde, já com os meus 12 anos, ao tentar a minha sorte como aprendiz de fadista, acompanhando à viola rapazes da minha idade em guitarradas e fados, o nome do Zeca vinha à baila, a propósito dos fados que ele cantava como ninguém (os «Contos Velhinhos», «Aquela Moça da Aldeia», etc, etc.) e que nós tentávamos imitar no seu jeito de voz «caprina», como dizia o Menano. Mas em 1962, ano tumultuado em Coimbra, com a Academia envolvida numa das mais violentas crises estudantis, o Zeca, já cansado com aquilo a que chamou a «quinquilharia passadista do velho romantismo do Penedo», sempre que podia, vinha a Coimbra para sentir esse fervilhar das novas gerações.
Começa assim a sua fase de ruptura com aquilo que mais o tinha ligado até então à cidade, «o tanger dos bordões da viola, as casas de prego, as bicas nos cafés da Baixa e as arengas dos teóricos da bola».
Possuía, além disso, um profundo conhecimento do grave problema colonial, porque, além de ter em Moçambique muita família, fez algumas digressões com a Tuna e com o Orfeão às colónias. Era, também, um tempo de separação dolorosa com a mulher que lhe tinha dado os seus primeiros dois filhos.
É neste contexto de viragem, caldeada com muita angústia, que conheço o Zeca. A sua mudança deveu-se, no meu entender, ao seu amadurecimento intelectual, às profundas marcas deixadas pela desilusão afectiva, às mudanças do ambiente coimbrão, à desilusão dos primeiros anos de docência, às notícias de África e, muito principalmente, ao contacto com novos amigos como o Barahona, a Luísa Neto Jorge, o Luís Andrade, o Bronze, o Pité e tantos outros.
Ele vinha de Mangualde a Coimbra para mostrar aos amigos um outro tipo de música, sem o «espartilho da Guitarra de Coimbra» [com letra maiúscula no original], com uma grande liberdade rítmica e que necessitava apenas de uns leves acordes de viola para sublinhar o poema que era o mais importante da canção.
Assim nasce «Menino de Oiro», «Tenho Barcos, Tenho Remos», «Os Vampiros», «O Senhor Poeta», etc., ensaios muitas vezes feitos no segundo andar do Café Brasileira, ou em minha casa ou em qualquer República onde ele tinha o estatuto de «livre trânsito» quando vinha a Coimbra e necessitava de dormir.
Conseguiram-se os dois primeiros EP que tanto escândalo provocaram nos meus «amigos do fado». Foi considerado uma afronta à tradição. Mas os meios intelectuais e os meios operários de esquerda logo nos aproveitaram para saraus mais ou menos clandestinos. Zeca vai tentando o ensino, saltitando, depois de Mangualde para Aljustrel, Lagos, Faro, Alcobaça e de novo Faro.
Os ensaios eram poucos, feitos quase sempre nas férias. Foi a minha primeira oportunidade de conhecer o Algarve: em 1963, fiquei uma semana na sua casa, no n.º 68 da Rua Duarte Pacheco, em Faro. Partíamos de manhã com destino à ilha do Farol ou da Armona, de barco com a viola e uma ração de duas sanduíches e duas meloas. Quando eu não podia ir ter com ele, vinha ele a Coimbra à boleia ou então apanhava o comboio até à estação para a qual o pouco dinheiro que dispunha dava - «venda-me um bilhete de 60 escudos em segunda classe em direcção ao norte» -, fazendo o resto à boleia ou a pé e cá chegava cheio de fome, sem um tostão no bolso, e com um bornal com uma muda de roupa, alguns medicamentos e muitos livros.
Negociávamos, na altura, um contrato com a Rapsódia, que lhe desse alguma estabilidade económica. O Zeca pretendia quatro contos por mês e cinco por cento na percentagem das vendas. Mas partiu em Agosto de 1964 para África, sem conseguir esse «fabuloso contrato», mas feliz com o seu recente casamento com a Zélia. São dois anos em que semanalmente escreve para minha casa, com o remetente «caixa postal n.º 50-Beira», cartas repletas das suas próprias contradições, da sua instabilidade, mas cheias de notícias dessa África em ebulição. Terminavam sempre com o envio de abraços para o Serrano, Abílio, Rui Mendes e para toda a malta.
«Quero aí chegar a tempo de mandar rufar os tambores que para o efeito tenho ensaiados e ouvir o coro que ressuscitará o Lázaro do seu túmulo», escrevia ele em Março de 1965. E veio, pois em 1967 acabou por ser expulso de Moçambique por vários problemas com a administração colonial.
Volta e vai para Setúbal. Manda-me cassetes com as últimas músicas. Vou até Setúbal, de vez em quando, ficando aboletado na casa dele, na Quinta do Montalvão, lote 5-2.º esquerdo, com a Zélia e já com a sua terceira filha, a Joana, muito pequenita.
Mais dois LP e muitos espectáculos - Almada, Barreiro, Seixal, Vila Franca, Marinha Grande, etc., sempre casas cheias de gente de oposição ao regime da altura, muitos operários e estudantes, a PIDE a pairar e, por vezes, a intervir.
Entretanto, junta-se a nós o Adriano, o Manuel Freire, o Fanhais e outros que não me recordo. É bastante difícil avaliar o impacte que o contacto com figuras como o Zeca, o Adriano, o António Portugal, entre os 16 e os 20 e poucos anos, tem na formação da personalidade de um adolescente. Nessa altura, eu não tinha a noção da dimensão humana e intelectual desses amigos. O meu desgosto é ter tido uma fortuna enorme em ter amigos desse quilate e, na altura, sem a noção desse valor, não ter agarrado cada momento, deixando até, por vezes, que a memória me falhe e tantos momentos bonitos e ricos se percam.
A partir de 1968, devido à minha situação académica e à impossibilidade de o acompanhar ao estrangeiro para as gravações, deixo de ser o acompanhante habitual. Felizmente para o Zeca, pois assim conhece o Iglésias e o Bóris (Carlos Correia) que tocavam bastante melhor do que eu. Passo a vê-lo menos vezes, mas sempre que posso estou com ele para o acompanhar ou só para o ouvir. A última vez que pego numa viola ao seu lado e a seu pedido, foi no célebre espectáculo do Coliseu, pouco antes da sua morte.
3. - «Grândola» Gravada às 3 da Manhã
Carlos Correia (Bóris)
Quando, naquela manhã de Abril de 1970, entrei no avião com destino a Londres, para gravar com o Zeca nos estádios da Pye, apenas sabia trautear alguns dos temas que, no conjunto, formariam o álbum intitulado Traz Outro Amigo Também.
De facto, a minha inclusão naquele trabalho tinha sido decidida poucos dias antes e por razões (como era hábito) um pouco fortuitas. O meu passado musical, muito mais ligado à guitarra eléctrica e ao rock (exercido em conjuntos «à Shadow» ou «à Beatle» como foram os HI-FI e os Álamos), tinha apenas uma única experiência na arca da MPP (Música Popular Portuguesa!) com o disco que tinha gravado com o Duarte e Ciríaco.
Assim, apesar de pouco credenciado para a tarefa, entrei facilmente nos temas e, recordo claramente, nunca receei falhar na sua execução em estúdio. Sei agora que esta confiança derivava directamente da universalidade da música do Zeca.
Acontecia-me afinal o que acontece quando contactamos com uma obra tão consistente como a do Zeca: parece-nos que já a conhecíamos há muito tempo e que, mais do que isso, ela já estava dentro de nós. Foi sempre assim com a música dele. Quando ele a expunha pela primeiríssima vez (às vezes ao telefone e a desoras) vinha a sensação inevitável de «eu já senti isto». E já. Só que o Zeca sabia traduzir tudo isso para um formato exteriormente inteligível.
À partida do aeroporto, a primeira surpresa: o Luís Filipe Colaço (homem da rádio, companheiro de Coimbra e ex-guitarrista dos Álamos), já dentro do avião, é chamado pelo comandante, mandado sair e retido em Lisboa pela DGS por dois ou três dias. Conseguiu juntar-se a nós em Londres, mais tarde, recorrendo sei lá a que expedientes para convencer os zelosos Pides da inocuidade da sua viagem.
À chegada, a segunda surpresa. A guitarra que, muito profissionalmente, levava sob o assento e sem caixa protectora, apresentava uma rachadela monumental que a tomava, para sempre, inútil.
Só os bons ofícios dos amigos que o Zeca tinha em Londres (o Zeca tinha amigos em toda a parte) permitiram arranjar uma guitarra decente para a gravação.
As sessões no estúdio começaram com o «Maria Faia» e com a delícia de trabalhar com uma máquina de 4 (quatro!) pistas. A abundância de meios técnicos, superiores aos que conhecíamos, foi inspiradora. Pude sobrepor várias faixas de guitarra, obtendo efeitos orquestrais que, na época, pareciam interessantes.
As onze faixas foram gravadas sem sacrifício em várias sessões diurnas, ao longo de duas semanas ponteadas por passeios pela grande capital que parecia, então, tão diferente do nosso meio natal.
Nos corredores alcatifados do hotel, o Zeca colocava a sua energia em demonstrações amigáveis de judo (modalidade que abraçara recentemente).
Dos muitos amigos que apareciam no estúdio para ver o grande autor-intérprete, como já era reconhecido, recordo o brasileiro tropicalista Gilberto Gil, exilado pela ditadura. Esteve presente na gravação de «Verdes São os Campos» e a introdução de guitarra - inventada na hora - teve a sua aprovação.
Terminado o trabalho e quando, já em Portugal, recebemos um exemplar do disco para avaliação, o Zeca reprovou-o por não gostar da mistura e deu instruções para esta ser feita de maneira diferente. Se havia (e havia) zonas em que o Zeca não fazia concessões, uma era de certeza a que dizia respeito ao ambiente musical das suas canções, especialmente se eram para colocar em disco.
Nos dois discos que gravei com ele, testemunhei esse perfeccionismo, inesperado num homem tão simples e que não era, de modo nenhum, um instrumentista, nem um conhecedor das subtilezas técnicas dos estúdios de gravação. Nem precisava ser.
Ainda conservo o protótipo rejeitado (um vinil). A venda do disco, editado pela Arnaldo Trindade, decorrera como era costume: um ou dois dias nas montras das lojas e, depois da proibição pela censura, clandestinamente e ao mesmo ritmo. Ficámos, provavelmente, a dever ao Sr. Arnaldo Trindade a edição de autores como o Zeca e o Adriano, em condições comercialmente tão adversas.
No ano seguinte - em Outubro/Novembro a minha segunda experiência discográfica com o Zeca. Aqui, já ele tinha ouvido as duas vozes portuguesas no exílio em Paris que traziam os sons novos que ele constantemente procurava. O José Mário Branco foi incumbido da direcção musical desse novo disco que viria a chamar-se Cantigas do Maio.
Foi ele que enquadrou o Zeca num ambiente de trabalho bem estruturado e com o tacto humano adequado a não fazer o Zeca sentir-se engaiolado e artisticamente diminuído.
A gravação decorreu num castelo-estúdio dos arredores de Paris e teve a colaboração (bem audível em algumas faixas) do Francisco Fanhais.
A direcção musical e a presença humana do Zé Mário Branco revelaram-se fundamentais para o bom sucesso do trabalho. O seu conhecimento do meio musical parisiense conseguiu trazer ao estúdio músicos de primeira categoria -como é o caso do percussionista Michel Delaport, com os seus sons indianos tão bem aproveitados no «Senhor Arcanjo».
Foi aí que gravámos (em sessões, desta vez, nocturnas) o «Grândola» com o som dos passos obtido no exterior do castelo às três da manhã.
A mistura final foi feita no estúdio e desta vez (abençoado Zé Mário) não foi rejeitada.
Foi o meu segundo e último disco com o Zeca. A minha vida profissional afastou-me irremediavelmente do meio e só volto a vê-lo, anos mais tarde, no quarto de urna clínica em Coimbra. Já estava ferido de morte pela doença, mas pensava ainda em mais canções e tinha esperança.
4. - Traz Outro Amigo Também
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte
todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também
5. - Biografia de Zeca Afonso
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro, filho de José Nepomuceno Afonso, juiz, e de Maria das Dores.
Em 1930 os pais foram para Angola, onde o pai tinha sido colocado como delegado do Procurador da República em Silva Porto. José Afonso permanece em Aveiro, na casa da Fonte das Cinco Bicas, por razões de saúde, confiado à tia Gigé e ao tio Xico, um «republicano anticlerical e anti-sidonista».
Por insistência da mãe, em 1933 Zeca segue para Angola, com três anos e meio, no vapor Mouzinho, acompanhado por um tio advogado em lua-de-mel. Um missionário é a companhia de José Afonso que permanece três anos em Angola, onde inicia os estudos da instrução primária.
Em 1936 regressa a Aveiro, para casa de umas tias pelo lado materno.
Parte em 1937 para Moçambique ao encontro dos pais, com quem vive juntamente com os irmãos João e Mariazinha.
Regressa a Portugal, em 1938, desta vez para casa do tio Filomeno, presidente da Câmara Municipal de Belmonte. Aqui conclui a quarta classe. O tio, salazarista convicto, fá-lo envergar a farda da Mocidade Portuguesa.
Vai para Coimbra em 1940 para prosseguir os estudos. É matriculado no Liceu D. João III e instala-se em casa da tia Avrilete. No liceu conhece António Portugal e Luiz Goes. A família parte de Moçambique para Timor, onde o pai vai exercer as funções de juiz. Mariazinha vai com eles, enquanto seu irmão João vem para Portugal. Com a ocupação de Timor pelos Japoneses, José Afonso fica sem notícias dos pais durante três anos, até ao final da II Guerra Mundial, em 1945.
Nesse mesmo ano começa a cantar serenatas como «bicho», designação da praxe de Coimbra para os estudantes liceais (José Afonso andava no 5.º ano do liceu). Era conhecido como «bicho-cantor», o que lhe permitia não ser «rapado» pelas «trupes». Vida de boémia e fados tradicionais de Coimbra.
De 1946 a 1948 completa o curso dos liceus, após dois chumbos. Conhece Maria Amália de Oliveira, uma costureira de origem humilde, com quem vem a casar em segredo, por oposição dos pais. Faz viagens com o Orfeão e com a Tuna Académica. Joga futebol na Associação Académica de Coimbra.
Em 1949 inscreve-se no primeiro ano do curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras. Vai a Angola e Moçambique integrado numa comitiva do Orfeão Académico da Universidade de Coimbra.
Em Janeiro de 1953 nasce-lhe o primeiro filho, José Manuel. Dá explicações e faz revisão no Diário de Coimbra. São editados os seus primeiros discos. Trata-se de dois discos de 78 rotações com fados de Coimbra, editados pela Alvorada, dos quais não existem hoje exemplares. Os dois discos foram gravados no Emissor Regional de Coimbra da Emissora Nacional.
De 1953 a 1955 cumpre, em Mafra, serviço militar obrigatório. Foi mobilizado para Macau, mas livrou-se por motivos de saúde. Depois é colocado num quartel em Coimbra. Tem grandes dificuldades económicas para sustentar a família, como refere em carta enviada aos pais em Moçambique. A crise conjugal é muito sentida. Após o serviço militar, já com dois filhos, José Manuel e Helena (nascida em 1954), conclui em 1963 o curso na Faculdade de Letras de Coimbra com 11 valores com uma tese sobre Jean-Paul Sartre: «Implicações substancialistas na filosofia sartriana».
Vai dar aulas num colégio privado em Mangualde em 1955/56. Inicia-se o processo de separação e posterior divórcio de Amália (1 de Junho de 1963). José Afonso manterá uma névoa de silêncio em redor desta sua experiência conjugal.
Em 1956 é editado o seu primeiro EP, intitulado Fados de Coimbra.
Em 1956/57 é professor em Aljustrel e em Lagos.
Por dificuldades económicas, em 1958 envia os dois filhos para Moçambique, para junto dos avós. Neste ano fica impressionado com a campanha eleitoral de Humberto Delgado. Digressão de um mês em Angola da Tuna Académica. José Afonso é o vocalista do Conjunto Ligeiro. «Actuámos vestidos com umas largas blusas de cetim, cada uma de sua cor, imitando a orquestra de "mambos" de Perez Prado, o máximo da altura», conta José Niza.
Em 1959 começa a frequentar colectividades e a cantar regularmente em meios populares.
Em 1960 é editado o quarto disco de José Afonso. Trata-se de um EP para a Rapsódia, intitulado Balada do Outono.
De 1961 a 1962 segue atentamente a crise estudantil deste último ano. Convive em Faro com Luiza Neto Jorge, António Barahona, António Ramos Rosa e Pité e namora com Zélia, natural da Fuzeta, que será a sua segunda mulher.
Em 1962 é editado o álbum Coimbra Orfeon of Portugal, pela Monitor, dos Estados Unidos, com «Minha Mãe» e «Balada Aleixo», onde José Afonso rompe definitivamente com o acompanhamento das guitarras. Nestas duas baladas é acompanhado exclusivamente à viola por José Niza e Durval Moreirinhas.
Realiza digressões pela Suíça, Alemanha e Suécia, integrado num grupo de fados e guitarras, na companhia de Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Jorge Godinho, Durval Moreirinhas e ainda da fadista lisboeta Esmeralda Amoedo.
Em 1963 é editado outro EP de Baladas de Coimbra.
Em Maio de 1964, José Afonso actua na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde se inspira para fazer a canção «Grândola, Vila Morena», que viria a ser no dia 25 de Abril de 1974 a senha do Movimento das Forças Armadas (MFA) para o derrube do regime ditatorial.
Nesse mesmo ano é editado o EP Cantares de José Afonso, o único para a Valentim de Carvalho.
Também em 1964 é editado, pela Ofir, o álbum Baladas e Canções, que virá a ser reeditado em CD pela EMI em 1997.
De 1964 a 1967, José Afonso encontra-se em Lourenço Marques com Zélia, onde reencontra os seus dois filho. Nos últimos dois anos, dá aulas na Beira. Aqui musicou Brecht na peça A Excepção e a Regra. Em Moçambique nasce a sua filha Joana (1965).
Em 1967 regressa a Lisboa esgotado pelo sistema colonial. Deixa o filho mais velho, José Manuel, confiado aos avós em Moçambique. Colocado como professor em Setúbal, sofre uma grave crise de saúde que o leva a ser internado durante 20 dias na Casa de Saúde de Belas. Quando sai da clínica, tinha sido expulso do ensino oficial. É publicado o livro Cantares de José Afonso, pela Nova Realidade. O PCP convida-o a aderir ao partido, mas José Afonso recusa invocando a sua condição de classe. Assina contrato discográfico com a Orfeu, para quem grava mais de 70 por cento da sua obra.
Expulso do ensino, em 1968 dedica-se a dar explicações e a cantar com mais assiduidade nas colectividades da Margem Sul, onde é nítida a influência do PCP. Pelo Natal, edita o álbum Cantares do Andarilho, com Rui Pato, primeiro disco para a Orfeu. O contrato é sui generis: contra o pagamento de uma mensalidade (15 contos), José Afonso é obrigado a gravar um álbum por ano.
Em 1969 a Primavera marcelista abre perspectivas de organização ao movimento sindical. José Afonso participa activamente neste movimento, assim como nas acções dos estudantes em Coimbra. Edita o álbum Contos Velhos Rumos Novos e o single «Menina, dos Olhos Tristes» que contém a canção popular «Canta Camarada». Recebe o prémio da Casa da Imprensa para o melhor disco, distinção que repete em 1970 e 1971. Pela primeira vez num disco de José Afonso, aparecem outros instrumentos que não a viola ou a guitarra. Trata-se do último álbum com Rui Pato. Nasce o último filho, o quarto, Pedro.
Em 1970 é editado o álbum Traz Outro Amigo Também, gravado em Londres, nos estúdios da Pye, o primeiro sem Rui Pato, impedido pela PIDE de viajar. Carlos Correia (Bóris), antigo músico de rock, dos Álamos e do Conjunto Universitário Hi-Fi, substitui Pato. A 21 de Março, por unanimidade, a Casa de Imprensa atribui a José Afonso o Prémio de Honra pela «alta qualidade da sua obra artística como autor e intérprete e pela decisiva influência que exerce em todo o movimento de renovação da música ligeira portuguesa». Participa em Cuba num Festival Internacional de Música Popular.
Pelo Natal de 1971, é lançado o álbum Cantigas do Maio, gravado perto de Paris, nos estúdios de Herouville, um dos mais caros e afamados da Europa. O álbum é geralmente considerado o melhor disco de José Afonso. A editora Nova Realidade publica o livro Cantar de Novo.
No ano de 1972 o álbum chama-se Eu Vou Ser Como a Toupeira, gravado em Madrid, nos Estúdios Cellada, com a participação de Benedicto, um cantor galego amigo de Zeca, e com o apoio dos Aguaviva, de Manolo Diaz. O livro, editado pela Paisagem, tem apenas o título de José Afonso.
Em 1973 José Afonso continua a sua «peregrinação», cantando um pouco em todo o lado. Muitas sessões foram proibidas pela PIDE/DGS. Em Abril é preso e fica 20 dias em Caxias até finais de Maio. Na prisão política, escreve o poema «Era Um Redondo Vocábulo». Pelo Natal, publica o álbum Venham Mais Cinco, gravado em Paris, em que José Mário Branco volta a colaborar musicalmente. No tema-título, participa Janine de Waleyne, solista dos Swingle Singers, o melhor grupo vocal de jazz cantado da altura, na opinião de José Niza.
A 29 de Março de 1974, o Coliseu, em Lisboa, enche-se para ouvir José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo e outros, que terminam a sessão com «Grândola, Vila Morena». Militares do MFA estão entre a assistência e escolhem «Grândola» para senha da Revolução. Um mês depois dá-se o 25 de Abril. No dia do espectáculo, a censura avisara a Casa de Imprensa, organizadora do evento, de que eram proibidas as representações de «Venham Mais Cinco», «Menina dos Olhos Tristes», «A Morte Saiu à Rua» e «Gastão Era Perfeito». Curiosamente, a «Grândola» era autorizada. É editado o álbum Coro dos Tribunais, gravado em Londres, novamente na Pye, com arranjos e direcção musical, pela primeira vez, de Fausto. São incluídas as canções brechtianas compostas em Moçambique no período entre 1964 e 1967, «Coro dos Tribunais» e «Eu Marchava de Dia e de Noite (Canta o Comerciante)».
De 1974 a 1975 envolve-se directamento nos movimentos populares. O PREC (Processo Revolucionário Em Curso) é a sua paixão. Cantou no dia 11 de Março de 1975 no RALIS para os soldados. Estabelece uma colaboração estreita com o movimento revolucionário LUAR, através do seu amigo Camilo Mortágua, dirigente da organização. A LUAR edita o single «Viva o Poder Popular» com «Foi na Cidade do Sado» no lado B. Em Itália, as organizações revolucionárias Lotta Continua, Il Manifesto e Vanguardia Operaria editam o álbum República, gravado em Roma a 30 de Setembro e 1 de Outubro, nos estúdios das Santini Edizioni. As receitas do disco destinavam-se a apoiar a Comissão de Trabalhadores do jornal República ou, caso o jornal fosse extinto, como foi, o Secretariado Provisório das Cooperativas Agrícolas de Alcoentre. Desconhecido em Portugal, o álbum inclui «Para Não Dizer Que Não Falei de Flores» (Francisco Fanhais), «Se os Teus Olhos se Vendessem», «Foi no Sábado Passado», «Canta Camarada», «Eu Hei-de Ir Colher Macela», «O Pão Que Sobra à Riqueza», «Os Vampiros», «Senhora do Almortão», «Letra para Um Hino» e «Ladainha do Arcebispo». Francisco Fanhais colaborou na gravação do disco, juntamente com músicos italianos.
Em 1976 apoia a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, cérebro do 25 de Abril e ex-comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), apoio que reedita em 1980. Fase cronista de José Afonso, que publica o álbum Com as Minhas Tamanquinhas. O disco tem a surpreendente participação de Quim Barreiros. É, na opinião de José Niza, «um disco de combate e de denúncia, um grito de alma, um murro na mesa, sincero e exaltado, talvez exagerado se ouvido e lido ao fim de 20 anos, isto é, hoje». É a «ressaca» do PREC.
O álbum Enquanto Há Força, editado em 1978, de novo com Fausto, representa mais um exemplo da fase cronista do cantor, ligada às suas preocupações anti-colonistas e anti-imperialistas e à sua crítica mordaz à Igreja. Inclui as participações, entre outras, de Guilherme Inês, Carlos Zíngaro, Pedro Caldeira Cabral, Rão Kyao, Luís Duarte, Adriano Correia de Oliveira e Sérgio Godinho.
Em 1979 é editado o álbum Fura Fura, com a colaboração musical de Júlio Pereira e dos Trovante. O disco inclui oito temas de música para teatro, compostos para as peças Zé do Telhado, de A Barraca, e Guerra do Alecrim e Manjerona, da Comuna. Actua em Bruxelas no Festival da Contra-Eurovisão.
Em 1981, após dois anos de silêncio, regressa a Coimbra com o seu álbum Fados de Coimbra e Outras Canções. Trata-se da mais bela versão do fado de Coimbra, interpretada por Zeca Afonso em homenagem a seu pai e a Edmundo Bettencourt, a quem o disco é dedicado. Actua em Paris, no Théatre de la Ville.
Em 1982 começam a conhecer-se os primeiros sintomas da doença do cantor, uma esclerose lateral amiotrófica. Trata-se, aparentemente, de um vírus instalado na espinal medula que, de uma forma progressiva, destrói o tecido muscular e, normalmente, conduz à morte por asfixia. Actua em Brouges no Festival de Printemps.
Em 29 de Janeiro de 1983 realiza-se o espectáculo no Coliseu com José Afonso já em dificuldades. Participam Octávio Sérgio, António Sérgio, Lopes de Almeida, Durval Moreirinhas, Rui Pato, Fausto, Júlio Pereira, Guilherme Inês, Rui Castro, Rui Júnior, Sérgio Mestre e Janita Salomé. É publicado o duplo álbum Ao Vivo no Coliseu.
No Natal desse ano, sai Como Se Fora Seu Filho, um testamento político. Colaboração de Júlio Pereira, Janita Salomé, Fausto e José Mário Branco. Alinhamento: «Papuça», «Utopia», «A Nau de António Faria», «Canção da Paciência», «O País Vai de Carrinho», «Canarinho», «Eu Dizia», «Canção do Medo», «Verdade e Mentira» e «Altos Altentes». Algumas das canções foram escritas para a peça Fernão Mentes? do grupo de teatro A Barraca. Publicado o livro Textos e Canções, com a chancela Assírio e Alvim. Contra a sua vontade, é publicado pelo Foto Sonoro um maxi-single, Zeca em Coimbra, com um espectáculo dado por Zeca no Jardim da Sereia, na Lusa Atenas, a 27 de Maio. A cidade de Coimbra atribui a José Afonso a Medalha de Ouro da cidade. «Obrigado Zeca, volta sempre, a casa é tua», disse-lhe o presidente da Câmara, Mendes Silva. «Não quero converter-me numa instituição, embora me sinta muito comovido e grato pela homenagem», respondeu José Afonso. O Presidente da República, general Ramalho Eanes, atribui a José Afonso a Ordem da Liberdade, mas o cantor recusa-se a preencher o formulário. Em 1994, o Presidente da República Mário Soares tentou de novo condecorar, postumamente, José Afonso com a Ordem da Liberdade, mas a mulher, Zélia, recusou, alegando que se José Afonso não desejou a distinção em vida, também não seria após a sua morte que seria condecorado.
Em 1983 José Afonso é reintegrado no ensino oficial, tendo sido destacado para dar aulas de História e de Português na Escola Preparatória de Azeitão. Tinha sido expulso em 1968. A doença, agrava-se.
Em 1985 é editado o último álbum, Galinhas do Mato. José Afonso já não consegue cantar todos os temas, sendo substituído por Luís Represas («Agora»), Helena Vieira («Tu Gitana»), Janita Salomé («Moda do Entrudo», «Tarkovsky» e «Alegria da Criação»), José Mário Branco («Década de Salomé», em dueto com Zeca), Né Ladeiras («Benditos») e Catarina e Marta Salomé («Galinhas do Mato»). Arranjos musicais de Júlio Pereira e Fausto. Outras canções do álbum: «Escandinávia Bar-Fuzeta» e «À Proa».
Em 1986 apoia a candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo, católica progressista.
José Afonso morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal, às 3 horas da madrugada, vítima de esclerose lateral amiotrófica, diagnosticada em 1982. O funeral realizou-se no dia seguinte, com mais de 30 mil pessoas, da Escola Secundária de S. Julião para o cemitério da Senhora da Piedade, em Setúbal, onde a urna foi depositada às 17h30 na sepultura 1606 do quadro 19. O funeral demorou duas horas a percorrer 1300 metros. Envolvida por um pano vermelho sem qualquer símbolo, como pedira, a urna foi transportada, entre outros, por Sérgio Godinho, Júlio Pereira, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais. A Transmédia editou o triplo álbum, o primeiro da história discográfica portuguesa, Agora e Sempre, duas semanas depois da morte do cantor. O triplo disco é constituído pelos álbuns Como Se Fora Seu Filho (1983) e Galinhas do Mato (1985) e por um alinhamento diferente de Ao Vivo no Coliseu (1983). A 18 de Novembro é criada a Associação José Afonso com o objectivo de ajudar a realizar as ideias do compositor e intérprete no campo das Artes.
Em 1988 a Câmara Municipal da Amadora institui o Prémio José Afonso destinado a galardoar um álbum inédito de música portuguesa, cujos temas tenham como referência a Cultura e História portuguesas, tal como a obra do autor de «Grândola, Vila Morena». Vencedores: «Para Além das Cordilheiras», Fausto (1988), «Negro Fado», Vitorino (1989), «Aos Amores», Sérgio Godinho (1990), «Janelas Verdes», Júlio Pereira (1991), «Correspondências», José Mário Branco (1992), «Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada», Vitorino (1993), «Tinta Permanente», Sérgio Godinho (1994), «Traz os Montes», Né Ladeiras (1995), «Maio Maduro Maio», Amélia Muge, João Afonso e José Mário Branco (1996).
Em 1991 a Câmara Municipal da Amadora inaugurou no Parque Central da cidade uma estátua em mármore de José Afonso, de 4 metros, da autoria do escultor Francisco Simões.
Em Outubro 1993, começam as gravações de um duplo CD, Filhos da Madrugada, que a BMG editará no ano seguinte em homenagem a José Afonso. A Strauss edita o duplo CD Zeca Afonso no Coliseu com o espectáculo integral de 29 de Janeiro de 1983. Inclui «Abertura: À Proa», «Balada do Mondego», «Saudades de Coimbra», «Senhora do Almortão», «Dor na Planície» (instrumental), «Balada do Outono», «Canção de Embalar», «Natal dos Simples», «Os Vampiros», «A Morte Saiu à Rua», «No Comboio Descendente», «Um Homem Novo Veio da Mata», «Milho Verde», «O Anel Que Tu Me Deste» (instrumental) «Murinheira» (instrumental), «Era Um Redondo Vocábulo», «Papuça», «Utopia», «Venham Mais Cinco», «O Que Faz Falta», «Grândola, Vila Morena» e «À Proa» (gravação de estúdio). «O Anel Que Tu Me Deste» e «Murinheira» não tinham sido incluídos na edição de vinil de 1983, Ao Vivo no Coliseu. O original de estúdio «À Proa», que tinha ficado de fora do álbum Como Se Fora Seu Filho, também de 1983, é publicado pela primeira vez. Uma versão diferente está incluída em Galinhas do Mato, de 1985.
Em 1994, integrado na programação de Lisboa-94, Capital Europeia da Cultura, realizou-se no dia 30 de Junho, no Estádio de Alvalade, em Lisboa, um festival de homenagem a José Afonso, com músicos da nova geração, intitulado Filhos da Madrugada. Participam Brigada Victor Jara, Censurados, Delfins, Diva, Entre Aspas, Essa Entente, Frei Fado D'El Rei, GNR, Madredeus, Mão Morta, Opus Ensemble, Peste & Sida, Resistência, Ritual Tejo, Sérgio Godinho, Sétima Legião, Sitiados, Tubarões, UHF, Vozes da Rádio e Xutos & Pontapés. Treze anos antes, numa entrevista ao Portugal Hoje, José Afonso tinha dito que «se a juventude aceita mais o rock do que outras formas musicais, o que se pode pedir, ao menos, é que se faça rock com qualidade» e que «não se tenha a necessidade de aleijar a língua portuguesa para a meter dentro dos compassos do rock».
Nesse mesmo ano a BMG editou um CD duplo, Filhos da Madrugada, gravado entre Outubro de 1993 e Março de 1994, em homenagem a José Afonso. Alinhamento: «Maio Maduro Maio» (Madredeus), «Coro dos Tribunais» (GNR), «A Formiga no Carreiro» (Sitiados), «Os Índios de Meia-Praia» (Vozes da Rádio), «Venham Mais Cinco» (Tubarões), «O Homem da Gaita» (Peste & Sida), «Canto Moço» (Ritual Tejo), «Vejam Berm» (Delfins), «Canção de Embalar» (Diva), «Era Um Redondo Vocábulo» (Opus Ensemble), «Coro da Primavera» (Xutos & Pontapés), «Cantigas do Maio» (Sétima Legião), «Chamaram-me Cigano» (Resistência), «Traz Outro Amigo Também» (Entre Aspas), «O Avô Cavernoso» (Mão Morta), «Que Amor Não Me Engana» (Frei Fado D'El Rei), «O Que Faz Falta» (Censurados), «Ronda das Mafarricas» (Brigada Victor Jara), «A Morte Saiu à Rua» (UHF) e «Senhor Arcanjo» (Essa Entente). O álbum termina com «Grândola, Vila Morena» cantado pelo Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras e ainda por João Aguardela (Sitiados), Natália Casanova (Diva), João Ribas (Censurados), Paulo Costa (Ritual Tejo), Viviane Parra (Entre Aspas), Nuno Aragão (Vozes da Rádio), Carla Lopes (Frei Fado D'El Rei), Paulo Riço (Essa Entente), João San Payo (Peste & Sida), Aurélio Malva (Brigada Victor Jara), Miguel Angelo (Delfins) e Tim (Xutos & Pontapés).
Em 1995 José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso, sobrinho de Zeca, lançaram um álbum de homenagem a José Afonso, intitulado Maio Maduro Maio, que inclui os inéditos de Zeca, «Entre Sodoma e Gomorra», e «Nem Sempre os Dias São Dias Passados». O CD duplo, resume os concertos que os três artistas deram no Teatro Municipal de São Luiz nos dias 13, 14 e 15 de Dezembro de 1994. Alinhamento: «Maio Maduro Maio», «Utopia», «De Não Saber o Que Me Espera», «Canção de Embalar», «Entre Sodoma e Gomorra», «Que Amor Não Me Engana», «Já o Tempo Se Habitua», «O Pastor de Bensafrim», «Lá no Xepangara», «Chamaram-me Cigano», «Achégate a Mim, Maruxa», «Canção da Paciência», «A Cidade», «Nefritite Não Tinha Papeira», «O Homem Voltou», «Nem Sempre os Dias São Dias Passados», «De Sal de Linguagem Feita», «Se Voaras Mais ao Perto», «Ali Está o Rio», «Benditos», «O País Vai de Carrinho», «Fura Fura», «O Que Faz Falta» e «Zeca». Esta última é uma canção de José Mário Branco, de homenagem a José Afonso.
Em 1996, sob a orientação cuidada de José Niza, a Movieplay editou em CD os 11 álbuns gravados por José Afonso para a Orfeu. A colecção é acompanhada por um 12º CD, De Capa e Batina, onde se juntam as primeiras gravações de José Afonso, isto é, as gravações de 78 rotações de 1953, «Fado das Águias», «Solitário», «O Sol Anda Lá no Céu» e «Contos Velhinhos» e o EP da Alvorada de 1956, «Incerteza», «Mar Largo», «Aquela Moça da Aldeia» e «Balada» e ainda o single da Orfeu, de 1969, «Menina dos Olhos Tristes» e «Canta Camarada».
No 10º aniversário da morte de José Afonso, em 1997, a EMI editou pela primeira vez em CD o primeiro álbum de Zeca, gravado para a Ofir em 1964 com o título Baladas e Canções. O álbum contém «Canção Longe», «Os Bravos», «Balada Aleixo», «Balada do Outono», «Trovas Antigas», «Na Fonte Está Lianor, «Minha Mãe», «Altos Castelos», «O Pastor de Bensafrim», «Canto da Primavera», «Elegia» e «Ronda dos Paisanos».
Em 1998, Vitorino e Janita Salomé encabeçaram um concerto de homenagem a José Afonso, integrado na programação do Festival dos 100 Dias, da Expo'98.
Manuel Alegre
A voz que guardo dentro de mim não está gravada em nenhum disco: anda a cantar «contos velhinhos de amor, numa noite branca e fria», algures, em Coimbra.
Foi assim que conheci José Afonso, num Inverno de há muitos anos. Ainda se faziam serenatas, as raparigas agradeciam acendendo e apagando a luz três vezes e nós viajávamos pela noite dentro, «bêbados de coisas inextricáveis», como escrevia então Herberto Helder. Já a voz do José Afonso anunciava outras trovas, mas naquele tempo a Académica era ainda (foi-o sempre) a nossa dama, por ela sofríamos aos domingos no Calhabé ou nos campos do País onde chegávamos à boleia, de capa e moca, e sem um tostão no bolso. Até que um dia o Zeca resolveu partir para Marrocos. Conseguimos apanhá-lo a tempo, graças a uns ciganos nossos amigos. Mas a tentação do Sul já estava dentro dele. Ou talvez daquele azul de que fala Mallarmé e que era, de certo modo, a cor da sua voz. Ele era como a cigarra e precisava do espaço do Verão, Alentejo, Algarve, a planície, as areias e o mar. É preciso dizer que nessa altura já ele era distraído (nós dizíamos despistado). Uma noite estava a jantar em minha casa e de repente deu um salto na cadeira: onde é que deixei o meu filho? E lá fomos à procura. Mas o miúdo, habituado aos despistanços do pai, tinha ido tranquilamente do estádio para casa.
Tínhamos então grandes discussões. Eu já andava na militância política, o Zeca era, havia de ser sempre, um libertário em estado quase puro. Ainda se debatia a questão da arte e do empenhamento social e político do artista.
Teoricamente o Zeca era contra, mas as coisas foram mudando e quase sem darmos por isso todos nos fomos comprometendo cada vez mais. Foi primeiro o Decreto 40 900, contra a autonomia das associações e a resposta estudantil, com uma grande manifestação em Coimbra. E depois 1958, o general Delgado e aquele vendaval que varreu o País de lés a lés. Então o Zeca quis pegar em armas. Mas como?
Tivemos que recorrer às que tínhamos à mão: a poesia, a guitarra, o canto. A guitarra do António Portugal tornou-se de repente mais nervosa, experimentando novos ritmos e dissonâncias, e o Zeca aparece a trautear melodias estranhas. Até que saiu a «Balada do Outono». Foi uma iluminação. Assim como alguns poemas aparecem feitos, também aquela balada dava a impressão de ter estado sempre ali e de ter sido colhida no ar num dos momentos de distracção concentrada do Zeca. A canção de Coimbra não voltaria a ser a mesma, a música ligeira portuguesa também não. Aquela balada era nova e ao mesmo tempo muito antiga. Tudo estava nela: a tradição trovadoresca, os cantares de amigo, os romances populares. E também o espírito de um tempo de mudança.
Entretanto o Zeca partia para o Sul. E eu para Angola. Reencontrámo-nos no início de 1964, numa festa de recepção aos caloiros da Faculdade de Medicina no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Tinha eu acabado de regressar da prisão em Angola, estava com residência fixa em Coimbra, mas vim sem pedir licença.
Trazíamos a «Trova do Vento Que Passa». Cantou-a primeiro o Adriano, a seguir o Zeca, depois ambos. E acabámos em coro, na rua. Era assim, naquele tempo. As trovas e baladas tinham o ritmo da nossa inquietação, de uma luta, da nossa vida. E vieram o «Menino do Bairro Negro», «Os Vampiros», «O Coro dos Caídos». O Sul entraria na música do Zeca com o seu «Pastor de Bensafrim», o seu «Sol de Verão», Catarina, o Alentejo, a cigarra, o silêncio, o grande espaço, a sombra de uma azinheira e o calor da fraternidade. E depois a África, seus ritmos e seus tambores, na fase da maturidade. Vieram os exílios, as longas separações, as pequenas e grandes batalhas, o 25 de Abril, encontros, desencontros, reencontros. E a voz do Zeca sempre, a avisar e animar a malta.
Como os provençais da época de oiro, cuja lição Ezra Pound tão bem captou, José Afonso foi um grande trovador moderno, ligando de novo a poesia e a música. Desse modo renovou uma e outra e contribuiu para mudar a própria vida, como queria Rimbaud.
Foi um homem fraterno, despojado, por vezes até ao exagero. Mas era assim: um revolucionário franciscano, como lhe chamei, irritado por vezes com o seu desprendimento de tudo e de si mesmo. Talvez as sociedades não consigam suportar a força subversiva de um tal despojamento. Por isso o Zeca foi tantas vezes censurado. Por isso continua simultaneamente a encantar e a incomodar. Eu sei que gostariam de transformá-lo em álibi ou torná-lo inofensivo depois de morto. Mas não é possível. A sua voz está tão cheia de ternura que será irremediavelmente subversiva.
Como disse António Portugal: «Um homem cuja voz foi a nossa voz durante muitos anos e que ajudou a tomar possível o nosso encontro colectivo com uma identidade perdida e com um destino que hoje orgulhosamente assumimos.»
Talvez seja isso o que uns tantos não conseguem perdoar-lhe. Mas é com certeza por isso que ele continua a ser a nossa voz.
2. - Ensaios na «Brasileira»
Rui Pato
Conheci o Zeca nos meus 16 anos, tinha ele 33, já licenciado em Letras, a leccionar em Mangualde, mas aproveitando todas as folgas para vir a Coimbra, ansioso por mostrar aos amigos as suas últimas baladas.
Até essa altura, a sua actividade musical tinha sido, na década de 50 e princípio da de 60, a de um estudante com boa voz, que cantava no Orfeão e que, juntamente com o Rolim, Machado Soares, Goes, Levy Baptista, Lopes de Almeida, Portugal, Brojo e outros, se agrupavam para executar fados e guitarradas, actuando quer em espectáculos do Orfeão, quer em espectáculos da Tuna, quer em serenatas e, de vez em quando, para a gravação de um disco de fados.
Eu ouvi o seu nome, as primeiras vezes, ao meu pai que, como jornalista em Coimbra, fazia questão de viver intensamente a vida coimbrã, saltitando das tertúlias futrico-intelectuais para as académicas. E nestas últimas pontificava o Zeca, como o seu bom humor, com as suas permanentes distracções e com uma irreverência intelectual a que chamavam de «existencialista». Mais tarde, já com os meus 12 anos, ao tentar a minha sorte como aprendiz de fadista, acompanhando à viola rapazes da minha idade em guitarradas e fados, o nome do Zeca vinha à baila, a propósito dos fados que ele cantava como ninguém (os «Contos Velhinhos», «Aquela Moça da Aldeia», etc, etc.) e que nós tentávamos imitar no seu jeito de voz «caprina», como dizia o Menano. Mas em 1962, ano tumultuado em Coimbra, com a Academia envolvida numa das mais violentas crises estudantis, o Zeca, já cansado com aquilo a que chamou a «quinquilharia passadista do velho romantismo do Penedo», sempre que podia, vinha a Coimbra para sentir esse fervilhar das novas gerações.
Começa assim a sua fase de ruptura com aquilo que mais o tinha ligado até então à cidade, «o tanger dos bordões da viola, as casas de prego, as bicas nos cafés da Baixa e as arengas dos teóricos da bola».
Possuía, além disso, um profundo conhecimento do grave problema colonial, porque, além de ter em Moçambique muita família, fez algumas digressões com a Tuna e com o Orfeão às colónias. Era, também, um tempo de separação dolorosa com a mulher que lhe tinha dado os seus primeiros dois filhos.
É neste contexto de viragem, caldeada com muita angústia, que conheço o Zeca. A sua mudança deveu-se, no meu entender, ao seu amadurecimento intelectual, às profundas marcas deixadas pela desilusão afectiva, às mudanças do ambiente coimbrão, à desilusão dos primeiros anos de docência, às notícias de África e, muito principalmente, ao contacto com novos amigos como o Barahona, a Luísa Neto Jorge, o Luís Andrade, o Bronze, o Pité e tantos outros.
Ele vinha de Mangualde a Coimbra para mostrar aos amigos um outro tipo de música, sem o «espartilho da Guitarra de Coimbra» [com letra maiúscula no original], com uma grande liberdade rítmica e que necessitava apenas de uns leves acordes de viola para sublinhar o poema que era o mais importante da canção.
Assim nasce «Menino de Oiro», «Tenho Barcos, Tenho Remos», «Os Vampiros», «O Senhor Poeta», etc., ensaios muitas vezes feitos no segundo andar do Café Brasileira, ou em minha casa ou em qualquer República onde ele tinha o estatuto de «livre trânsito» quando vinha a Coimbra e necessitava de dormir.
Conseguiram-se os dois primeiros EP que tanto escândalo provocaram nos meus «amigos do fado». Foi considerado uma afronta à tradição. Mas os meios intelectuais e os meios operários de esquerda logo nos aproveitaram para saraus mais ou menos clandestinos. Zeca vai tentando o ensino, saltitando, depois de Mangualde para Aljustrel, Lagos, Faro, Alcobaça e de novo Faro.
Os ensaios eram poucos, feitos quase sempre nas férias. Foi a minha primeira oportunidade de conhecer o Algarve: em 1963, fiquei uma semana na sua casa, no n.º 68 da Rua Duarte Pacheco, em Faro. Partíamos de manhã com destino à ilha do Farol ou da Armona, de barco com a viola e uma ração de duas sanduíches e duas meloas. Quando eu não podia ir ter com ele, vinha ele a Coimbra à boleia ou então apanhava o comboio até à estação para a qual o pouco dinheiro que dispunha dava - «venda-me um bilhete de 60 escudos em segunda classe em direcção ao norte» -, fazendo o resto à boleia ou a pé e cá chegava cheio de fome, sem um tostão no bolso, e com um bornal com uma muda de roupa, alguns medicamentos e muitos livros.
Negociávamos, na altura, um contrato com a Rapsódia, que lhe desse alguma estabilidade económica. O Zeca pretendia quatro contos por mês e cinco por cento na percentagem das vendas. Mas partiu em Agosto de 1964 para África, sem conseguir esse «fabuloso contrato», mas feliz com o seu recente casamento com a Zélia. São dois anos em que semanalmente escreve para minha casa, com o remetente «caixa postal n.º 50-Beira», cartas repletas das suas próprias contradições, da sua instabilidade, mas cheias de notícias dessa África em ebulição. Terminavam sempre com o envio de abraços para o Serrano, Abílio, Rui Mendes e para toda a malta.
«Quero aí chegar a tempo de mandar rufar os tambores que para o efeito tenho ensaiados e ouvir o coro que ressuscitará o Lázaro do seu túmulo», escrevia ele em Março de 1965. E veio, pois em 1967 acabou por ser expulso de Moçambique por vários problemas com a administração colonial.
Volta e vai para Setúbal. Manda-me cassetes com as últimas músicas. Vou até Setúbal, de vez em quando, ficando aboletado na casa dele, na Quinta do Montalvão, lote 5-2.º esquerdo, com a Zélia e já com a sua terceira filha, a Joana, muito pequenita.
Mais dois LP e muitos espectáculos - Almada, Barreiro, Seixal, Vila Franca, Marinha Grande, etc., sempre casas cheias de gente de oposição ao regime da altura, muitos operários e estudantes, a PIDE a pairar e, por vezes, a intervir.
Entretanto, junta-se a nós o Adriano, o Manuel Freire, o Fanhais e outros que não me recordo. É bastante difícil avaliar o impacte que o contacto com figuras como o Zeca, o Adriano, o António Portugal, entre os 16 e os 20 e poucos anos, tem na formação da personalidade de um adolescente. Nessa altura, eu não tinha a noção da dimensão humana e intelectual desses amigos. O meu desgosto é ter tido uma fortuna enorme em ter amigos desse quilate e, na altura, sem a noção desse valor, não ter agarrado cada momento, deixando até, por vezes, que a memória me falhe e tantos momentos bonitos e ricos se percam.
A partir de 1968, devido à minha situação académica e à impossibilidade de o acompanhar ao estrangeiro para as gravações, deixo de ser o acompanhante habitual. Felizmente para o Zeca, pois assim conhece o Iglésias e o Bóris (Carlos Correia) que tocavam bastante melhor do que eu. Passo a vê-lo menos vezes, mas sempre que posso estou com ele para o acompanhar ou só para o ouvir. A última vez que pego numa viola ao seu lado e a seu pedido, foi no célebre espectáculo do Coliseu, pouco antes da sua morte.
3. - «Grândola» Gravada às 3 da Manhã
Carlos Correia (Bóris)
Quando, naquela manhã de Abril de 1970, entrei no avião com destino a Londres, para gravar com o Zeca nos estádios da Pye, apenas sabia trautear alguns dos temas que, no conjunto, formariam o álbum intitulado Traz Outro Amigo Também.
De facto, a minha inclusão naquele trabalho tinha sido decidida poucos dias antes e por razões (como era hábito) um pouco fortuitas. O meu passado musical, muito mais ligado à guitarra eléctrica e ao rock (exercido em conjuntos «à Shadow» ou «à Beatle» como foram os HI-FI e os Álamos), tinha apenas uma única experiência na arca da MPP (Música Popular Portuguesa!) com o disco que tinha gravado com o Duarte e Ciríaco.
Assim, apesar de pouco credenciado para a tarefa, entrei facilmente nos temas e, recordo claramente, nunca receei falhar na sua execução em estúdio. Sei agora que esta confiança derivava directamente da universalidade da música do Zeca.
Acontecia-me afinal o que acontece quando contactamos com uma obra tão consistente como a do Zeca: parece-nos que já a conhecíamos há muito tempo e que, mais do que isso, ela já estava dentro de nós. Foi sempre assim com a música dele. Quando ele a expunha pela primeiríssima vez (às vezes ao telefone e a desoras) vinha a sensação inevitável de «eu já senti isto». E já. Só que o Zeca sabia traduzir tudo isso para um formato exteriormente inteligível.
À partida do aeroporto, a primeira surpresa: o Luís Filipe Colaço (homem da rádio, companheiro de Coimbra e ex-guitarrista dos Álamos), já dentro do avião, é chamado pelo comandante, mandado sair e retido em Lisboa pela DGS por dois ou três dias. Conseguiu juntar-se a nós em Londres, mais tarde, recorrendo sei lá a que expedientes para convencer os zelosos Pides da inocuidade da sua viagem.
À chegada, a segunda surpresa. A guitarra que, muito profissionalmente, levava sob o assento e sem caixa protectora, apresentava uma rachadela monumental que a tomava, para sempre, inútil.
Só os bons ofícios dos amigos que o Zeca tinha em Londres (o Zeca tinha amigos em toda a parte) permitiram arranjar uma guitarra decente para a gravação.
As sessões no estúdio começaram com o «Maria Faia» e com a delícia de trabalhar com uma máquina de 4 (quatro!) pistas. A abundância de meios técnicos, superiores aos que conhecíamos, foi inspiradora. Pude sobrepor várias faixas de guitarra, obtendo efeitos orquestrais que, na época, pareciam interessantes.
As onze faixas foram gravadas sem sacrifício em várias sessões diurnas, ao longo de duas semanas ponteadas por passeios pela grande capital que parecia, então, tão diferente do nosso meio natal.
Nos corredores alcatifados do hotel, o Zeca colocava a sua energia em demonstrações amigáveis de judo (modalidade que abraçara recentemente).
Dos muitos amigos que apareciam no estúdio para ver o grande autor-intérprete, como já era reconhecido, recordo o brasileiro tropicalista Gilberto Gil, exilado pela ditadura. Esteve presente na gravação de «Verdes São os Campos» e a introdução de guitarra - inventada na hora - teve a sua aprovação.
Terminado o trabalho e quando, já em Portugal, recebemos um exemplar do disco para avaliação, o Zeca reprovou-o por não gostar da mistura e deu instruções para esta ser feita de maneira diferente. Se havia (e havia) zonas em que o Zeca não fazia concessões, uma era de certeza a que dizia respeito ao ambiente musical das suas canções, especialmente se eram para colocar em disco.
Nos dois discos que gravei com ele, testemunhei esse perfeccionismo, inesperado num homem tão simples e que não era, de modo nenhum, um instrumentista, nem um conhecedor das subtilezas técnicas dos estúdios de gravação. Nem precisava ser.
Ainda conservo o protótipo rejeitado (um vinil). A venda do disco, editado pela Arnaldo Trindade, decorrera como era costume: um ou dois dias nas montras das lojas e, depois da proibição pela censura, clandestinamente e ao mesmo ritmo. Ficámos, provavelmente, a dever ao Sr. Arnaldo Trindade a edição de autores como o Zeca e o Adriano, em condições comercialmente tão adversas.
No ano seguinte - em Outubro/Novembro a minha segunda experiência discográfica com o Zeca. Aqui, já ele tinha ouvido as duas vozes portuguesas no exílio em Paris que traziam os sons novos que ele constantemente procurava. O José Mário Branco foi incumbido da direcção musical desse novo disco que viria a chamar-se Cantigas do Maio.
Foi ele que enquadrou o Zeca num ambiente de trabalho bem estruturado e com o tacto humano adequado a não fazer o Zeca sentir-se engaiolado e artisticamente diminuído.
A gravação decorreu num castelo-estúdio dos arredores de Paris e teve a colaboração (bem audível em algumas faixas) do Francisco Fanhais.
A direcção musical e a presença humana do Zé Mário Branco revelaram-se fundamentais para o bom sucesso do trabalho. O seu conhecimento do meio musical parisiense conseguiu trazer ao estúdio músicos de primeira categoria -como é o caso do percussionista Michel Delaport, com os seus sons indianos tão bem aproveitados no «Senhor Arcanjo».
Foi aí que gravámos (em sessões, desta vez, nocturnas) o «Grândola» com o som dos passos obtido no exterior do castelo às três da manhã.
A mistura final foi feita no estúdio e desta vez (abençoado Zé Mário) não foi rejeitada.
Foi o meu segundo e último disco com o Zeca. A minha vida profissional afastou-me irremediavelmente do meio e só volto a vê-lo, anos mais tarde, no quarto de urna clínica em Coimbra. Já estava ferido de morte pela doença, mas pensava ainda em mais canções e tinha esperança.
4. - Traz Outro Amigo Também
Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Em terras
Em todas as fronteiras
Seja bem-vindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também
Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte
todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também
5. - Biografia de Zeca Afonso
José Manuel Cerqueira Afonso dos Santos nasceu a 2 de Agosto de 1929, em Aveiro, filho de José Nepomuceno Afonso, juiz, e de Maria das Dores.
Em 1930 os pais foram para Angola, onde o pai tinha sido colocado como delegado do Procurador da República em Silva Porto. José Afonso permanece em Aveiro, na casa da Fonte das Cinco Bicas, por razões de saúde, confiado à tia Gigé e ao tio Xico, um «republicano anticlerical e anti-sidonista».
Por insistência da mãe, em 1933 Zeca segue para Angola, com três anos e meio, no vapor Mouzinho, acompanhado por um tio advogado em lua-de-mel. Um missionário é a companhia de José Afonso que permanece três anos em Angola, onde inicia os estudos da instrução primária.
Em 1936 regressa a Aveiro, para casa de umas tias pelo lado materno.
Parte em 1937 para Moçambique ao encontro dos pais, com quem vive juntamente com os irmãos João e Mariazinha.
Regressa a Portugal, em 1938, desta vez para casa do tio Filomeno, presidente da Câmara Municipal de Belmonte. Aqui conclui a quarta classe. O tio, salazarista convicto, fá-lo envergar a farda da Mocidade Portuguesa.
Vai para Coimbra em 1940 para prosseguir os estudos. É matriculado no Liceu D. João III e instala-se em casa da tia Avrilete. No liceu conhece António Portugal e Luiz Goes. A família parte de Moçambique para Timor, onde o pai vai exercer as funções de juiz. Mariazinha vai com eles, enquanto seu irmão João vem para Portugal. Com a ocupação de Timor pelos Japoneses, José Afonso fica sem notícias dos pais durante três anos, até ao final da II Guerra Mundial, em 1945.
Nesse mesmo ano começa a cantar serenatas como «bicho», designação da praxe de Coimbra para os estudantes liceais (José Afonso andava no 5.º ano do liceu). Era conhecido como «bicho-cantor», o que lhe permitia não ser «rapado» pelas «trupes». Vida de boémia e fados tradicionais de Coimbra.
De 1946 a 1948 completa o curso dos liceus, após dois chumbos. Conhece Maria Amália de Oliveira, uma costureira de origem humilde, com quem vem a casar em segredo, por oposição dos pais. Faz viagens com o Orfeão e com a Tuna Académica. Joga futebol na Associação Académica de Coimbra.
Em 1949 inscreve-se no primeiro ano do curso de Ciências Histórico-Filosóficas da Faculdade de Letras. Vai a Angola e Moçambique integrado numa comitiva do Orfeão Académico da Universidade de Coimbra.
Em Janeiro de 1953 nasce-lhe o primeiro filho, José Manuel. Dá explicações e faz revisão no Diário de Coimbra. São editados os seus primeiros discos. Trata-se de dois discos de 78 rotações com fados de Coimbra, editados pela Alvorada, dos quais não existem hoje exemplares. Os dois discos foram gravados no Emissor Regional de Coimbra da Emissora Nacional.
De 1953 a 1955 cumpre, em Mafra, serviço militar obrigatório. Foi mobilizado para Macau, mas livrou-se por motivos de saúde. Depois é colocado num quartel em Coimbra. Tem grandes dificuldades económicas para sustentar a família, como refere em carta enviada aos pais em Moçambique. A crise conjugal é muito sentida. Após o serviço militar, já com dois filhos, José Manuel e Helena (nascida em 1954), conclui em 1963 o curso na Faculdade de Letras de Coimbra com 11 valores com uma tese sobre Jean-Paul Sartre: «Implicações substancialistas na filosofia sartriana».
Vai dar aulas num colégio privado em Mangualde em 1955/56. Inicia-se o processo de separação e posterior divórcio de Amália (1 de Junho de 1963). José Afonso manterá uma névoa de silêncio em redor desta sua experiência conjugal.
Em 1956 é editado o seu primeiro EP, intitulado Fados de Coimbra.
Em 1956/57 é professor em Aljustrel e em Lagos.
Por dificuldades económicas, em 1958 envia os dois filhos para Moçambique, para junto dos avós. Neste ano fica impressionado com a campanha eleitoral de Humberto Delgado. Digressão de um mês em Angola da Tuna Académica. José Afonso é o vocalista do Conjunto Ligeiro. «Actuámos vestidos com umas largas blusas de cetim, cada uma de sua cor, imitando a orquestra de "mambos" de Perez Prado, o máximo da altura», conta José Niza.
Em 1959 começa a frequentar colectividades e a cantar regularmente em meios populares.
Em 1960 é editado o quarto disco de José Afonso. Trata-se de um EP para a Rapsódia, intitulado Balada do Outono.
De 1961 a 1962 segue atentamente a crise estudantil deste último ano. Convive em Faro com Luiza Neto Jorge, António Barahona, António Ramos Rosa e Pité e namora com Zélia, natural da Fuzeta, que será a sua segunda mulher.
Em 1962 é editado o álbum Coimbra Orfeon of Portugal, pela Monitor, dos Estados Unidos, com «Minha Mãe» e «Balada Aleixo», onde José Afonso rompe definitivamente com o acompanhamento das guitarras. Nestas duas baladas é acompanhado exclusivamente à viola por José Niza e Durval Moreirinhas.
Realiza digressões pela Suíça, Alemanha e Suécia, integrado num grupo de fados e guitarras, na companhia de Adriano Correia de Oliveira, José Niza, Jorge Godinho, Durval Moreirinhas e ainda da fadista lisboeta Esmeralda Amoedo.
Em 1963 é editado outro EP de Baladas de Coimbra.
Em Maio de 1964, José Afonso actua na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense, onde se inspira para fazer a canção «Grândola, Vila Morena», que viria a ser no dia 25 de Abril de 1974 a senha do Movimento das Forças Armadas (MFA) para o derrube do regime ditatorial.
Nesse mesmo ano é editado o EP Cantares de José Afonso, o único para a Valentim de Carvalho.
Também em 1964 é editado, pela Ofir, o álbum Baladas e Canções, que virá a ser reeditado em CD pela EMI em 1997.
De 1964 a 1967, José Afonso encontra-se em Lourenço Marques com Zélia, onde reencontra os seus dois filho. Nos últimos dois anos, dá aulas na Beira. Aqui musicou Brecht na peça A Excepção e a Regra. Em Moçambique nasce a sua filha Joana (1965).
Em 1967 regressa a Lisboa esgotado pelo sistema colonial. Deixa o filho mais velho, José Manuel, confiado aos avós em Moçambique. Colocado como professor em Setúbal, sofre uma grave crise de saúde que o leva a ser internado durante 20 dias na Casa de Saúde de Belas. Quando sai da clínica, tinha sido expulso do ensino oficial. É publicado o livro Cantares de José Afonso, pela Nova Realidade. O PCP convida-o a aderir ao partido, mas José Afonso recusa invocando a sua condição de classe. Assina contrato discográfico com a Orfeu, para quem grava mais de 70 por cento da sua obra.
Expulso do ensino, em 1968 dedica-se a dar explicações e a cantar com mais assiduidade nas colectividades da Margem Sul, onde é nítida a influência do PCP. Pelo Natal, edita o álbum Cantares do Andarilho, com Rui Pato, primeiro disco para a Orfeu. O contrato é sui generis: contra o pagamento de uma mensalidade (15 contos), José Afonso é obrigado a gravar um álbum por ano.
Em 1969 a Primavera marcelista abre perspectivas de organização ao movimento sindical. José Afonso participa activamente neste movimento, assim como nas acções dos estudantes em Coimbra. Edita o álbum Contos Velhos Rumos Novos e o single «Menina, dos Olhos Tristes» que contém a canção popular «Canta Camarada». Recebe o prémio da Casa da Imprensa para o melhor disco, distinção que repete em 1970 e 1971. Pela primeira vez num disco de José Afonso, aparecem outros instrumentos que não a viola ou a guitarra. Trata-se do último álbum com Rui Pato. Nasce o último filho, o quarto, Pedro.
Em 1970 é editado o álbum Traz Outro Amigo Também, gravado em Londres, nos estúdios da Pye, o primeiro sem Rui Pato, impedido pela PIDE de viajar. Carlos Correia (Bóris), antigo músico de rock, dos Álamos e do Conjunto Universitário Hi-Fi, substitui Pato. A 21 de Março, por unanimidade, a Casa de Imprensa atribui a José Afonso o Prémio de Honra pela «alta qualidade da sua obra artística como autor e intérprete e pela decisiva influência que exerce em todo o movimento de renovação da música ligeira portuguesa». Participa em Cuba num Festival Internacional de Música Popular.
Pelo Natal de 1971, é lançado o álbum Cantigas do Maio, gravado perto de Paris, nos estúdios de Herouville, um dos mais caros e afamados da Europa. O álbum é geralmente considerado o melhor disco de José Afonso. A editora Nova Realidade publica o livro Cantar de Novo.
No ano de 1972 o álbum chama-se Eu Vou Ser Como a Toupeira, gravado em Madrid, nos Estúdios Cellada, com a participação de Benedicto, um cantor galego amigo de Zeca, e com o apoio dos Aguaviva, de Manolo Diaz. O livro, editado pela Paisagem, tem apenas o título de José Afonso.
Em 1973 José Afonso continua a sua «peregrinação», cantando um pouco em todo o lado. Muitas sessões foram proibidas pela PIDE/DGS. Em Abril é preso e fica 20 dias em Caxias até finais de Maio. Na prisão política, escreve o poema «Era Um Redondo Vocábulo». Pelo Natal, publica o álbum Venham Mais Cinco, gravado em Paris, em que José Mário Branco volta a colaborar musicalmente. No tema-título, participa Janine de Waleyne, solista dos Swingle Singers, o melhor grupo vocal de jazz cantado da altura, na opinião de José Niza.
A 29 de Março de 1974, o Coliseu, em Lisboa, enche-se para ouvir José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Jorge Letria, Manuel Freire, José Barata Moura, Fernando Tordo e outros, que terminam a sessão com «Grândola, Vila Morena». Militares do MFA estão entre a assistência e escolhem «Grândola» para senha da Revolução. Um mês depois dá-se o 25 de Abril. No dia do espectáculo, a censura avisara a Casa de Imprensa, organizadora do evento, de que eram proibidas as representações de «Venham Mais Cinco», «Menina dos Olhos Tristes», «A Morte Saiu à Rua» e «Gastão Era Perfeito». Curiosamente, a «Grândola» era autorizada. É editado o álbum Coro dos Tribunais, gravado em Londres, novamente na Pye, com arranjos e direcção musical, pela primeira vez, de Fausto. São incluídas as canções brechtianas compostas em Moçambique no período entre 1964 e 1967, «Coro dos Tribunais» e «Eu Marchava de Dia e de Noite (Canta o Comerciante)».
De 1974 a 1975 envolve-se directamento nos movimentos populares. O PREC (Processo Revolucionário Em Curso) é a sua paixão. Cantou no dia 11 de Março de 1975 no RALIS para os soldados. Estabelece uma colaboração estreita com o movimento revolucionário LUAR, através do seu amigo Camilo Mortágua, dirigente da organização. A LUAR edita o single «Viva o Poder Popular» com «Foi na Cidade do Sado» no lado B. Em Itália, as organizações revolucionárias Lotta Continua, Il Manifesto e Vanguardia Operaria editam o álbum República, gravado em Roma a 30 de Setembro e 1 de Outubro, nos estúdios das Santini Edizioni. As receitas do disco destinavam-se a apoiar a Comissão de Trabalhadores do jornal República ou, caso o jornal fosse extinto, como foi, o Secretariado Provisório das Cooperativas Agrícolas de Alcoentre. Desconhecido em Portugal, o álbum inclui «Para Não Dizer Que Não Falei de Flores» (Francisco Fanhais), «Se os Teus Olhos se Vendessem», «Foi no Sábado Passado», «Canta Camarada», «Eu Hei-de Ir Colher Macela», «O Pão Que Sobra à Riqueza», «Os Vampiros», «Senhora do Almortão», «Letra para Um Hino» e «Ladainha do Arcebispo». Francisco Fanhais colaborou na gravação do disco, juntamente com músicos italianos.
Em 1976 apoia a candidatura presidencial de Otelo Saraiva de Carvalho, cérebro do 25 de Abril e ex-comandante do COPCON (Comando Operacional do Continente), apoio que reedita em 1980. Fase cronista de José Afonso, que publica o álbum Com as Minhas Tamanquinhas. O disco tem a surpreendente participação de Quim Barreiros. É, na opinião de José Niza, «um disco de combate e de denúncia, um grito de alma, um murro na mesa, sincero e exaltado, talvez exagerado se ouvido e lido ao fim de 20 anos, isto é, hoje». É a «ressaca» do PREC.
O álbum Enquanto Há Força, editado em 1978, de novo com Fausto, representa mais um exemplo da fase cronista do cantor, ligada às suas preocupações anti-colonistas e anti-imperialistas e à sua crítica mordaz à Igreja. Inclui as participações, entre outras, de Guilherme Inês, Carlos Zíngaro, Pedro Caldeira Cabral, Rão Kyao, Luís Duarte, Adriano Correia de Oliveira e Sérgio Godinho.
Em 1979 é editado o álbum Fura Fura, com a colaboração musical de Júlio Pereira e dos Trovante. O disco inclui oito temas de música para teatro, compostos para as peças Zé do Telhado, de A Barraca, e Guerra do Alecrim e Manjerona, da Comuna. Actua em Bruxelas no Festival da Contra-Eurovisão.
Em 1981, após dois anos de silêncio, regressa a Coimbra com o seu álbum Fados de Coimbra e Outras Canções. Trata-se da mais bela versão do fado de Coimbra, interpretada por Zeca Afonso em homenagem a seu pai e a Edmundo Bettencourt, a quem o disco é dedicado. Actua em Paris, no Théatre de la Ville.
Em 1982 começam a conhecer-se os primeiros sintomas da doença do cantor, uma esclerose lateral amiotrófica. Trata-se, aparentemente, de um vírus instalado na espinal medula que, de uma forma progressiva, destrói o tecido muscular e, normalmente, conduz à morte por asfixia. Actua em Brouges no Festival de Printemps.
Em 29 de Janeiro de 1983 realiza-se o espectáculo no Coliseu com José Afonso já em dificuldades. Participam Octávio Sérgio, António Sérgio, Lopes de Almeida, Durval Moreirinhas, Rui Pato, Fausto, Júlio Pereira, Guilherme Inês, Rui Castro, Rui Júnior, Sérgio Mestre e Janita Salomé. É publicado o duplo álbum Ao Vivo no Coliseu.
No Natal desse ano, sai Como Se Fora Seu Filho, um testamento político. Colaboração de Júlio Pereira, Janita Salomé, Fausto e José Mário Branco. Alinhamento: «Papuça», «Utopia», «A Nau de António Faria», «Canção da Paciência», «O País Vai de Carrinho», «Canarinho», «Eu Dizia», «Canção do Medo», «Verdade e Mentira» e «Altos Altentes». Algumas das canções foram escritas para a peça Fernão Mentes? do grupo de teatro A Barraca. Publicado o livro Textos e Canções, com a chancela Assírio e Alvim. Contra a sua vontade, é publicado pelo Foto Sonoro um maxi-single, Zeca em Coimbra, com um espectáculo dado por Zeca no Jardim da Sereia, na Lusa Atenas, a 27 de Maio. A cidade de Coimbra atribui a José Afonso a Medalha de Ouro da cidade. «Obrigado Zeca, volta sempre, a casa é tua», disse-lhe o presidente da Câmara, Mendes Silva. «Não quero converter-me numa instituição, embora me sinta muito comovido e grato pela homenagem», respondeu José Afonso. O Presidente da República, general Ramalho Eanes, atribui a José Afonso a Ordem da Liberdade, mas o cantor recusa-se a preencher o formulário. Em 1994, o Presidente da República Mário Soares tentou de novo condecorar, postumamente, José Afonso com a Ordem da Liberdade, mas a mulher, Zélia, recusou, alegando que se José Afonso não desejou a distinção em vida, também não seria após a sua morte que seria condecorado.
Em 1983 José Afonso é reintegrado no ensino oficial, tendo sido destacado para dar aulas de História e de Português na Escola Preparatória de Azeitão. Tinha sido expulso em 1968. A doença, agrava-se.
Em 1985 é editado o último álbum, Galinhas do Mato. José Afonso já não consegue cantar todos os temas, sendo substituído por Luís Represas («Agora»), Helena Vieira («Tu Gitana»), Janita Salomé («Moda do Entrudo», «Tarkovsky» e «Alegria da Criação»), José Mário Branco («Década de Salomé», em dueto com Zeca), Né Ladeiras («Benditos») e Catarina e Marta Salomé («Galinhas do Mato»). Arranjos musicais de Júlio Pereira e Fausto. Outras canções do álbum: «Escandinávia Bar-Fuzeta» e «À Proa».
Em 1986 apoia a candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintassilgo, católica progressista.
José Afonso morreu no dia 23 de Fevereiro de 1987, no Hospital de Setúbal, às 3 horas da madrugada, vítima de esclerose lateral amiotrófica, diagnosticada em 1982. O funeral realizou-se no dia seguinte, com mais de 30 mil pessoas, da Escola Secundária de S. Julião para o cemitério da Senhora da Piedade, em Setúbal, onde a urna foi depositada às 17h30 na sepultura 1606 do quadro 19. O funeral demorou duas horas a percorrer 1300 metros. Envolvida por um pano vermelho sem qualquer símbolo, como pedira, a urna foi transportada, entre outros, por Sérgio Godinho, Júlio Pereira, José Mário Branco, Luís Cília, Francisco Fanhais. A Transmédia editou o triplo álbum, o primeiro da história discográfica portuguesa, Agora e Sempre, duas semanas depois da morte do cantor. O triplo disco é constituído pelos álbuns Como Se Fora Seu Filho (1983) e Galinhas do Mato (1985) e por um alinhamento diferente de Ao Vivo no Coliseu (1983). A 18 de Novembro é criada a Associação José Afonso com o objectivo de ajudar a realizar as ideias do compositor e intérprete no campo das Artes.
Em 1988 a Câmara Municipal da Amadora institui o Prémio José Afonso destinado a galardoar um álbum inédito de música portuguesa, cujos temas tenham como referência a Cultura e História portuguesas, tal como a obra do autor de «Grândola, Vila Morena». Vencedores: «Para Além das Cordilheiras», Fausto (1988), «Negro Fado», Vitorino (1989), «Aos Amores», Sérgio Godinho (1990), «Janelas Verdes», Júlio Pereira (1991), «Correspondências», José Mário Branco (1992), «Eu Que Me Comovo por Tudo e por Nada», Vitorino (1993), «Tinta Permanente», Sérgio Godinho (1994), «Traz os Montes», Né Ladeiras (1995), «Maio Maduro Maio», Amélia Muge, João Afonso e José Mário Branco (1996).
Em 1991 a Câmara Municipal da Amadora inaugurou no Parque Central da cidade uma estátua em mármore de José Afonso, de 4 metros, da autoria do escultor Francisco Simões.
Em Outubro 1993, começam as gravações de um duplo CD, Filhos da Madrugada, que a BMG editará no ano seguinte em homenagem a José Afonso. A Strauss edita o duplo CD Zeca Afonso no Coliseu com o espectáculo integral de 29 de Janeiro de 1983. Inclui «Abertura: À Proa», «Balada do Mondego», «Saudades de Coimbra», «Senhora do Almortão», «Dor na Planície» (instrumental), «Balada do Outono», «Canção de Embalar», «Natal dos Simples», «Os Vampiros», «A Morte Saiu à Rua», «No Comboio Descendente», «Um Homem Novo Veio da Mata», «Milho Verde», «O Anel Que Tu Me Deste» (instrumental) «Murinheira» (instrumental), «Era Um Redondo Vocábulo», «Papuça», «Utopia», «Venham Mais Cinco», «O Que Faz Falta», «Grândola, Vila Morena» e «À Proa» (gravação de estúdio). «O Anel Que Tu Me Deste» e «Murinheira» não tinham sido incluídos na edição de vinil de 1983, Ao Vivo no Coliseu. O original de estúdio «À Proa», que tinha ficado de fora do álbum Como Se Fora Seu Filho, também de 1983, é publicado pela primeira vez. Uma versão diferente está incluída em Galinhas do Mato, de 1985.
Em 1994, integrado na programação de Lisboa-94, Capital Europeia da Cultura, realizou-se no dia 30 de Junho, no Estádio de Alvalade, em Lisboa, um festival de homenagem a José Afonso, com músicos da nova geração, intitulado Filhos da Madrugada. Participam Brigada Victor Jara, Censurados, Delfins, Diva, Entre Aspas, Essa Entente, Frei Fado D'El Rei, GNR, Madredeus, Mão Morta, Opus Ensemble, Peste & Sida, Resistência, Ritual Tejo, Sérgio Godinho, Sétima Legião, Sitiados, Tubarões, UHF, Vozes da Rádio e Xutos & Pontapés. Treze anos antes, numa entrevista ao Portugal Hoje, José Afonso tinha dito que «se a juventude aceita mais o rock do que outras formas musicais, o que se pode pedir, ao menos, é que se faça rock com qualidade» e que «não se tenha a necessidade de aleijar a língua portuguesa para a meter dentro dos compassos do rock».
Nesse mesmo ano a BMG editou um CD duplo, Filhos da Madrugada, gravado entre Outubro de 1993 e Março de 1994, em homenagem a José Afonso. Alinhamento: «Maio Maduro Maio» (Madredeus), «Coro dos Tribunais» (GNR), «A Formiga no Carreiro» (Sitiados), «Os Índios de Meia-Praia» (Vozes da Rádio), «Venham Mais Cinco» (Tubarões), «O Homem da Gaita» (Peste & Sida), «Canto Moço» (Ritual Tejo), «Vejam Berm» (Delfins), «Canção de Embalar» (Diva), «Era Um Redondo Vocábulo» (Opus Ensemble), «Coro da Primavera» (Xutos & Pontapés), «Cantigas do Maio» (Sétima Legião), «Chamaram-me Cigano» (Resistência), «Traz Outro Amigo Também» (Entre Aspas), «O Avô Cavernoso» (Mão Morta), «Que Amor Não Me Engana» (Frei Fado D'El Rei), «O Que Faz Falta» (Censurados), «Ronda das Mafarricas» (Brigada Victor Jara), «A Morte Saiu à Rua» (UHF) e «Senhor Arcanjo» (Essa Entente). O álbum termina com «Grândola, Vila Morena» cantado pelo Coro Infantil de Santo Amaro de Oeiras e ainda por João Aguardela (Sitiados), Natália Casanova (Diva), João Ribas (Censurados), Paulo Costa (Ritual Tejo), Viviane Parra (Entre Aspas), Nuno Aragão (Vozes da Rádio), Carla Lopes (Frei Fado D'El Rei), Paulo Riço (Essa Entente), João San Payo (Peste & Sida), Aurélio Malva (Brigada Victor Jara), Miguel Angelo (Delfins) e Tim (Xutos & Pontapés).
Em 1995 José Mário Branco, Amélia Muge e João Afonso, sobrinho de Zeca, lançaram um álbum de homenagem a José Afonso, intitulado Maio Maduro Maio, que inclui os inéditos de Zeca, «Entre Sodoma e Gomorra», e «Nem Sempre os Dias São Dias Passados». O CD duplo, resume os concertos que os três artistas deram no Teatro Municipal de São Luiz nos dias 13, 14 e 15 de Dezembro de 1994. Alinhamento: «Maio Maduro Maio», «Utopia», «De Não Saber o Que Me Espera», «Canção de Embalar», «Entre Sodoma e Gomorra», «Que Amor Não Me Engana», «Já o Tempo Se Habitua», «O Pastor de Bensafrim», «Lá no Xepangara», «Chamaram-me Cigano», «Achégate a Mim, Maruxa», «Canção da Paciência», «A Cidade», «Nefritite Não Tinha Papeira», «O Homem Voltou», «Nem Sempre os Dias São Dias Passados», «De Sal de Linguagem Feita», «Se Voaras Mais ao Perto», «Ali Está o Rio», «Benditos», «O País Vai de Carrinho», «Fura Fura», «O Que Faz Falta» e «Zeca». Esta última é uma canção de José Mário Branco, de homenagem a José Afonso.
Em 1996, sob a orientação cuidada de José Niza, a Movieplay editou em CD os 11 álbuns gravados por José Afonso para a Orfeu. A colecção é acompanhada por um 12º CD, De Capa e Batina, onde se juntam as primeiras gravações de José Afonso, isto é, as gravações de 78 rotações de 1953, «Fado das Águias», «Solitário», «O Sol Anda Lá no Céu» e «Contos Velhinhos» e o EP da Alvorada de 1956, «Incerteza», «Mar Largo», «Aquela Moça da Aldeia» e «Balada» e ainda o single da Orfeu, de 1969, «Menina dos Olhos Tristes» e «Canta Camarada».
No 10º aniversário da morte de José Afonso, em 1997, a EMI editou pela primeira vez em CD o primeiro álbum de Zeca, gravado para a Ofir em 1964 com o título Baladas e Canções. O álbum contém «Canção Longe», «Os Bravos», «Balada Aleixo», «Balada do Outono», «Trovas Antigas», «Na Fonte Está Lianor, «Minha Mãe», «Altos Castelos», «O Pastor de Bensafrim», «Canto da Primavera», «Elegia» e «Ronda dos Paisanos».
Em 1998, Vitorino e Janita Salomé encabeçaram um concerto de homenagem a José Afonso, integrado na programação do Festival dos 100 Dias, da Expo'98.
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